sábado, 4 de agosto de 2018

CRÔNICA: A BOCA, NO PAPEL - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE- COM GABARITO

Crônica: A boca, no papel
                                                 Carlos Drummond de Andrade

    O garoto da vizinha me pediu que o ajudasse a fazer (a fazer, não, a completar) um trabalho escolar sobre a boca. Estava preocupado porque só conseguira escrever isto: ‘Pra que serve a boca? A boca serve para falar, gritar e contar. Serve também pra comer, beber, beijar e morder. Eu acho que a boca é um barato’. Queria que eu acrescentasse alguma coisa.
        -- Que coisa?
        -- Qualquer coisa, ué. Escrevi só quatro linhas, a professora vai bronquear.
        -- Mas em quatro linhas você disse o essencial. Para mim, só faltou dizer que a boca serve também para calar. Em boca fechada não entra mosquito.
        -- Isso não dá nem uma linha _ e os olhos do garoto ficaram tristes.
        -- Por favor, me ajude…
        Então resolvi fazer a minha redação, como aluno ausente do Colégio Esperança, e passá-la ao coleguinha, a título de assessor de emergência.
        A boca! Tanta coisa podemos falar sobre a boca, mas é sempre por ela que falamos dela. Até caneta e o lápis são uma espécie de boca para falar sobre a boca. Eles vão riscado e saem as palavras como se saíssem por via oral. (Risquei a expressão “por via oral”. É muito sofisticada, ninguém vai acreditar que fui eu que escrevi. Mas foi sim.)
        A boca é linda quando é de mulher que tem boca linda. Fora disso, nem sempre. A boca é muito rica de expressões, mas não se deve confundi-la com a chamada boca rica. (Mordomia, negociatas, pregão de ações da Vale do Rio Doce aos milhões etc.) A boca de que estou falando, aliás, escrevendo, pode ser alegre, amarga, ameaçadora, sensual, deprimida, fria, sei lá o quê. Uma boca pode variar muito de expressão e mesmo não ter nenhuma. Uma das bocas mais gozadas que eu já vi foi a boca–de-chupar-ovo, uma boquinha de nada, da minha tia Zuleica. Se fosse um pouquinha mais apertada, eu queria ver ela se alimentando – por onde? Mas esta boca está fora da moda, só aparece no jornal nos retratos das melindrosas de 1928, que faziam a boca ainda menor desenhando o contorno com o batom. Os lábios ficavam de fora, de longe.
        Estou lendo escondido as poesias de Gregório de Matos. Dizem que ele tinha o apelido de Boca do Inferno por causa dos negócios que escrevia e que eram infernais. Infernais no tempo dele, pois na rua e em toda parte já escutei coisas muito mais cabeludas, xii! …
        Toquinho canta uma letra que fala em boca da noite, acho que ele queria falar no anoitecer, É bonito, mas não consigo imaginar essa boca na cara da noite. Sou mais a boca do dia, que não sei se alguém já teve ideia de falar nela, mas o amanhecer engolindo a escuridão da noite é mais legal que o anoitecer papando os restos do dia.
        Boca por boca, não ando atrás da boca-livre, que aliás nunca passou perto de mim, e só um grupo consegue, os privilegiados. Se a boca fosse livre para todos, então a vida seria melhor. É a tal história: quanta gente fazendo boquinha pra conseguir o quê? Nada. E com quatro ou cinco bocas em casa pra sustentar.
        Diz-se que o uso do cachimbo faz a boca torta, e eu pergunto: por que não botar o cachimbo ora no outro canto da boca, pro torto endireitar? Se o vatapá põe a gente de água na boca, me expliquem por que, depois de comer, o cara pede um copo d’água.
        Gente que não admite discussão nem leva desaforo para casa manda logo calar a boca. Mas já vi gente dando palmadinha na própria boca e dizendo “Cala-te, boca”. E ela obedece. Às vezes já é tarde, a boca disse uma besteira inconveniente, e o jeito é o cara se lastimar, com cara de missa de sétimo dia: “Ai, boca, que tal disseste”!
        E assim, de boca em boca, vai correndo o dito maldito. Me disseram que um cara bom de discurso, palavreado fácil, como certos deputados e prefeitos por aí, merece o título de boca de ouro. Fala tão bonito que a gente vê barrinhas de ouro saltarem da língua dele. Mas é só de mentirinha. Esse ouro não melhora a sina do povo nem a nossa dívida externa, que é uma boca larga imensa, engolindo todas as reservas da gente. E contra essa história de inflação, custo de vida e tal e coisa, nem adianta mesmo botar a boca no trombone. Os de lá de cima fazem boca-de-siri – ou, senão, boca de defunto, porque, como advertia o saudoso Ponte Preta, siri, mesmo sem boca, já está falando.
        E eu faço igual, além do mais porque já não estou em idade de fazer redação em colégio.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Moça deitada na grama.
Rio de Janeiro: Record, 1987. p.17-9.
Entendendo a crônica:
01 – Você conhece muito bem a situação apresentada na primeira parte do texto. Por que a redação escolar sempre causa dificuldades? O que você acha da situação criada quando o professor pede uma redação?
      O aluno deve ter oportunidade de expor ideias próprias sobre seu trabalho de realizador de redações escolares.

02 – O texto de Drummond parece uma redação escolar? Por quê?
      Sim. O narrador não só procura reproduzir a linguagem infantil, como também desfia ideias e mais ideias numa tentativa de falar muito sobre um assunto que requer pouco.

03 – Há, no primeiro parágrafo da segunda parte do texto, um trecho entre parênteses. A situação colocada por esse trecho faz parte da sua realidade escolar? O que ela demostra?
      Essa situação costuma fazer parte da realidade escolar. Demonstra que a redação é normalmente vista como uma disputa entre professor e aluno em função da nota – o que é profundamente lamentável.

04 – Qual a expressão usada para indicar que o texto se encaminha para uma conclusão?
      “E assim ...”

05 – A redação feita por Drummond é um texto coeso? Comente-a, utilizando os conceitos de repetição, progressão, não-contradição e relação.
      Sim, é coeso; no entanto, sua coesão é muito mais externa do que interna, ou seja, trata-se de uma tentativa planejada de produzir um texto semelhante às redações escolares. Nesse aspecto, é brilhante. Se desconsiderarmos esse dado, evidencia-se que o texto em si é mais um desfilar de várias bocas tenuemente relacionadas do que um trabalho em que se nota a presença equilibrada dos quatro elementos que vimos estudando.

06 – Você sabia que escrever textos numa situação como a que o poeta e seu coleguinha enfrentaram é um bom exercício? Por quê?
      Resposta pessoal do aluno.


Um comentário: