Crônica: Piorou? Melhorou?
Ivan Ângelo
Quer ver uma coisa que piorou? A
roubalheira. Sempre houve? Sempre houve. Mas era aquela coisa de comerciante
tubarão, juiz ladrão, ratazana da política, delegado de polícia na caderneta de
bicheiro, pelegos nos sindicatos, jabaculê para tocar música no rádio, essas
tropicalidades. Eram identificáveis, se alguém quisesse identificá-los,
privilegiados que estavam em posição propícia. Não era essa coisa geral de
cento e tantos deputados, contas de milhões de dólares no exterior, anões de
orçamento, toneladas de maconha, cocaína e armas circulando em tours
rodoviários, liberadores de pagamentos municipais, estaduais e federais,
intermediários, lobistas com maços de dinheiro nas maletas de laptops, meeiros
de caixa dois, policiais e advogados quadrilheiros… Piorou.
Mas tem coisa que melhorou. A televisão
não melhorou? Melhorou, ô se melhorou. Tem muita porcaria, isso tem, vai ver
até mais do que antes, porque aumentou a quantidade de programas e de canais. O
que tem de pior hoje são restos do que já era ruim: novelas, humorísticos,
shows bregas, incluindo aí os exorcismos. Ninguém vai negar que a tecnologia
melhorou, e a dramaturgia, a interpretação, o jornalismo.
Olha uma coisa que piorou demais:
torcidas de futebol. A rivalidade era ruidosa mas pacífica. Não havia nem
torcida uniformizada, ninguém se disfarçava de multidão. Dentro ou fora dos
estádios, torcedores eram pessoas comuns da cidade, um pai, um filho, uma
namorada, vizinhos. Não havia paus, pedras e bombas de cada lado, apenas
gritos, gozações, risadas. Os estádios não eram essa arena de hoje, eram mais
um teatro em que se representava a tragédia da derrota, o drama do empate, a
comédia da vitória.
Melhoraram
os cinemas, que nem pulgas têm mais.
Piorou o Carnaval, aprisionado nos
sambódromos.
Ah, melhorou muito o telefone. Pouco
tempo atrás, era uma coisa falar ao telefone. Interurbano? Ligava-se para uma
telefonista, que ligava para outra telefonista em outra cidade e esta ligava
para a casa da pessoa, fazendo a ponte. Dependendo do tráfego, isso podia durar
duas horas, três. Em cidades pequenas, onde não existiam aparelhos nas casas,
as pessoas eram chamadas ao posto telefônico. Quem ligava ficava no posto da
sua cidade esperando horas. Havia filas nos postos, e nem sempre dava certo:
“Piracicaba está sem comunicação”. E as linhas residenciais e comerciais?
Caríssimas! Entravam na declaração de bens do imposto de renda, coisa de classe
média para cima. Olha: um drama. Melhorou demais.
A escola pública: nossa! Essa piorou –
e como! Hoje até dão o que não davam: uniforme, comida, dentista. Mas não dão o
que davam: educação. No ensino fundamental, formam até analfabetos. Os dentes
das crianças brilham; os cérebros saem embaçados. Leitura, conhecimentos
básicos, educação civil, respeito às regras e aos professores – cadê?
A medicina melhorou. Antigamente até
gripe matava.
O Natal piorou, envolvido pela avidez e
pelo comércio.
O correio melhorou, para quem tem
internet.
A poluição piorou, nos rios, na terra,
nos muros, no ar.
A indústria melhorou, o produto
nacional tem prestígio.
Pioraram muito os reformatórios para
menores. Juntam todos os recolhidos num grande curral, e tome lambada. Não é
assim que se “reeduca”. Reeducar como, se a maioria nunca antes foi educada?
Fortes misturados com fracos, escolados com aprendizes, criminosos com vítimas
– um fracasso anunciado.
Umas coisas melhoram, outras pioram.
Não sejamos pessimistas. Algumas que tinham piorado, como o cinema nacional,
como a inflação, voltaram a melhorar. O povo brasileiro, numa enquete nacional,
declarou-se predominantemente feliz. É isso, entre um tranco e um barranco,
vamos indo.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
responda:
a) Que aspectos da vida
cotidiana melhoraram na opinião do autor?
Melhoraram os
cinemas, pois não têm mais pulgas; melhoraram também os telefones, pois não são
tão caros, e comunicar-se com outras cidades é mais fácil e rápido, o que não
acontecia há algum tempo.
b) Que aspectos
pioraram? Explique.
O Carnaval,
porque ficou restrito aos sambódromos, e os estádios de futebol, hoje
transformados em arenas – campos de briga.
02 – Essa crônica, embora se
trate de um texto escrito publicado em uma revista semanal, apresenta usos
característicos da língua falada informal.
a) Copie trechos do
texto em que esses usos da língua falada se manifestam.
“Ah, melhorou muito o telefone.” / “[...]
era uma coisa falar ao telefone. Interurbano?” / “E as linhas residenciais e
comerciais? Caríssimas!” / “Olha, um drama. Melhorou demais”.
Ao empregar a
linguagem dessa maneira, o autor, possivelmente, procurou assemelhar seu texto
a uma conversa, aproximando-se de seu leitor.
03 – Releia a oração.
"Ligava-se para uma
telefonista [...]"
a) Quem pratica a ação
expressa pelo verbo ligar?
Não é possível determinar quem ligava.
b) Como pode ser
classificado o sujeito dessa oração?
Sujeito
indeterminado.
c) Por que o autor
optou por esse tipo de sujeito?
Porque ele está se
referindo ás pessoas de maneira geral. Não se trata de uma pessoa específica.
d) Reescreva essa
oração empregando o sujeito simples, mas mantendo o sentido original.
Sugestão: Naquela
época as pessoas ligavam para uma telefonista [...].
04 – Releia.
"Entravam na declaração
de bens do imposto de renda, coisa de classe média para cima."
a) A que se refere o
verbo entravam?
Às linhas
residenciais e comerciais, citadas, anteriormente no texto.
b) Como se classifica
sintaticamente o sujeito dessa oração? Explique sua resposta.
Sujeito desinencial.
Apesar de o verbo estar na terceira pessoa do plural, o contexto nos informa a
que a ação se refere; logo trata-se de sujeito desinencial, e não sujeito
indeterminado.
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