quinta-feira, 3 de julho de 2025

ARTIGO DE OPINIÃO: MINHA HISTÓRIA COMO PROFESSORA - ROSA MARIA MONSANTO GLÓRIA - COM GABARITO

 Artigo de opinião: Minha história como professora

                Rosa Maria Monsanto Glória

        A todos os professores deste enorme país, por tudo que representam para os seus alunos, especialmente aqueles que conseguem perceber a relevância do seu papel. A todos que de um modo ou de outro contribuíram para que a cada dia eu me tornasse mais o que sou hoje: PROFESSORA

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj5gKYgUkpEU6kPcsEbj_pTgknIdFNJPA6k13_V1HOJzzNLi2Q6xqVPXUF3FsGlAxmtdSXDUP41Mo_7G05xVxknmjZEXjQmT4ogAe8wlElJh7Xtj5hq1v9ahDq2zLYCkzvlrnoa7xXhbH5u-X8LLej2YH5C6XkHoB3RlnK2gzgJjdmnXOLw0eMUT_TfWpg/s320/professora-lousa-quadro-negro.jpg


        É engraçado como a escola sempre esteve muito presente na minha vida. Parando agora para refletir melhor, já nem sei se ela não tem sido minha própria vida. Bem, nem quero me aprofundar nisso, para não correr o risco de fazer com que pensem (ou que os que me conhecem, confirmem) que eu seja maluca...

        Pra começo de conversa, vou contar como começou esta obsessão, penso, como para a maioria das crianças pequenas e sem muitos recursos financeiros (para não dizer pobres) da minha geração.

        As escolas de educação infantil eram "artigo de luxo". As públicas eram poucas e muito concorridas e as particulares eram para os ricos ou para os filhos de mães que trabalhavam fora, coisa que, pelo menos perto de onde eu morava, não era muito comum. Lembro-me de que na rua onde eu morava nenhuma mãe trabalhava fora. Portanto, como eu não atendia a nenhum desses critérios, nem era rica, nem minha mãe trabalhava fora, não fui para o "Jardim" – era assim que se dizia na época. Porém, vocês nem podem imaginar como eu sonhava em ir para a escola, na verdade eu queria mesmo era ir para o "Grupo" – como se chamavam as escolas de Ensino Fundamental –, as escolas de verdade, onde a gente aprendia a ler e a escrever.

        Na rua onde morava e moro até hoje, havia meninas mais velhas que eu, que já iam para a escola de uniforme e "mala", enquanto eu, criancinha, como elas diziam, ficava em casa sonhando com o dia em que pudesse ir também.

        Tenho a nítida lembrança do dia em que minha mãe foi fazer a matrícula no 1° ano e começou então a providenciar as coisas para que eu fosse para a escola. Ela mesma costurou minha saia com tecido xadrezinho de preto e branco com uma prega na frente e minhas camisas branquinhas com gola e bolso com o distintivo do Grupo. Também havia os sapatos tipo colegial preto e as meias brancas até os joelhos. Mas o que mais me fascinou, o que mais me encantou foi a mala preta que ganhei do meu avô. Ela era maravilhosa, tinha um cheirinho bom de couro, dentro dela cabia um mundo de coisas: os cadernos novos, o estojo, os livros que com certeza a professora pediria para comprar, enfim, tudo que fosse preciso para uma menina que queria muito ir para a escola.

        Chegou o grande dia, nem dormi direito, tamanha era a minha ansiedade. Quando deu a hora de ir para a escola, tenho certeza de que se não fosse pelo fato de minha mãe me levar pela mão, o que as pessoas veriam pela rua seria uma meninazinha de laço na cabeça – a única de uniforme no primeiro dia de aula – flutuando até chegar à porta da escola, sendo ancorada por uma grande mala preta, levando ali todos os seus sonhos.

        A vida seguiu em frente, eu adorava a escola, as professoras, os colegas de classe. Ia para lá num período e no outro brincava de escola e de outras coisas também. Durante todo o primário não tive nenhuma falta, ia todos os dias, chovesse ou fizesse sol. Não suportava a ideia de ter de faltar por qualquer que fosse o motivo, nem mesmo quando nasceu minha irmãzinha e era emenda de feriado. Quando chegavam as férias, que naquele tempo eram muito mais longas, principalmente se a gente fechasse as notas, eu ficava eufórica nos primeiros dias, até mesmo meio exibida, pois sempre fechava as notas com médias altas e era muito elogiada por isso – porém depois de uma ou duas semanas o que eu mais queria era que elas acabassem. Morria de saudades de tudo, até mesmo da merendeira que era muito ranzinza e brigava se a gente deixasse uma gotinha de sopa no prato... Da professora, então, nem se fale! E para passar o tempo eu engraxava minha mala e deixava tudo arrumado lá dentro, tornando a fazer isso muitas vezes durante as férias. Agora, adulta, penso que a escola cumpria, para mim e para as outras crianças, um papel extremamente importante: ela era o principal espaço de convivência social que tínhamos; nós de fato frequentávamos a escola, alguns de nós frequentavam a igreja, brincávamos juntos e nada mais, pelo menos para mim era assim. Não tinha shopping, festinhas, balé, natação, judô, inglês...Tinha a escola.

        Cresci mais e ela continuou sendo minha fiel companheira, fazia parte da fanfarra, do grupo de teatro, do coral, ia às aulas de educação física no período oposto ao da aula regular. Se tinha gincana, lá estava eu. Arrecadar prendas para a festa junina era uma farra. Dos desfiles cívicos, eu participava também. No campeonato de handebol entre as escolas do bairro, é claro que eu ia, mas só para torcer, pois era péssima atleta.

        Já não levava minha malinha preta, afinal no ginásio não ficava bem, o que os meninos iriam pensar?! Mas os sonhos continuavam comigo e a escola ainda fazia parte deles. Estava definido: seria professora.

        Fui para o curso de magistério, numa das escolas mais concorridas da minha cidade, depois de ter sofrido a espera da segunda chamada do exame "vestibulinho". Estava radiante e orgulhosa de mim mesma, afinal não era nada fácil entrar para aquela escola (pública) – mesmo que tivesse conseguido a vaga na segunda lista, ainda assim era motivo de glória. Fui para o primeiro dia de aula na escola nova com o coração aos pulos, como quando tinha sete anos, ia de uniforme e minha malinha agora se transformara numa bolsa esportiva – Tiger –, como era moda na época, novamente presente do meu avô. Na "mala", caderno universitário, estojinho, carteira com alguns trocados, passe escolar e a certeza de que seguia pelo caminho certo, seria professora, a melhor que pudesse ser.

        Os quatro anos que passei naquela escola foram "os melhores da minha vida", pelo menos é o que eu pensava na época. Tinha aulas pela manhã, e quase todas as tardes ficava por lá também, um dia era educação física, no outro, estágio, nos outros eram trabalhos na biblioteca (a mais amada que eu já frequentei) ou na sala de estágio, outro espaço maravilhoso da escola que chegava a causar uma pontinha de inveja aos outros alunos dos outros cursos, afinal só as professoras e as "meninas do magistério" tinham uma sala para trabalhos e reuniões. Ali vivi muitas coisas importantes da minha vida, conheci muitas pessoas, tive professores que me fizeram ver a vida de outra forma e acreditar ainda mais nesta profissão, fiz amizades duradouras, o primeiro namorado, ri, chorei, cantei, dancei, amei, vivi... Estar ali naquela escola, utilizar todos aqueles espaços, participar de tudo que me fosse possível, viver intensamente aquele lugar era tudo que eu sempre sonhei, era a escola que cabia na minha malinha de sonhos.

        O curso acabou: estava formada, era professora. Na cabeça o sonho realizado e a certeza de continuar vivendo a escola todos os dias. Nas mãos, não mais uma malinha, mas uma sacola cheia de materiais e livros que certamente seriam úteis no meu trabalho com os meus alunos. Meu Deus, como era lindo me ouvir dizer: meus alunos!

        Começou então outra etapa da minha vida. Agora era adulta, professora formada, como diziam meus pais, mas como deixar de ser aluna? Não podia, isso seria insuportável. Então lecionava durante o dia e fazia pedagogia à noite – perfeito, era professora, mas era também aluna.

        Com a primeira escola, vieram muitas alegrias, mas também muitas decepções. Lutei muito contra o desânimo, a acomodação e a hostilidade dos que pensavam que escola era lugar apenas de se cumprir horário e programa de ensino, que só mesmo na cabecinha de uma recém-formada caberia a ideia que "aqueles alunos" teriam jeito. Como podem imaginar, estava eu numa escola de periferia, com uma classe de alunos repetentes por muitos anos porque não sabiam ler e escrever, levava comigo muita vontade e uma sacola cheia de materiais bonitinhos, feitos por minhas próprias mãos, que animavam os alunos pela sua beleza e os fazia sentir-se "cuidados" pela sua professora, o que era bom, mas que pouco contribuía para que aprendessem mais. Durante aquele ano, o conteúdo da mala variou muito: a incerteza quase sempre estava presente, assim como a força de vontade e a insistência que partilhavam espaço com livrinhos de história, a cartilha da pipoca, alguns joguinhos para trabalhar matemática e às vezes alguns docinhos, brinquedinhos e roupas para as crianças.

        Já no curso de pedagogia, tudo era muito diferente do que eu tinha vivido na escola. Havia muitas pessoas numa sala, quase todos os alunos eram mais velhos que eu e as relações eram mais superficiais. Os professores também eram diferentes, eles falavam para grandes massas de alunos, a maioria de nós não tinha nome para eles, mas eles falavam de coisas que eu achava muito interessantes e anotava tudo no caderno. Descobri que a faculdade era uma escola muito diferente da escola que eu queria para viver, embora aprendesse muito nela e tivesse algumas gostosuras: as paqueras, os bate-papos com alguns colegas, o bolinho de queijo da cantina e a sexta-feira...

        Esse ano, o primeiro como professora, foi definitivo para o meu "casamento" com a escola. Nele tive a oportunidade de experimentar pela primeira vez na vida o que é "quebrar a cara". Cheguei cheia de sonhos e boa vontade, sabia que estava fazendo diferença para aqueles alunos, pois me empenhava muito para isso, mas descobri também que, só com isso na minha malinha, pouco poderia contribuir para de alguma forma "ajudar a mudar seus destinos", fadados ao fracasso. Pobres e fracassados – parece que era isso que queriam escrever nas linhas de suas mãos e eu pouco podia, pouco sabia fazer para ajudá-los a fugir deste destino. Não pensem que só chorei durante esse ano, também sorri e cantei com minha turma, fui dura, brava algumas vezes, afinal queria muito que aprendessem, vibrei com suas conquistas e me senti parte de suas vidas. E no final do ano muitos deles estavam diferentes e sabiam ler e escrever.

        Depois disso, muitos outros vieram, muitos outros alunos, crianças e adultos povoaram minha vida. Outras escolas se sucederam à primeira – não muitas, pois fui aprendendo a ganhar raízes, também fui encontrando parceiros mais interessantes e interessados em melhorar suas práticas, tanto nas escolas estaduais como nas municipais por onde passei. E, sendo assim, fui cada vez mais acreditando que aquele era meu lugar. E pela minha inseparável malinha – que ora era uma sacola, ora era o próprio porta-malas do carro – passaram muitas coisas diferentes: livros, jogos, tesoura, cola, papéis, cadernos (muitos), sucatas, rótulos, sementes, fitas K7, fitas de vídeo... e muitos, muitos textos, alguns tão difíceis que eu começava a ler e os deixava de lado, outros que eu devorava com minhas parceiras, outros ainda que eu achava impossível serem de fato sérios... Só sei que, ao lado disso tudo, dentro da malinha compartilhavam do mesmo espaço coisas materiais e muitas coisas nem sempre palpáveis: dúvidas, certezas, conflitos, alegrias, descontentamento, euforia, paixão, satisfação e muita busca.

        Cada vez sabia mais que o que me movia era estar dentro da escola, não importava muito se de educação infantil, 1ª a 4ª série ou se de jovens e adultos: aquele espaço de convivência intensa entre as pessoas e das pessoas com o conhecimento é o que me satisfazia. Até que um dia surge uma oportunidade – única, é o que diziam as pessoas de modo geral. Estava eu, pela primeira vez na vida, frente a frente com a possibilidade de sair da escola que até então, com maior ou menor intensidade, sempre tinha sido o único "palco por onde andei". Havia a chance de integrar a equipe técnica da Secretaria de Educação, que era muito respeitada pela maioria dos professores da rede municipal. Fiquei numa dúvida cruel: por um lado estava tendo uma possibilidade de crescer na carreira dentro de uma rede pública de que eu gostava muito e me orgulhava de fazer parte, por outro teria de abrir mão do "aconchego reconfortante" da escola e me atirar rumo ao desconhecido.

        Demorei muito a me decidir. Nunca imaginei que fosse tão sofrido ter de tomar decisões. Como eu poderia ser tão ingrata e abandonar quem sempre me acolheu tão bem, como seria capaz de viver sem aquele burburinho gostoso de escola quando tem gente, quando tem vida? Mas também, como perder essa oportunidade – única – que acenava para mim como uma chance de conhecer mais, estudar mais... Optei, então, depois de muitas noites sem dormir, muito choro e dores de cabeça, por entrar por essa nova porta que se abria a minha frente, porém não poderia imaginar minha vida sem alunos, e assim continuei sendo professora de jovens e adultos no período noturno.

        Outra etapa da minha vida se iniciava. Estava diante de uma nova função nunca antes por mim vivida, que só conhecia do lado de cá, o de professora que observava de longe o que faziam as pessoas da equipe técnica. O início não foi nada fácil. O primeiro dia novamente parecia com aquele, daquela meninazinha de laço no cabelo que deixava o conforto do lar para aventurar-se num mar de incertezas, levando em sua malinha agora um coração apertado, mas também ansioso pela novidade que se mostrava fascinante, pois acenava com a possibilidade do convívio com outras pessoas e outros saberes. Tinha então novos afazeres, graças a Deus, todos relacionados à escola.

         No primeiro ano, penso que engordei "uma tonelada", tamanha era minha ansiedade em fazer tudo da melhor forma possível. Sentia um medo enorme de não "dar conta do recado", de não ser capaz de contribuir de fato para que os outros professores pudessem trabalhar melhor... De verdade eu acreditava que se eu fizesse tudo direitinho, todos iriam gostar de estudar e procurar mudar suas práticas (quanta pretensão!). Minha mala agora tinha ficado superchique, parecia uma executiva, com pasta de pelica bege, presente não mais do meu avô, que infelizmente já havia partido, mas de minha mãe, que estava muito orgulhosa da sua jovem filha. Dentro dela? Proposta curricular, textos e mais textos teóricos, os mais recentes que conseguia, para serem fartamente distribuídos aos professores, durante minhas visitas às escolas.

        Além disso, tinha outro ponto, que era ao mesmo tempo um alento e um desafio: fazer parte de uma equipe composta de professoras que, como eu, eram novas nessa função e por isso também estavam construindo seu papel e seu lugar no grupo. Isso era bom porque estávamos "buscando nosso lugar ao sol" e por isso tínhamos de nos ajudar mutuamente – e o único jeito que conhecíamos para fazer isso era estudando. Mas, por outro lado, todas sabíamos que para nos tornarmos uma equipe não bastava compartilhar a mesma sala e os mesmo problemas a resolver... Era preciso muito mais. E todas, de modo geral, se esforçavam para isso, o que também foi um aprendizado. Embora muitas vezes tivesse pensado no quanto tinha sido uma idiota em deixar o "conforto pobrezinho do meu lar" para me arriscar por "mares nunca dantes navegados", de certa forma tudo isso me seduzia e, como também não sou de "abandonar o barco", segui em frente. Foram anos de estudo e desafios e minha malinha, fiel escudeira, que me acompanhava de porta em porta, de escola em escola, carregou uma variedade imensa de papéis, registros, relatórios, ideias, projetos, observações... Fui aprendendo – pelo menos creio que sim – a contribuir um pouco mais com o trabalho dos meus colegas professores, tentei ser parceira deles e, nesse caminhar, nunca deixei de respirar escola. Fui aprendendo, nesses anos de trabalho, assim como minhas colegas de equipe, a definir melhor o meu papel. Já sei que, para que a educação se transforme, não basta apenas distribuir aos professores uma infinidade de textos de fundamentação teórica: para que os textos façam sentido, é preciso um trabalho de formação contínua, de discussão real sobre a prática pedagógica.

        Recebi, então, recentemente, um convite maravilhoso, o mais sedutor de toda a minha vida profissional, que tinha como ingredientes: escola, professores, alunos e formadores. Além disso, poderia conciliar esta ação com o trabalho que vinha fazendo com as escolas de meu município. Então, continuando a acreditar que a escola é por excelência o lugar em que as grandes mudanças na vida dos alunos acontecem, eu e minha malinha nos aventuramos por outros mares – claro que sem deixar de retornar ao porto seguro, onde eu fiz minha morada que é a secretaria onde trabalho. Comecei então a trabalhar com formação de professores. Na mala – agora de viagem, com rodinhas para facilitar o transporte "do peso do saber" – carregava algumas roupas, que variavam conforme a estação; muitos livros, literários e teóricos; fitas de vídeo, cadernos para as anotações, uma pauta a ser discutida e uma imensa vontade de contribuir de alguma forma com o trabalho dos professores deste país. Esta possibilidade me encantou e mudou radicalmente meu jeito de pensar a escola. Estava vivendo um momento único e, com ele, a possibilidade de conhecer pessoas – as mais diferentes, com as mais diferentes experiências – e fazer parte de um trabalho coletivo de fato, estudar e aprender...

        Isso tudo me parecia o paraíso, era muito mais do que um dia eu havia sonhado...

        Mas, quem foi que disse que os sonhos não se tornam realidade e podem ser mais maravilhosos ainda?

        Na sequência desse convite, na verdade como consequência dele, recebi outro. Agora sim, um convite que aquela meninazinha, que nem sequer frequentou o jardim, não poderia jamais imaginar. Participar da equipe pedagógica do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores! Esse era o presente mais lindo que um dia alguém poderia me dar. Agora teria de me afastar um pouco do meu porto seguro, visto que a viagem era longa – a princípio isto me assustou, mas agora, já mais experiente, tenho certeza de que "navegar é preciso" e que quando eu voltar trarei na mala muitas coisas boas para compartilhar com os companheiros em terra.

        Estou aqui então, carregando nas mãos uma mala cheia de bons sonhos, sonhados e construídos a muitas mãos e cabeças, por um grupo de professoras que acredita que é possível pensar e fazer educação neste país. Nesta mala estão depositadas muitas esperanças, não de milagres ou mágicas, visto que o que carrega é conhecimento, mas de possibilidades de mudança. E eu? Aprendi que a escola com certeza é minha vida e que quero viver ainda muito, até que um dia, bem velhinha, possa abrir minha malinha e olhar lá dentro todas as recordações boas que esta profissão me deu de presente.

Rosa Maria Monsanto Glória.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 47-53.

Entendendo o artigo:

01 – Qual a principal motivação da autora para querer ir à escola na infância, considerando sua condição socioeconômica?

      Para a autora e a maioria das crianças de sua geração sem muitos recursos, a escola de educação infantil era "artigo de luxo". Sua principal motivação para querer ir à escola, especificamente ao "Grupo" (Ensino Fundamental), era o desejo de aprender a ler e a escrever, algo que ela observava nas meninas mais velhas.

02 – Qual objeto se tornou um símbolo da ansiedade e dos sonhos da autora em seu primeiro dia de aula, e por quê?

      A mala preta que ganhou de seu avô foi o objeto mais fascinante. Ela representava um "mundo de coisas" que caberiam dentro dela – cadernos, estojos, livros – e era o âncora de todos os seus sonhos de menina que ansiava por ir à escola.

03 – Como a autora se sentia durante as férias escolares, e o que essa atitude revela sobre sua relação com a escola?

      Nos primeiros dias de férias, a autora ficava eufórica, mas após uma ou duas semanas, sentia muita saudade da escola. Ela passava o tempo engraxando sua mala e arrumando suas coisas, o que revela o quanto a escola era um espaço vital e central em sua vida, não apenas para o aprendizado, mas para a convivência social.

04 – Qual foi a decisão de carreira da autora na adolescência e como ela se sentiu ao ser aprovada para o curso de Magistério?

      Na adolescência, ela definiu que seria professora. Ao ser aprovada no "vestibulinho" para o curso de Magistério, mesmo na segunda chamada, ela se sentiu radiante e orgulhosa, pois era difícil ingressar naquela escola pública concorrida.

05 – Descreva a importância da escola durante os anos de Magistério da autora.

      Os quatro anos de Magistério foram descritos como "os melhores da minha vida". A escola foi um espaço onde ela viveu intensamente, participando de atividades extracurriculares, utilizando diversos espaços (como a biblioteca e a sala de estágio), fazendo amizades duradouras e tendo professores que a fizeram acreditar ainda mais na profissão.

06 – Qual foi a principal "decepção" e aprendizado da autora em seu primeiro ano como professora em uma escola de periferia?

      A autora enfrentou a hostilidade e o desânimo de colegas que não acreditavam no potencial dos alunos repetentes. Ela descobriu que apenas sua boa vontade e materiais bonitos eram insuficientes para "ajudar a mudar seus destinos", percebendo que a transformação exigia mais do que isso. Apesar das dificuldades, muitos de seus alunos aprenderam a ler e escrever.

07 – De que forma o curso de Pedagogia se diferenciava da experiência escolar que a autora almejava para sua vida?

      No curso de Pedagogia, a autora encontrou um ambiente com muitas pessoas, relações mais superficiais e professores que falavam para "grandes massas", sem conhecer os alunos individualmente. Embora aprendesse muito, ela percebeu que a faculdade era "uma escola muito diferente da escola que eu queria para viver".

08 – Qual foi a "dúvida cruel" que a autora enfrentou ao receber o convite para a Secretaria de Educação?

      Ela ficou dividida entre a possibilidade de crescer na carreira em uma rede pública que ela admirava e a necessidade de abrir mão do "aconchego reconfortante" da escola, o "burburinho gostoso" dos alunos e a convivência que tanto a satisfazia.

09 – Como a autora conciliava sua nova função na Secretaria de Educação com sua paixão por lecionar?

      Mesmo assumindo a nova função na equipe técnica da Secretaria de Educação, a autora não abriu mão de ser professora. Ela continuou lecionando para jovens e adultos no período noturno, garantindo que sua vida ainda tivesse a presença e o convívio com alunos.

10 – O que o último convite recebido pela autora (para o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores) simboliza para ela e para sua "malinha"?

      Esse convite é o "presente mais lindo", algo que a "meninazinha que nem sequer frequentou o jardim" jamais poderia imaginar. Simboliza a concretização de seus sonhos em uma escala maior. Sua "malinha", agora de viagem com rodinhas, passa a carregar não apenas materiais e livros, mas muitas esperanças e possibilidades de mudança, representando sua contínua busca por contribuir com a educação do país.

 

POEMA: A BUSCA DO SABER - MARA SÍLVIA NEGRÃO PÓVOA - COM GABARITO

 Poema: A busca do saber

             Mara Sílvia Negrão Póvoa

        Parafraseando para Sara, Raquel, Lia e todas as crianças de Carlos Drummond de Andrade, e para todos os professores alfabetizadores.

        Eu queria uma escola que cultivasse a busca do saber e alegria de ensinar em seus professores.

        Eu queria uma escola que educasse não somente a mente, mas também a alma, e possibilitasse um crescimento pessoal.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg21T8SVkD3WfXMaDN-_DGRyJiTHI1gqpmCv24eauiF60CPaawf5H7vcrlp_w8IDTppVg2K2cGWPSBnQoKDQnSkhevyB9mo8n-tiOT3J8OeBHln7QryLL4Vn5elzPAcoEmvG3hjNXy7vYWYb6J3yJykQGrYhwZaCTA83h2R78HAU285-dDCK78J6p5nL18/s320/FeedKelly22.png


        Eu queria uma escola que discutisse todos os assuntos, conteúdos e objetivos de maneira clara e honesta com seus alunos.

        Que ensinasse não apenas com o discurso e o quadro-negro, mas com a dialética, sabendo ouvir, possibilitando o pensar, o experimentar, a descoberta.

        E que com estas coisas pudesse não apenas ensinar, como também aprender.

        Eu queria uma escola onde os educadores fossem convidados a todo momento a pensar, a refletir, a procurar soluções.

        Eu queria uma escola onde todos os professores fossem amantes da nossa língua, da nossa poesia, da nossa literatura.

        E que transmitissem aos alunos este amor.

        Deus livre vocês de uma escola mesquinha.

        Deus livre vocês de uma escola sem companheiros para trocar e discutir variados assuntos.

        Deus livre vocês de “colegas” que só queiram criticar.

        Deus livre vocês de escola que só se interesse por quantidade.

        Eu também queria uma escola onde vocês pudessem, sem medo, colocar suas dúvidas.

        Eu queria uma escola onde o aprender fosse sinônimo de construção e parceria.

        Ah! E antes que eu me esqueça: Deus livre vocês de parceiros desinteressados e incompetentes.

Mara Sílvia Negrão Póvoa.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 58.

Entendendo o poema:

01 – A quem o poema é dedicado, e qual a importância dessas dedicatórias?

      O poema é dedicado a "Sara, Raquel, Lia e todas as crianças de Carlos Drummond de Andrade" e a "todos os professores alfabetizadores". Essas dedicatórias são importantes porque estabelecem o público-alvo e a temática central: a visão de uma educação ideal, tanto para os alunos quanto para os educadores.

02 – Qual a característica principal que a autora deseja que uma escola ideal cultive em seus professores?

      A autora deseja uma escola que cultive a busca do saber e a alegria de ensinar em seus professores. Isso indica a valorização de educadores que são apaixonados pelo aprendizado e por sua profissão.

03 – Além da mente, que outra dimensão a autora deseja que a escola ideal eduque?

      A autora quer uma escola que eduque não somente a mente, mas também a alma, possibilitando um crescimento pessoal. Isso sugere uma abordagem holística da educação, que vai além do conteúdo cognitivo.

04 – De que forma a autora idealiza que o ensino deva acontecer, para além do discurso e do quadro-negro?

      Ela deseja que o ensino aconteça com a dialética, onde a escola saiba ouvir, possibilitando o pensar, o experimentar e a descoberta. Isso enfatiza a importância de um aprendizado interativo e ativo, e não apenas passivo.

05 – Quais são os tipos de "escolas" ou "colegas" que a autora deseja que Deus livre os leitores?

      A autora pede que Deus livre de escolas mesquinhas, de escolas sem companheiros para trocar e discutir assuntos, de "colegas" que só queiram criticar e de escolas que só se interessem por quantidade (e não por qualidade).

06 – Qual o principal objetivo da escola em relação às dúvidas dos alunos, segundo a autora?

      A autora queria uma escola onde os alunos pudessem, sem medo, colocar suas dúvidas. Isso ressalta a importância de um ambiente seguro e acolhedor para o aprendizado e a construção do conhecimento.

07 – Qual a relação que a autora estabelece entre aprender e a "construção"?

      Para a autora, aprender deveria ser sinônimo de construção e parceria. Isso sugere que o conhecimento não é algo pronto a ser transmitido, mas sim um processo colaborativo e ativo, onde alunos e professores constroem juntos o saber.

 

 

       

CONTO: A MÃE PERFEITA - LUCINHA ARAÚJO - COM GABARITO

 Conto: A mãe perfeita

           Lucinha Araújo

Mamãe, tá certo, eu me dei mal na escola [...]

Pode parar o jogo

Você é a dona da bola [...]

        Talvez o auge de minha obsessão por fazer de meu filho um gênio da raça tenha sido a ideia fixa que me levou a procurar o Colégio Santo Inácio, de padres jesuítas, em I963, quando Cazuza tinha cinco anos. Se aquela era a melhor escola do Rio de Janeiro, era ali que meu filho iria estudar. Mas para que meu sonho se realizasse era preciso que ele passasse no exame de admissão, cuja exigência mínima era a de que o novo aluno soubesse ler e escrever. Nos preparamos para este exame como se ele fosse fatal para que eu continuasse viva. Estava tão nervosa no dia da prova que protagonizei uma cena inesquecível. De pé, debaixo da janela da sala onde ele fazia o exame, anotei uma a uma as vinte palavras do ditado nas costas de um envelope, que guardo comigo até hoje. No táxi, de volta para casa, perguntei a Cazuza como havia se saído:

        -- Não sei, mamãe!!!

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi1AbJidUeV4hZuCqeR8TSAQSG0zOsKB8JTMbzRbQllRdBnIQe7vlmvTRRchjLp1Fd5byebvWyzV5Qr18_jQJmjHn5IoNVUJ6CHt17W7m5nPCoLv7hRArtSZp-jyK4PNmsGMz03NDMJNq344lrdpIXKjT2V7u-SJ5BmG0aKmScb5leJ0YtXnQKBDdXzjBA/s1600/images.png


        Tirei então o envelope da bolsa e fiz com que ele escrevesse tudo novamente. Cazuza só errou uma palavra: escreveu verdejante com a letra "g". Fiquei bastante apreensiva até o dia em que o resultado foi divulgado. Cazuza havia conseguido! Entre mais de mil candidatos, classificou-se em quinquagésimo lugar, com nota 9,5. Qualquer mãe ficaria orgulhosa, mas não eu. Um 9,5 era pouco para mim, uma ex-estudante de colégio de freiras cujo rendimento escolar havia sido exemplar. Não podia imaginar quanto meu filho ainda iria se rebelar no futuro contra a rigidez e os métodos do Santo Inácio.

        A nossa rotina, a partir de então, era controlada. Cazuza chegava da escola, eu pegava o diário de classe na mala e organizava a sua vida de acordo com os deveres. No fim da tarde, enquanto não terminasse os deveres escritos, não podia sair para brincar. Na manhã seguinte, ele se dedicava às lições orais. Depois, eu lhe tomava os deveres. E como eu era chata nesse papel!!! João, embora ausente, não concordava com meus métodos, mesmo porque, para ele, ser um bom aluno na escola não significava muita coisa. Citava exemplos de homens brilhantes que nunca haviam conseguido um dez no boletim. Cazuza corria para ele nessa fase para se proteger de mim.

        Felizmente meu filho encontrou duas grandes válvulas de escape para suportar meu temperamento autoritário enquanto era criança. Suas duas avós. Minha mãe, Alice, representava para meu filho a liberdade desfrutada longe de casa. Tudo o que era proibido conosco era permitido na casa de Vovó Lice. Para acompanhar meu marido em seus incontáveis trabalhos noturnos, em sua trajetória como homem da indústria fonográfica, muitas vezes deixei Cazuza com minha mãe. A seu lado, Cazuza conheceu o reino dos céus. Tomava banho se quisesse, comia todas as guloseimas desejadas e, pior ainda, assistia televisão, hábito proibido por João. Às vezes, na volta para casa, ele comentava o filme da Sessão Coruja, o que deixava o pai muito bravo. Mas a paixão de Cazuza por minha mãe não tinha limites. Primeiro neto homem numa família de mulheres, Cazuza era o preferido mesmo e se orgulhava disso. Adorava ouvir as histórias que minha mãe lhe contava e, principalmente, retribuía a compreensão com que ela o tratava em todas as circunstâncias. Depois que se tornou famoso, Cazuza confessou numa entrevista que era com Vovó Lice que discutia as suas poesias, as rimas dos versos que nunca me mostrou. Mesmo assim, muitas vezes, o temperamento brincalhão e quase mórbido dessa fase de Cazuza não poupava nem mesmo a querida Vovó Lice. Uma de suas brincadeiras assustadoras preferidas era simular um desmaio no banheiro. Para dramatizar, ele colava aquele fiozinho vermelho que encapava os maços de cigarro grudado no canto da boca, para simular sangue escorrendo. Ele gritava, minha mãe corria para o banheiro e levava um susto imenso. Invariavelmente, ela apelava aos santos:

        -- Valha-me minha Santa Rita!

        Cazuza gargalhava. Ele repetia a encenação com alguma frequência e Vovó Lice não aprendia. Sempre se assustava.

        A segunda válvula de escape de Cazuza era dona Maria, sua avó paterna, em cuja casa de Vassouras ele passou as férias dos três aos quinze anos. Também ali era tratado como um príncipe, cercado de todos os mimos que uma avó sabe fazer, incluindo tirar as sementes de uva por uva para que ele não engasgasse, além de outras mordomias. Muitas vezes eu e João voltávamos tarde para casa depois de um baile de carnaval, ou outra festa, e Cazuza acordava antes do que nós. Gritava lá de sua cama:

        -- Vovó Maria, meu amor, vem me buscar!

        E os dois passavam toda a manhã se divertindo juntos. Mas nem ela escapava de seu apurado senso de humor. Quando falava ao telefone com Vovó Maria e ela começava a se queixar e reclamar de dormência nas mãos, Cazuza também não se continha:

        -- É, vovó, mas também, o que você quer? Você já está bem velhinha e não quer ter nada? Faz o seguinte vovó: corta as mãos!!!

        Em 2 de maio de 1997, Vovó Maria completou 99 anos.

        A paixão de Cazuza pelos animais começou com um periquito perdido que apareceu no nosso quarto-e-sala. O apartamento térreo tinha um pequeno quintal ao ar livre e ali ele colecionava seus animaizinhos de estimação. Tempos depois comprei uma fêmea e um viveiro e os periquitos se multiplicaram em 33 e acabaram todos na casa de minha mãe em Vassouras, para onde foram também um coelho e um aquário bastante habitado. Aos cinco anos, ganhou seu primeiro cachorro, uma cadela que batizou de Sunny. Tinha o pelo dourado que brilhava ao sol, mas seis meses depois foi atropelada, para total desespero de Cazuza. Enquanto o veterinário tentava, em vão, salvá-la, Cazuza, bastante nervoso, rasgou com as mãos as pernas da bermuda jeans que estava usando. Como presente de uma vizinha, a jornalista Sandra Moreyra, na época uma menina, ganhou outra cadela logo depois. Infelizmente, ela também ficou doente e morreu em uma semana.

        Mas meu filho não desistiu. Depois de um fim de semana em Friburgo, com tia Maryse, Paulinho e Márcia Muller, ele voltou para casa com outra cadela que, embora preta e feia, cismou em também lhe chamar de Sunny. A Sunny ll, que sobreviveu e ficou oito anos em casa – dos treze que viveu –, até mudarmos para o Leblon, quando o seu destino foi o mesmo dos outros – a casa de Vovó Lice em Vassouras. Cazuza escolheu o mais bonito filhote da última ninhada de Sunny ll. Seu nome era Wanderley Cardoso, em homenagem aos olhos verdes, parecidos aos do cantor. Cazuza carregava Wanderley para toda parte, principalmente à praia, onde meu filho ficou conhecido como o dono de Wanderley, que se parecia a um rusk siberiano, embora fosse um vira-lata de primeira. Certo dia, num carnaval, Cazuza saiu com Wanderley para brincar na Banda de Ipanema. Lá pelas oito da noite, meu filho chegou em casa sem o cachorro. Mas cadê o Wanderley:

        -- Não sei, mãe, ele sumiu. Procurei, procurei e não acho.

        -- Cazuza, você é um irresponsável!

        Zeca Neves guardou na memória outra história de Wanderley na praia do Arpoador. Cazuza, com dentista marcado para as três da tarde, ficou furioso quando Wanderley se engatou com uma cadela e não havia meio de separá-los. Às duas horas, cansado e apressado, gritava com seu cão:

        -- Logo agora você faz isso comigo!!!

        Nossa cozinheira, Cida, que era louca pelo cachorro, já organizara uma expedição de resgate quando o programa Fantástico começou a exibir uma reportagem sobre a Banda. E lá estava ele, todo fantasiado, trançando entre as pernas dos foliões. Embora a matéria tenha sido gravada de tarde, saímos, Cida e eu, à procura de Wanderley, seguindo o itinerário da Banda. Finalmente o encontramos na Praça da Paz, todo fantasiado, andando de um lado para o outro, à procura de seu dono. Cazuza nem deu bola. Nos seus dois últimos anos de vida, meu filho ganhou outro cachorro, o Mané, um weimaraner. Um cão sem a menor identidade. Conviveu muito pouco com seu dono.

        Cazuza viveu outras várias fases de interesses quando menino. Em sua prodigiosa imaginação para criar histórias, ele preencheu vários cadernos com suas histórias: criava famílias inteiras e um destino para cada um de seus personagens – desquites, traições, mortes, bigamias. Quase ao mesmo tempo surgiu o interesse por geografia. Desde os sete anos, Cazuza saciava a curiosidade, consultando com sofreguidão a Enciclopédia Barsa. Alguns amigos de João do futebol se reuniam todos os sábados depois do jogo em São Conrado, só pelo prazer de sabatiná-lo.

        -- Cazuza, qual a capital do Zaire? E a renda per capita?

        Ele acertava todas. Impressionante.

        Cazuza acabou realmente se tornando um expert no assunto, a ponto de seus colegas de escola – e outros amigos – ligarem lá para casa para tirar suas dúvidas sobre geografia, populações, capitais, culturas dos países. Ele deitava-se no chão de seu quarto com o mapa-múndi aberto e se concentrava inteiramente. Passava grande parte de seu tempo trancado no quarto, no seu mundinho particular. João, nessa fase, brincava com ele:

        -- Você vai ser o quê? Professor de geografia? Isso não dá dinheiro.

        Mais tarde, costumava ler romances com o atlas ao lado, para entender direitinho onde se passava a ti ama. Ele devia ter uns oito anos quando recebemos em casa, para um jantar quase cerimonioso, o venezuelano Manoel Guevara, casado com uma prima minha e que naquele momento exercia o cargo de ministro dos Transportes em seu país. O apartamento estava perfeito, e nós três, muito bem vestidos. Cazuza usou um de seus modelos da Bebê Conforto, a última palavra em roupas infantis no Rio de Janeiro dos anos 60. Antes da chegada das visitas, preocupado com a irreverência latente do filho, João chamou Cazuza num canto com recomendações:

        -- Olha, meu filho, eu sei que você não tem a menor cerimônia com as pessoas. Mas hoje, por favor, não faça perguntas, não diga bobagens.

        Durante o jantar, duas ou três, vezes, João cutucou Cazuza por debaixo da mesa. Como se não estivesse entendendo nada e exibindo um ar inocente, denunciou João:

        -- O que foi, pai?

        Até que o ministro começou a contar sobre um túnel que havia construído em sua terra, um túnel de trem subterrâneo. E afirmava que aquele túnel que tinha uma determinada extensão era o maior da América Latina. Cazuza retrucou no ato:

        -- Não é, não!

        Levantou da mesa e saiu correndo para o quarto. Quando voltou, trazia um livro nas mãos provando não só que a extensão do túnel alardeada pelo ministro estava errada como também que aquele não era, definitivamente, o maior da América Latina. O ministro ficou encantado. No dia seguinte mandou de presente para Cazuza um sofisticado atlas inglês.

        Tempos depois, Cazuza se apaixonou por arquitetura e urbanismo. Criava cidades com madeiras e caixas de fósforos e também todo o seu funcionamento. Na casa de minha mãe em Vassouras – que nessa época havia se mudado definitivamente com papai, já aposentado, para a cidade –, Cazuza passava horas no quintal armando suas metrópoles imaginárias, todas elas com população definida, além de renda per capita e seu cotidiano. Sempre pensei que meu filho acabaria se tornando um engenheiro, um arquiteto, um urbanista, tal a dedicação e empenho com que mergulhava compenetrado nesses assuntos. Apesar disso, o rendimento escolar de Cazuza era péssimo. Suas notas, eu pensava, eram inadmissíveis para um garoto inteligente e esperto como ele. E, invariavelmente, eram motivo de castigo para meu filho. Já com os esportes, Cazuza foi uma tragédia, para desespero do pai. Todos os sábados, meu marido frequentava um clube de futebol formado por trinta homens com mais de trinta anos, com uma exceção aberta a João, que foi admitido aos 24. Era o chamado Clube dos 30, em São Conrado. João sempre teve amigos mais velhos e ali conviveu com Paulo Mendes Campos, Luís Carlos Barreto, Thiago de Mello, Armando Nogueira, que também levavam seus filhos ao futebol de todos os sábados. Além disso, em toda a sua vida, meu marido foi um esportista que praticou tênis, vôlei e futebol. Ele queria muito que o filho seguisse seu exemplo, como conta: "Sempre desejei que Cazuza se interessasse por esportes, mas quando eu o levava ao Clube dos 30, Cazuza não demonstrava a menor vontade de jogar futebol. Às vezes até brincava com a bola, mas rapidamente se desinteressava. O que o empolgava mesmo era pegar meu carro e dirigir em volta do loteamento."

        A frustração de João com o total desinteresse do filho por seu esporte favorito foi motivo de uma crônica do jornalista Armando Nogueira, publicada no Jornal do Brasil, em sua coluna "A Grande Área", em 1968:

        Cazuza, dez anos, chegou da escola, participando ao pai uma novidade:

        -- Papai, estou jogando futebol, lá no colégio.

        O pai, que sempre bateu sua bolinha razoavelmente, ficou na maior alegria: nunca tinha confessado, mas o desinteresse do filho por futebol era uma das pequenas tristezas de sua vida. Há alguns anos ele andou tentando despertar no garoto o gosto pela pelada: no clube em que joga um racha semanal, chegou mesmo a levar Cazuza para o campo, ficava no gol e só para estimular papava frangos tremendos nos chutes de Cazuza.

        Nos últimos tempos, porém, Cazuza abandonou na garagem a bola e as chuteiras e nunca mais falava de futebol. Daí a felicidade do pai ao ouvir do menino que estava jogando bola, agora oficialmente, no time do colégio.

        -- É no time do colégio, Cazuza?

        -- É, sim senhor.

        -- No primeiro time, Cazuza?

        -- Não.

        -- Ah, é no segundo time, meu filho?

        -- Também não, papai.

        -- Não vai me dizer que te puseram no terceiro time. Terceiro time nem deve existir lá no colégio.

        -- Existe, sim, mas eu não jogo no terceiro time também, não. Sou do Fusa.

        -- Fusa? Que diabo é isso, Cazuza?

        -- Fusa é o seguinte, papai: tem o primeiro time, o segundo e o terceiro times. Aí eles pegaram a turma que sobrou e misturaram todo mundo. Isso é que é Fusa.

         -- E você joga de quê, nesse tal de Fusa? – perguntou o pai, já inteiramente desanimado com o herdeiro de suas virtudes futebolísticas...

        -- Eu sou reserva do Fusa, papai.

        Em sua carreira, João fez de tudo na indústria do disco. Começou na gravadora Copacabana e, depois, passou pela Odeon, Mocambo, Festa e Sinter, que foi comprada pela Philips. Naquela gravadora, João produziu discos de Elis Regina, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, Jorge Ben. Praticamente lançou Caetano Veloso e Gal Costa no disco Domingo, o primeiro da carreira de ambos. Lançou, também, o primeiro LP dos Novos Baianos. Considero João o homem de disco mais importante do Brasil, pois conheceu a fundo o seu ofício ao trabalhar em todos os cargos dentro da indústria - foi divulgador de rádio, de imprensa, produtor de estúdio, até fundar a Som Livre, em dezembro de 1969.

        Por isso, desde pequenininho, meu filho teve sua atenção naturalmente desperta para o mundo da música. Eu e João gostávamos de música, desde o namoro. Na época, eu estudava violão e, em nossos encontros, nos distraíamos em tocar e cantar. Para Cazuza, aconteceu ainda de conhecer de perto os artistas que frequentavam nossa casa. Desde garoto, a paixão de Cazuza por Rita Lee era avassaladora. Não perdia nenhum de seus shows. Silvinha Teles foi minha colega de colégio e acompanhou Cazuza desde o seu nascimento. Elis Regina o viu crescer, assim como Jair Rodrigues, Os Novos Baianos, Caetano, Gil, Gal. Meu filho dizia que não tinha mitos, pois conviveu com todos eles.

        Nos tempos do Santo Inácio, Cazuza tinha dois grandes amigos: Ricardo Quintana e Pedro Bial, hoje jornalista e poeta. Com Pedro, aliás, ele já havia repartido a sala de aula no Colégio Chapeuzinho Vermelho. Com meu filho, Pedro frequentou o Clube dos 30, fez viagens em excursão do colégio e entrevistou o poeta Vinícius de Morais para um trabalho escolar sobre diplomatas que abandonaram a carreira. As recordações de Pedro Bial sobre a infância e adolescência de ambos:

        "Cazuza não era nada esportivo, não gostava de esportes. Era tímido e fechado. Não se socializava com o resto da turma. Nunca teve muita paciência para o social. Era inteligente e desenhava muito bem. Fazia desenhos de mapas e cidades, superorganizado. O resultado era muito bem-feito e, para cada um dos lugares, ele inventava nomes de fantasia. Na época do Santo Inácio, ele teve uma relação forte com Ricardo Quintana e, juntos, inventavam histórias, um espaço meio mitológico, um mundo só deles. Minha grande luta era a de ser aceito na brincadeira. A grande sensação da escola eram as mulheres nuas que Cazuza desenhava: todos os alunos pagariam uma nota para ter um desenho dele – mulheres eróticas, sexies, vamps, lindas, personagens marcantes. Cazuza não era do tipo popular e nem de ficar desafiando professores. Quieto, ficava no seu canto conversando com o Ricardo ou comigo. Aos treze anos - tínhamos a mesma idade –, o pai de Cazuza conseguiu marcar uma entrevista nossa com o Vinícius de Morais. Ficamos encantados com aquele líquido amarelinho que ele tomava. Achamos muito bacana aquele negócio do uísque."

        A vida escolar de Cazuza, na verdade, nunca me deixou tranquila. Ele passou a desafiar minha autoridade à medida que crescia: passou a esconder o diário de classe e a rasgar boletins com notas baixas. A primeira vez em que ficou de recuperação na escola, no final do primeiro ano ginasial, em três matérias, não teve coragem de voltar para casa. Da escola, rumou direto para o escritório de João, na Som Livre, e só voltou debaixo das asas do pai. Quando entraram, João me chamou no quarto e alertou:

        -- Cazuza ficou de recuperação e está apavorado com você. Veja lá o que vai fazer. Esses escândalos não resolvem nada!!!

        Mas, no dia seguinte, quando meu marido saiu para o trabalho, tive um duplo acesso de loucura. Primeiro, porque não me conformava com a traição de Cazuza. Como eu, que me julgava a dona do pedaço, tinha sido a última a saber? Meu ciúme era doentio. E depois veio a bronca monumental pela recuperação no Santo Inácio. Os catorze anos de Cazuza foram como uma marca de luta cega pela liberdade. Suas reações diante de minha autoridade já não eram mais de choro e quarto fechado. Ele me enfrentava, respondia e desafiava. Cada vez com mais intensidade. E eu comecei a lutar contra a dura realidade que, dali em diante, seria obrigada a enfrentar: conviver e perdoar as atitudes extremas de meu filho, até entender que ele não era mais o meu garotinho.

Lucinha Araújo.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 87-92.

Entendendo o conto:

01 – Qual era o principal objetivo de Lucinha Araújo em relação à educação de Cazuza no início do conto?

      O principal objetivo de Lucinha Araújo era fazer de Cazuza "um gênio da raça", buscando para ele a melhor educação possível, como o Colégio Santo Inácio.

02 – Como Cazuza se saiu no exame de admissão para o Colégio Santo Inácio e qual foi a reação de sua mãe?

      Cazuza se classificou em quinquagésimo lugar, com nota 9,5, entre mais de mil candidatos. Lucinha Araújo, no entanto, não ficou orgulhosa, achando que um 9,5 era "pouco" para um filho seu.

03 – Quais eram as duas principais "válvulas de escape" de Cazuza para suportar o temperamento autoritário de sua mãe?

      As duas principais válvulas de escape de Cazuza eram suas duas avós: Alice (Vovó Lice), mãe de Lucinha, e dona Maria, avó paterna.

04 – Descreva a relação de Cazuza com Vovó Lice.

      Cazuza tinha uma paixão ilimitada por Vovó Lice, que representava a liberdade. Na casa dela, ele podia fazer o que era proibido em casa, como comer guloseimas e assistir televisão. Ele se sentia compreendido por ela e até discutia suas poesias com a avó.

05 – Cite um exemplo do senso de humor de Cazuza com Vovó Lice.

      Cazuza gostava de simular desmaios no banheiro, usando um fio vermelho para simular sangue, e gritava para assustar Vovó Lice, que sempre se assustava e apelava aos santos.

06 – Como João, pai de Cazuza, via a questão do rendimento escolar e quais eram suas discordâncias com Lucinha?

      João não concordava com os métodos rígidos de Lucinha, pois para ele, ser um bom aluno não significava muito. Ele citava exemplos de homens brilhantes que nunca haviam conseguido um dez no boletim.

07 – Além da música, quais outros interesses Cazuza demonstrou ter durante a infância, que surpreendiam pela sua dedicação?

      Cazuza demonstrou grande interesse por geografia, tornando-se um expert, e também por arquitetura e urbanismo, criando cidades imaginárias com detalhes de população e funcionamento.

08 – Qual foi o episódio que demonstrou o conhecimento de Cazuza em geografia e como ele impressionou o ministro venezuelano?

      Durante um jantar, Cazuza corrigiu o ministro venezuelano sobre a extensão e o título de "maior da América Latina" de um túnel. Ele foi ao quarto buscar um livro e provou seu ponto, o que encantou o ministro.

09 – Como o pai de Cazuza reagiu ao desinteresse do filho por esportes, e qual anedota é contada sobre o futebol?

      João ficava frustrado com o desinteresse de Cazuza por esportes, especialmente futebol. Uma crônica de Armando Nogueira relata que Cazuza dizia jogar no "Fusa", que era a turma "que sobrou" após a formação dos três times oficiais do colégio.

10 – Qual foi a mudança na relação de Lucinha com Cazuza a partir dos quatorze anos de idade dele?

      A partir dos quatorze anos, Cazuza passou a desafiar a autoridade de Lucinha, escondendo o diário de classe e rasgando boletins. Ele a enfrentava e respondia, e Lucinha percebeu que precisaria conviver e perdoar as atitudes extremas do filho, entendendo que ele não era mais seu "garotinho".

 

ARTIGO DE OPINIÃO: SER PROFESSORA É O MELHOR TRABALHO PARA UMA MULHER - ROSA MARIA ANTUNES DE BARROS - COM GABARITO

 Artigo de opinião: Ser professora é o melhor trabalho para uma mulher

               Rosa Maria Antunes de Barros

          Esta história – esta reflexão – é dedicada a todos os professores que acreditam que da sua competência profissional depende a qualidade da educação escolar

        "O melhor trabalho para uma mulher é ser professora: fica só meio período na escola, ganha seu dinheirinho e ainda pode cuidar da casa e dos filhos." Isso era o que Sônia, quando criança, ouvia nas conversas da sua mãe com suas tias que também eram professoras. Ela mesma não sabia o que queria ser, não gostava de estudar, mas de vez em quando brincava de escolinha no quarto dos fundos da sua casa, onde a porta verde escura servia de lousa.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFWTBAHf13GimM3HTCNVwUO6SJumH2giZwLElKIdLI0cSDYG6OIjjvUwndg33SCornFpmU-_6vciZIHtLiqFkIHeMGI1bp2o_KNPEcFnermfCSzmpaLQHpdrcrwb_K7nyjdd0AoNQFZAR6QgYUzr9RSJOetH35QWCVeo8BXQtO_cZZD33PWUt_4_pgBeU/s320/3171581-professora-cartoon-mulher-segurando-livro-e-aponte-para-quadro-negro-com-regra-vetor.jpg 


        O tempo passou e o desinteresse pela escola e pelos estudos continuava. Preferia fazer qualquer trabalho a ficar envolvida com livros e cadernos. Fazia muitas artimanhas para esconder o seu mau desempenho, mas era sempre descoberta. Quando estava fazendo pela segunda vez a sexta série, sua mãe teve uma conversa com ela e disse que iria tirá-la da escola.

        Não foi muito fácil esse momento e Sônia começou a pensar como seria sua vida sem estudo e sem a relação com os amigos e primos. Achou que estava diante de uma mudança radical e resolveu, então, se dedicar um pouco mais como aluna.

        Acabou por continuar os estudos e tornou-se professora na mesma escola onde sempre estudou. Sentia-se aliviada, pois finalmente conseguiu um diploma.

        Começou a trabalhar como professora numa escola pública e depois de alguns anos teve uma primeira experiência como professora de uma classe de 1ª série. Não conseguia alfabetizar todos os seus alunos e nas reuniões justificava-se dizendo que o problema era o nível socioeconômico das crianças: pobres, largadas, com pais desinteressados, que conviviam com a violência e que iam à escola para comer... Sabia que poderia ser bom incentivar seus alunos a irem à biblioteca da escola, um dos poucos recursos de que dispunha, mas percebia que eles não se interessavam pela leitura, porque só folheavam os livros e logo queriam mudar para outro. Essas ideias que justificavam o desinteresse e o não-aprendizado das crianças eram comuns entre muitos de seus colegas.

        A escola de Sônia ficava na periferia de um centro urbano e era uma das poucas da região que recebiam estagiários do curso normal. Todo ano, ela recebia uma em sua sala, e contava as dificuldades que enfrentava para ensinar todos os seus alunos. Dizia que não sabia o que fazer, porque se tratava de um problema social. Contava que não tinha interesse pelos cursos oferecidos pela Secretaria de Educação, afinal, a cada nova administração a moda mudava e por isso fazer cursos era perda de tempo. Além do mais, alfabetizou-se pela cartilha e mesmo assim se tornou professora, como tanta gente.

        Comentava com todas as colegas suas ideias a respeito da formação de professores, inclusive com Eliane, uma estagiária, que afirmava também concordar com ela e dizia ter escolhido ser professora porque, apesar do salário ser igual ao de um caixa de supermercado, na escola não teria de trabalhar muito, apenas meio período, teria férias duas vezes por ano e as atividades na sala de aula eram muito simples: mandar as crianças fazer as atividades do livro didático, depois corrigi-las e tirar as dúvidas daquelas com mais dificuldades.

        O tempo passou e Sônia se casou. Teve dois filhos que frequentaram uma escola de educação infantil que não fazia nenhum investimento na alfabetização porque o seu objetivo era recrear e sociabilizar e não preparar as crianças para a 1ª série. Isso não a preocupava porque seu filho mais velho havia se alfabetizado sozinho e com certeza teria sucesso no Ensino Fundamental.

        Dois anos depois, seu segundo filho ingressou na Ia série, mas infelizmente não estava alfabetizado. Sônia, agora, trabalhava em duas escolas e não tinha tempo para ajudar seus filhos nas tarefas de casa. Teve oportunidade de acompanhar o primeiro dia de aula e ficou surpresa quando descobriu que a professora era justamente Eliane.

        O semestre foi passando e Sônia foi ficando incomodada ao ver que seu filho não aprendia a ler e escrever. Fez várias reuniões com a professora e não conseguia entender como seu filho, um menino com uma família estruturada, bem alimentado, protegido da violência, não tinha sucesso. Foi sugerido que procurasse um psicólogo e Sônia resolveu consultar o melhor do seu seguro-saúde, que, segundo soube, vivia se atualizando e participando de cursos e congressos. Feito o diagnóstico, nada foi encontrado a não ser a confirmação do desinteresse pelas atividades escolares. Sônia comentou com Eliane e ela disse que nada podia fazer, afinal não iria mudar a sua forma de trabalhar de tantos anos por causa do filho dela. Os meses foram se passando, e, em agosto, Eliane precisou pedir uma licença médica prolongada. Veio então uma professora substituta, Fátima.

        Sônia foi imediatamente procurá-la para contar o problema do seu filho e Fátima ouviu-a atenciosamente. Outras mães, insatisfeitas porque as crianças não aprendiam a ler e escrever, também foram conversar com ela. A professora resolveu fazer uma reunião de pais e contar como era o seu trabalho, em que pressupostos teóricos ele estava apoiado, porque iriam sentir que as mudanças seriam grandes dali para a frente. Sônia, assim como muitos pais, ficou preocupada com as mudanças, mas não tinha opção a não ser concordar. As mudanças eram mesmo muito grandes e se via que ela tinha uma forma muito diferente de tratar os conteúdos escolares, especialmente a linguagem escrita.

        O final do ano chegou e muitas crianças avançaram, inclusive o filho de Sônia, que aprendeu a ler e escrever.

        Esta história é muito mais comum do que podemos imaginar e nos convida a algumas reflexões sobre o que significa ser professor. Precisamos ter claro, mas muito claro, que se trata de uma profissão e, como tal, requer profissionais que constantemente estejam estudando e se atualizando. A realidade nos mostra que não podemos nos dar ao luxo de dizer que não queremos aprender ou nos atualizar, pois isso é algo que está posto para qualquer profissão, inclusive a dos professores. Certamente, acharíamos absurdo ouvir de um médico que não quer conhecer novas teorias ou novas técnicas de cirurgia... Por que um professor fica tão incomodado quando há novas teorias e conhecimentos didáticos na área de educação? Hoje, qualquer profissional – engenheiro, agricultor, costureira, dentista, cozinheira... – sabe que precisa atualizar-se.

        E por que estudar é tão importante para nós, professores? Porque não é aceitável responsabilizar as crianças pela impossibilidade de a escola ensiná-las. Sabemos que há situações muito difíceis a serem enfrentadas e que não é produtivo gastar tempo e energia procurando culpados. Não podemos atribuir a responsabilidade do fracasso escolar ao nível socioeconômico dos alunos, mas também sabemos que é muito mais trabalhoso ensinar crianças de ambientes não-letrados.

        Criticamos os pais por não se envolverem com as atividades escolares de seus filhos, esquecendo-nos que eles são fruto de uma escola que em geral pouco contribuiu com sua formação, e que muitos nem sequer passaram pelos bancos escolares. E se olharmos para nós, o que diríamos do nosso desinteresse pela leitura e pela escrita, que é ferramenta fundamental da nossa profissão?

        Precisamos assumir a responsabilidade da nossa formação inadequada para não continuar perpetuando esta situação. Ser professor não é uma tarefa fácil, como sempre quiseram que acreditássemos, e só com muita competência e empenho de todos será possível reverter esta situação.

        Ser Eliane, Sônia ou Fátima é uma questão de opção.

Rosa Maria Antunes de Barros.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 72-74.

Entendendo o artigo:

01 – Qual era a percepção inicial de Sônia e de sua família sobre a profissão de professora, e como essa percepção influenciou suas escolhas?

      A percepção inicial de Sônia e de sua família (mãe e tias) era que ser professora era o "melhor trabalho para uma mulher" porque oferecia meio período na escola, um "dinheirinho" e tempo para cuidar da casa e dos filhos. Essa visão simplificada e idealizada da profissão, que Sônia ouvia desde criança, a influenciou a seguir carreira na educação, mesmo sem ter interesse pelos estudos inicialmente e buscando apenas um diploma.

02 – Como a experiência de Sônia como professora de 1ª série com alunos em dificuldade de alfabetização começou a desafiar suas crenças?

      A experiência de Sônia com alunos da 1ª série que não conseguiam ser alfabetizados começou a desafiar suas crenças ao colocá-la diante de uma realidade complexa. Ela justificava o não-aprendizado pelo nível socioeconômico das crianças, pela falta de interesse dos pais e pela violência, atribuindo o problema a fatores externos e sociais, e não à sua própria prática pedagógica. Essa dificuldade a fez questionar suas abordagens, embora inicialmente não a levasse a buscar soluções em formação continuada.

03 – De que forma a atitude de Eliane, a estagiária, reflete uma mentalidade comum entre alguns profissionais da educação?

      A atitude de Eliane reflete uma mentalidade comum entre alguns profissionais da educação que veem a profissão como um "trabalho simples", com poucas exigências e muitas vantagens (meio período, férias, atividades de sala de aula supostamente fáceis). Ela não demonstrava interesse em aprofundar seus conhecimentos ou inovar, contentando-se em apenas "mandar as crianças fazer as atividades do livro didático", o que indica uma visão limitada e descompromissada com a complexidade da alfabetização e do aprendizado.

04 – Qual foi o ponto de virada para Sônia em relação à sua percepção da profissão de professora, e o que a levou a essa mudança?

      O ponto de virada para Sônia ocorreu quando seu próprio filho, com uma família estruturada e protegida da violência, não conseguiu ser alfabetizado na 1ª série pela professora Eliane. Essa experiência pessoal a fez confrontar a ineficácia das práticas pedagógicas que ela mesma utilizava e defendia. A dificuldade do filho, que não se encaixava nas justificativas anteriores sobre "nível socioeconômico", a impulsionou a buscar ajuda e a refletir sobre a importância da competência profissional do professor.

05 – Como a chegada da professora substituta, Fátima, impactou a visão de Sônia sobre o processo de ensino-aprendizagem e a responsabilidade do professor?

      A chegada da professora substituta, Fátima, impactou profundamente a visão de Sônia. Fátima demonstrou uma abordagem profissional, baseada em pressupostos teóricos e disposta a implementar mudanças significativas na forma de tratar os conteúdos, especialmente a linguagem escrita. A capacidade de Fátima em alfabetizar o filho de Sônia e outras crianças insatisfeitas, mesmo em um curto período, evidenciou para Sônia que a competência e o engajamento do professor são fundamentais e que a responsabilidade pelo aprendizado não pode ser atribuída apenas aos alunos ou ao seu contexto social.

06 – Segundo o artigo, por que a atualização e o estudo são tão cruciais para os professores, e qual analogia é utilizada para reforçar essa ideia?

      Segundo o artigo, a atualização e o estudo são cruciais para os professores porque a profissão, como qualquer outra, requer profissionais que se constantemente se desenvolvam e se atualizem. Não é aceitável que os professores responsabilizem as crianças pela impossibilidade da escola ensiná-las. A analogia utilizada para reforçar essa ideia é a de um médico que se recusasse a conhecer novas teorias ou técnicas de cirurgia, algo que seria considerado absurdo. Da mesma forma, os professores não deveriam se sentir "incomodados" com novas teorias e conhecimentos didáticos na área da educação.

07 – Qual é a principal mensagem do artigo ao afirmar que "Ser Eliane, Sônia ou Fátima é uma questão de opção"?

      A principal mensagem do artigo ao afirmar que "Ser Eliane, Sônia ou Fátima é uma questão de opção" é que a postura profissional do professor é uma escolha individual. Eliane representa a postura descompromissada e acomodada; Sônia, a professora que, embora inicialmente desinteressada e justificadora, passa por uma transformação a partir de uma experiência pessoal; e Fátima, a profissional competente, engajada e comprometida com a constante busca por conhecimento e com a responsabilidade de promover o aprendizado de todos os alunos. A frase destaca que o professor tem a autonomia e a responsabilidade de decidir qual caminho seguir em sua carreira, impactando diretamente a qualidade da educação.