sábado, 30 de junho de 2018

CRÔNICA: TUDO MAIS BARATO - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

Crônica: Tudo mais barato
            Fernando Sabino


        Naquela manhã, quando o carro oficial o conduzia ao Ministério, lembrou-se do supermercado na Praça da Bandeira:
        -- Você precisa dar um pulo lá um dia desses – um amigo lhe havia recomendado: – É tudo mais barato.
        -- Siga para a Praça da Bandeira – ordenou ao motorista.
        Depois de se embaraçar nas filas que se formavam à entrada, disputando gêneros de primeira necessidade, perdeu-se por entre as prateleiras de mercadorias menos procuradas, pegue e pague.
        Tudo realmente mais barato – sua mulher ficaria satisfeita. Foi pegando o que lhe ocorria levar: latas de conserva, queijos, vinho, azeite, biscoito, balas para as crianças. Logo precisou de um dos carrinhos de arame enfileirados na porta. Estranhou que ninguém ali os usasse. Não seria costume da casa?
      Encaminhou-se afinal para a saída, formando na longa fila dos que passavam pela caixa: meio quilo de arroz, um quilo de farinha, meio quilo de açúcar.
        Olhou para os que já aguardavam atrás dele: as mesmas caras sérias, encardidas de pobreza, cada um com sua comprinha humilde na mão. E ele ali, o único de paletó e gravata, atravessado no caminho com seu carrinho repleto. Era tão chocante o contraste, que a cada passo parecia estar sendo empurrado para frente, em estocadas de muda acusação. Pensou ainda se não seria o caso de desistir, recolocar a mercadoria no lugar, ou abandonar ali mesmo o carrinho e ir saindo displicente, como quem não quer nada.
        -- Cinquenta cruzeiros.
        -- Trinta e dois cruzeiros.
        Quando chegasse a sua vez, estaria perdido: uma semana de ordenado, no mínimo, daquela gente que o cercava. Enxugou o suor da testa. Atrás dele alguém comentava:
        -- Esse aí vai levar pelo menos meia hora, está comprando a casa inteira.
        -- Cruz credo! – soltou uma voz de mulher.
        E outra ainda:
        -- Até parece uma babá, empurrando carrinho.
        Ouviram-se risos, já de franca hostilidade. E chegou enfim a sua vez. Procurou ser o mais expedito possível:
        -- Isto... isto... e mais isto...
        A moça ia registrando, espantada e aborrecida.
        -- Cinco mil, oitocentos e cinquenta cruzeiros – contou afinal, implacável, para ele e para quem mais quisesse ouvir.
        Correu pela fila um murmúrio de admiração.
        -- Agora tire daí, por favor.
        Ele desfolhava atabalhoadamente um maço de notas de quinhentos que retirara do bolso da calça para pagar a mercadoria. Nunca aquela gente tinha visto tanto dinheiro junto.
        -- Tirar como? – já desesperado, olhou em torno: – A mocinha ali não tem um saco de papel?
        -- Em saco de papel não cabe tudo isso. O próximo, por favor.
        Na fila já se avolumava um resmungo de impaciência. Sem saber o que fazer, ele tentou recolher as coisas com os dois braços, deixou cair uma lata, o pacote de biscoitos se arrebentou. Já se dispunha a largar tudo e sair correndo, quando viu um caixote de papelão a um canto. Arrastou-o com a ponta do pé, despejou tudo dentro dele. Ao erguê-lo pela tampa, viu, agoniado, que o fundo se abria e a mercadoria se espalhava pelo chão. Uma garrafa de vinho tinto se espatifou no cimento. Agachou-se apanhando freneticamente o que podia e atirando de novo dentro do caixote. Depois ergueu-o a custo, contendo com os braços as abas do fundo.
        -- Com licença. Com licença.
        Abriu caminho aos tropeços, precipitou-se até o carro que o aguardava, pediu auxílio ao motorista:
        -- Vamos, me ajude aqui. E siga para casa, depressa.
        Despejada a mercadoria no banco de trás, conseguiu, enfim, abandonar o local do crime, seguindo para a Zona Sul. Se percebessem que se tratava de carro oficial, a agressiva curiosidade que o acompanhou até a porta se transformaria em depredação e até mesmo linchamento.
        Não perceberam; pôde, assim, regressar ao seu mundo farto e repousante, até onde não chegavam ainda os atropelos, apertos e aflições dos que estão do outro lado.
        Mas não por muito tempo – pensou, preocupado.

                                      Fernando Sabino. In: A falta que ela me faz.
                                                  7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1981.
Entendendo a crônica:
01 – Reescreva as frases, substituindo as palavras destacadas por sinônimos:
a)   Ouviram-se risos, já de franca hostilidade.”
Escutaram-se risos, já de sincera inimizade.

b)   “Ele desfolhava atabalhoadamente um maço de notas...”
Ele desfolhava atrapalhadamente um maço de notas.

c)   “Na fila se avolumava um resmungo de impaciência.”
Na fila aumentava um resmungo de impaciência.

02 – Complete as frases com as palavras abaixo:
Linchamento – murmúrio – farto – atropelo – displicente – freneticamente.
a)   As garotas aplaudiam freneticamente seu ídolo.
b)   Naquele atropelo todo perdi as chaves do carro.
c)   Ele pouco ligava para as recomendações dos pais e continuava sendo o aluno displicente de sempre.
d)   O linchamento é uma forma injusta de justiça popular.
e)   Ouvia-se, naquele momento, um murmúrio de protesto no fundo do salão.
f)    Ela vivia naquele mundo farto; nunca conheceu as dificuldades da pobreza.

03 – O texto “Tudo mais barato” é narrado em terceira pessoa. Nele, o autor desempenha o papel de:
(  ) Narrador-personagem.
(X) Narrador-observador.

04 – Quem é a personagem principal do texto? A que classe social pertence? Comprove sua informação com elementos do texto.
      É um funcionário do Ministério. A personagem pertence a uma classe social elevada. Trata-se de um funcionário do governo que utiliza carro oficial com motorista.

05 – O funcionário do Ministério pretendia comprar gêneros de primeira necessidade?
      Não. Pois se dirigiu às prateleiras de mercadorias menos procuradas.

06 – O funcionário do Ministério contrastava com as demais pessoas que faziam compras no supermercado. Em que consistia esse contraste?
      Era o único de paletó e gravata, com carrinho repleto, ostentando uma situação econômica invejável. As demais pessoas estavam malvestidas e carregavam poucos produtos, porque eram muito pobres.

07 – Podemos considerar o protagonista uma pessoa insensível e indiferente à pobreza das pessoas que faziam compras naquele supermercado? Por quê?
      Não. Em certo momento, ele ficou tão perturbado com a pobreza daquela gente que pensou em recolocar as mercadorias na prateleira e desistir da compra.

08 – O funcionário do Ministério pensou em abandonar o carrinho e deixar o supermercado por que:
(   ) Ficou irritado com os comentários dos fregueses na fila.
(X) Percebeu que sua situação econômica contrastava enormemente com a pobreza daquela gente.

09 – Assinale o CORRETO:
O funcionário do Ministério foi invadido pelos sentimentos de:
(   ) Compreensão e solidariedade.
(X) Constrangimento e pânico.
(   ) Agressividade.

10 – Por que se criou um clima de hostilidade em relação ao funcionário do Ministério?
      Suas atitudes provocaram um sentimento de injustiça nas pessoas e, também, por incomodar os presentes.

11 – Por que o fato de ele estar usufruindo do carro oficial poderia provocar depredação e linchamento?
      O povo não aprovaria essa mordomia, à custa do dinheiro público.

12 – A que conclusão o funcionário do Ministério chegou depois dos acontecimentos no supermercado?
      Refletindo sobre a enorme diferença social e econômica que o distanciava daquela gente humilde, concluiu que sua situação privilegiada não duraria para sempre.

13 – Nesta crônica, Fernando Sabino denuncia principalmente:
(   ) A utilização indevida de carros oficiais.
(X) As desigualdades sociais.

14 – Você acha correto usar bens públicos, como carros oficiais, em proveito pessoal? Por quê?
      Resposta pessoal do aluno.

15 – Na sua opinião, por que existem desigualdades sociais?
      Resposta pessoal do aluno.

16 – Pra você, como podem ser combatidas as desigualdades sociais para se construir um mundo mais justo?
      Resposta pessoal do aluno.


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