sexta-feira, 15 de junho de 2018

CONTO: O MENINO QUE ESCREVIA VERSOS - MIA COUTO - COM GABARITO

Conto: O menino que escrevia versos
                                           
             Mia Couto

De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Versos do menino que fazia versos)

        — Ele escreve versos!
        Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
        — Há antecedentes na família?
        — Desculpe doutor?
        O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
        — Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
        Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
        Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
        — São meus versos, sim.
        O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
        Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
        — O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
        Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.
        Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
        — Dói-te alguma coisa?
        —Dói-me a vida, doutor.
        O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
        — E o que fazes quando te assaltam essas dores?
        — O que melhor sei fazer, excelência.
        — E o que é?
        — É sonhar.
        Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.
        O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
        — Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clínica psiquiátrica.
        A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.
        Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
        — Não continuas a escrever?
        — Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.
        O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
        — Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.
        — Não importa — respondeu o doutor.
        Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.
        Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
        — Não pare, meu filho. Continue lendo...

COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009. p.131-134
Entendendo o conto:
01 – O fato que dá origem à história aparentemente poderia ser considerado "normal", "corriqueiro".
a)   Que fato é esse?
A escrita de versos por um menino.

b)   Tal fato incomoda uma personagem, que reage a isso. Quem é ela? Qual é a reação dessa pessoa da história, ou seja, o que acontece com o menino?
Incomoda o pai do menino, que reage ao fato obrigando a mulher a levar o filho ao médico.

02 – Recorde as quatro personagens dessa história.
a)   Quais são elas?
O médico, o menino que escreve os versos, o pai do menino e a mãe, Serafina.

b)   Uma dessas personagens está ausente nos momentos das consultas médicas. Qual?
O pai.

c)   Em sua opinião, o que explica essa ausência?
Resposta pessoal. Professor, verifique as respostas dos alunos e acate aquelas que lhe parecem bem argumentadas. 

03 – O fato de o garoto escrever versos preocupa o pai dele? Por quê?
      O pai entende que essa não é uma ação normal de um menino.

04 – Além de escrever versos, o menino também tem sonhos. Releia o seguinte trecho:
[...] Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? 
Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, por quê?
Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai, teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.
a)   Em sua opinião, por que o pai tem receio dos sonhos do menino?
Resposta pessoal. Professor, espera-se que os alunos percebam que, para o pai, sonhar é uma forma de afastar-se da realidade e, portanto, não aprender a lidar com ela. 

b)   Que relação poderia ser estabelecida entre "sonhar" e "fazer versos"? Explique, apoiando-se em elementos da história lida.
Resposta pessoal. Professor, espera-se que os alunos percebam a relação que se estabelece, no conto, entre o fazer literário ("fazer versos") e a atividade de fugir à realidade, imaginar um outro modo de existir. 

05 – Após a visita ao médico, foi sugerido um tratamento para o menino.
a)   Que tratamento era esse?
A internação urgente do menino.

b)   Explique de que forma o tratamento sugerido pelo médico "soluciona" o problema do menino.
O tratamento permite ao menino desenvolver ainda mais sua habilidade de "fazer versos" e, ao mesmo tempo, tira-o da influência do pai, para quem a atividade do filho é doentia.

06 – Pode-se afirmar que o final da narrativa é surpreendente. Por quê?
      Professor, espera-se que os alunos percebam que o tratamento médico, em vez de tentar impedir a escrita dos versos pelo menino, estimula-o a continuar e a desenvolver sua atividade poética. Além disso, surpreende o fato de o médico colocar a própria atividade em segundo plano, para dialogar com o menino.

07 – De que maneira você acredita que as pessoas de sua convivência - familiares, amigos, vizinhos, conhecidos - acolheriam um garoto que gostasse de fazer versos? E você: o que acharia de um menino assim? Por quê?
      Resposta pessoal do aluno.



13 comentários:

  1. De que maneira o menino do poema e o autor se assemelham?

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    1. porque o autor que é representado pelo menino, retrata a sua historia

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  2. porque o autor que é representado pelo menino, retrata a sua historia

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  3. Qual é a tipologia que o texto pertence?

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  4. Que palavras ou expressoes o pai utiliza em sentido figurado ao exigir que o filho seja submetido pelo medico ao exame geral?

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  5. após fazer sua pesquisa sobre gênero textual,em que gênero você enquadraria este texto?

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  6. Expressões do texto q nós indicam q o menino escrevia versos

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  7. Qual o principal tema abordado no conto?

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  8. No conto lido, qual personagem é a responsável pela progressão dos fatos na história?

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  9. Para o menino que fazia versos, a poesia era uma forma de viver outra realidade — do sonho e da fantasia. Para você, o que é a poesia ou a arte em geral? Ela também faz você sonhar? Por quê?

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  10. quais são as figuras de linguagem presentes nele?

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  11. Reveja o início do conto e responda às questões a seguir.
    a) Antes do início da narrativa em si, há alguns versos que são atribuídos ao menino que fazia versos. Como você compreende, após a leitura do conto, o significado desses versos?
    b)A primeira fala do conto é da mãe do menino: “Ele escreve versos!”. Por que essa fala soa como uma acusação?

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