TEXTO: AS
PALAVRAS
Eu ainda não sabia ler, mas já era bastante esnobe para exigir os meus livros.
Meu avô foi ao patife de seu editor e conseguiu de presente Os contos do poeta
Maurice Bouchor, narrativas extraídas do folclore e adaptadas ao gosto da
infância por um homem que conservava, dizia ele, olhos de criança. Eu quis
começar na mesma hora as cerimônias de apropriação. Peguei os dois
volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, abri-os negligentemente na “pagina
certa”, fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a sensação de possuí-los.
Tentei sem maior êxito trata-los como bonecas, acalentá-los, beijá-los,
surrá-los. Quase em lágrimas, acabei por depô-los sobre os joelhos de minha
mãe. Ela levantou os olhos de seu trabalho: “O que queres que eu te leia,
querido? As fadas?” Perguntei, incrédulo: “As Fadas estão aí dentro?” A
história me era familiar: minha mãe contava-a com frequência, quando me levava,
interrompendo-se para me friccionar com água-de-colônia, para apanhar debaixo
da banheira o sabão que lhe escorregara das mãos, e eu ouvia distraidamente o
relato bem conhecido; eu só tinha olhos para Anne-Marie, a moça de todas as
minhas manhãs; eu só tinha ouvidos para a sua voz perturbada pela servidão; eu
me comprazia com suas frases inacabadas, com suas palavras sempre atrasadas,
com sua brusca segurança, vivamente desfeita, e que descambava em derrota, para
desaparecer em melodioso desfiamento e se recompor após um silêncio. A história
era coisa que vinha por acréscimo: era o elo de seus solilóquios. Durante o
tempo todo em que falava, ficávamos sós e clandestinos, longe dos homens, dos
deuses e dos sacerdotes, duas corças no bosque, com outras corças, as Fadas; eu
não conseguia acreditar que se houvesse composto um livro a fim de incluir nele
este episódio de nossa vida profana, que recendia a sabão e a água-de-colônia.
Anne-Marie fez-me sentar à sua frente, em minha cadeirinha; inclinou-se, baixou
as pálpebras e adormeceu. Daquele rosto de estátua saiu uma voz de gesso. Perdi
a cabeça: quem estava contando? o quê? e a quem? Minha mãe ausentara-se: nenhum
sinal de conivência, eu estava no exílio. Além disso, eu não reconhecia sua
linguagem. Onde é que arranjava aquela segurança? Ao cabo de um instante,
compreendi: era o livro que falava. Dele saíam frases que me causavam medo:
eram verdadeiras centopeias, formigavam de sílabas e letras, estiravam seus
ditongos, faziam vibrar as consoantes duplas: cantantes, nasais, entrecortadas
de pausas e suspiros, rica em palavras desconhecidas, encantavam-se por si
próprias e com seus meandros, sem se preocupar comigo: às vezes desapareciam
antes que eu pudesse compreendê-las, outras vezes eu compreendia de antemão e
elas continuavam a rolar nobremente para o seu fim sem me conceder a graça de
uma vírgula. Seguramente, o discurso não me era destinado. Quanto à história,
endomingara-se: o lenhador, a lenhadora e suas filhas, a fada, todas essas
criaturinhas, nossos semelhantes, tinham adquirido majestade, falava-se de seus
farrapos com magnificência; as palavras largavam a sua cor sobre as coisas,
transformando as ações em ritos e os acontecimentos em cerimônias. Alguém se
pôs a fazer perguntas: o editor de meu avô, especializado na publicação de
obras escolares, não perdia ocasião de exercitar a jovem inteligência de seus
leitores. Pareceu-me que uma criança era interrogada: no lugar do lenhador, o
que faria? Qual das duas irmãs preferiria? Por quê? Aprovava o castigo de
Babette? Mas essa criança não era absolutamente eu, e fiquei com medo de
responder. Respondi, no entanto: minha débil voz perdeu-se e senti tornar-me
outro. Anne-Marie, também, era outra, com seu ar de cega superlúcida: parecia-me
que eu era filho de todas as mães, que ela era mãe de todos os filhos. Quando
parou de ler, retomei-lhe vivamente os livros e saí com eles debaixo do braço
sem dizer-lhe obrigado.
SARTRE,
Jean-Paul. As palavras. Trad. J.Guinsburg.
6. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p. 33-5.
Entendendo
o texto:
01 – As
“cerimônias de apropriação” de que fala o texto (primeiro parágrafo) constituem
um tipo de leitura? Comente.
SIM, a leitura sensorial. O aluno deve perceber que essa leitura ocorre sempre,
cotidianamente, em sua vida de estudante.
02 – A
história das Fadas tinha um papel na relação entre mãe e filho. Releia
atentamente o primeiro parágrafo e explique esse papel.
Era o momento em que mãe e filho se isolavam do mundo e se pertenciam mútua e
exclusivamente. O filho se concentrava nas palavras da mãe e se sentia livre na
companhia dela e das criaturas do conto de fadas.
03 – Por
que o narrador nos diz que sua mãe “adormeceu” (segundo parágrafo)? Essa imagem
se revela importante para o desenvolvimento da narrativa?
Ela passa a ser um intermediário entre o livro e ele, a quem o texto era
dirigido. Ela perde sua autonomia de modelar a história e passa a ser mero
reprodutor da história contada pelo livro.
04 – O
que significa a “voz de gesso” de que fala o texto?
A voz de
quem lê o que fala, diferente da voz de quem simplesmente fala.
05 – “...
era o livro que falava”. Comente essa frase, baseando-se nos dados que o texto
oferece sobre a linguagem que o narrador então ouvia.
O registro linguístico em que a história estava sendo contada fazia com que o
narrador percebesse que não era mais a sua mãe a produtora do texto e
modeladora da realidade nela contida: o texto estava pronto no livro.
06 – Em
que consiste uma história “endomingada”? E o que significa dizer que “as
palavras largavam a sua cor sobre as coisas”?
O registro linguístico não era mais coloquial, mas sim formal. E a formalidade
das palavras contagiava a história, que assumia ares mais cerimoniosos.
07 –
Comente a ideia de que Anne-Marie tinha um “ar de cega superlúcida”.
Era uma “cega superlúcida” porque não “via” nada, ou seja, não provinha mais
dela a realidade contada na história; ainda assim, o livro concedia aa ela o
total conhecimento sobre a história contada.
08 – É
evidente no texto a surpresa que a palavra escrita traz ao narrador. Procure
detectar as diferentes entre a experiência oral da linguagem e a experiência
escrita baseando-se no que o texto nos diz. Concentre-se nas diferenças
percebidas pelo narrador entre a narrativa oral e a narrativa escrita e na
ideia expressa em: “... parecia-me que eu era filho de todas as mães, que ela
era mãe de todos os filhos.”
O aluno deve perceber que a história que fazia parte do cotidiano do narrador
passou a ser mais impessoal, mais universal na forma que assumiu no livro.
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