Crônica: Ai de ti, Copacabana
Rubem Braga
1. AI DE TI, Copacabana, porque eu já
fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste;
porém minha voz te abalará até as entranhas.
2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti
chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e
deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.
3. Já movi o mar de uma parte e de
outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este
sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia.
4. Sem Leme, quem te governará? Foste
iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.
5. Grandes são teus edifícios de
cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas
eles se abaterão.
6. E os escuros peixes nadarão nas tuas
ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as
ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico,
até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.
7. E os polvos habitarão os teus porões
e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em
tuas galerias, desde Menescal até Alaska.
8. Foste iníqua perante o oceano, e o
oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas. Então quem especulará sobre o
metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.
9. Ai daqueles que dormem em leitos de
pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e
não obedecem à lei do verão.
10. Ai daqueles que passam em seus
cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente
a hora da provação.
11. Tuas donzelas se estendem na areia
e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das
lambretas instrumentos de concupiscência.
12. Uivai, mancebos, e clamai,
mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos
quebrantarei.
13. Ai de ti, Copacabana, porque os
badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do
morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do
Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.
14. E os pequenos peixes que habitam os
aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.
15. Por que rezais em vossos templos,
fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu
não conheço a multidão de vossos pecados?
16. Antes de te perder eu agravarei s
tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando
sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e
troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só
verão.
17. E tu, Oscar, filho de Ornstein,
ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu
palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.
18. E no Petit Club os siris comerão
cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino
para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos
anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia
cronistas.
19. Pois grande foi a tua vaidade,
Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não
viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal.
Pois o fogo e a água te consumirão.
20. A rapina de teus mercadores e a
libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos
diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.
21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira
dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos
peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.
22. Pinta-te qual mulher pública e
coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última
canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu
corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás
porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção,
Copacabana!
Rio, janeiro, 1958
BRAGA, Rubem. Ai de
ti, Copacabana. 13. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 80-3.
Fonte: Livro Língua Portuguesa –
Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 106-9.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Iniquidade: injustiça.
·
Setentrião: vento norte.
·
Jamanta: arraia-gigante; peixe dos mares tropicais que atinge até 3
metros comprimento e 5 metros de diâmetro.
·
Mero: peixe do Atlântico tropical que atinge até 3 m de comprimento
e pesa até 450 kg.
·
Mancebo: rapaz, jovem.
·
Lambreta: veículo motorizado semelhante à motocicleta; motoneta; vespa.
·
Concupiscência: prazer; desejo intenso de bens ou gozos materiais.
·
Quebrantar: vencer, domar, amansar.
·
Badejos,
garoupas e tainhas: peixes do Oceano
Atlântico.
·
Fariseu: com o sentido de indivíduo que aparenta santidade não a
tendo; indivíduo hipócrita, fingido.
·
Rapina: ato de roubar, tirar, subtrair com violência.
·
Libação: ato de tomar bebidas alcoólicas por prazer e para fazer
brindes.
·
Hetaira: na antiga Grécia, mulher dissoluta, cortesã; prostituta
elegante e distinta.
·
Alfonje: sabre, espada de lâmina curta e larga.
·
Cação: peixe da família do tubarão.
02 – Caracterize o narrador
de “Ai de ti, Copacabana” usando
passagens da crônica.
O narrador é um
ser superior, um profeta, que tem o poder de prever o futuro. Trechos do texto
que justificam a resposta: “[...] minha voz te abalará até as entranhas”; “Já
movi o mar de uma parte e de outra parte [...]”; “[...] eu agravarei a tua
demência [...]”; “[...] eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá.”.
03 – A quem o narrador se
dirige? Com que objetivo?
Ele se dirige ao bairro boêmio de
Copacabana em tom ameaçador e irônico, profetizando seu fim.
04 – “Ai de ti, Copacabana” é uma crônica intertextual. Releia estes
trechos:
Ai
de ti; referver de espumas; bando de carneiros em pânico; as muralhas ruirão; a
hora da provação; Por que rezais em vossos templos, fariseus [...]; a multidão
de vossos pecados; porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá;
Pois o fogo e a água te consumirão. Com qual texto a crônica dialoga?
Justifique.
A crônica dialoga
com o texto bíblico (a Bíblia), apropriando-se de imagens e de trechos do livro
do Apocalipse.
05 – Explique a presença de
numeração nos parágrafos.
Os 22 parágrafos
são numerados como se fossem versículos da Bíblia.
06 – O que o narrador de “Ai de ti, Copacabana” expressa por
meio do texto?
a) Ironia e rancor.
b) Ameaça e lamento.
c) Desprezo e horror.
d) Queixa e dor.
e) Arrogância e alerta.
07 – Releia os trechos a
seguir e explique o que motivou as “profecias apocalípticas” do narrador.
· [...] estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia. (3).
· Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas. (8).
· Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? (8)
· [...] desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão. (9).
· Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto. [...]. (10).
· E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações. (14).
· Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados? (19).
· Pois grande foi a tua vaidade [...]. (19).
O que motivou
essas e outras “profecias apocalípticas” do narrador foram a desigualdade
social, o desprezo pela natureza, a corrupção e a especulação imobiliária, a
prostituição, as futilidades, os vícios.
08 – Releia o trecho a
seguir e explique a que ele se refere.
“Por que rezais em vossos templos,
fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite?”
O trecho refere-se à fusão de cultos
religiosos, chamada de “sincretismo religioso”.
09 – Qual é o efeito
provocado pela citação de nomes de bairros, espaços públicos, casas noturnas,
galerias comerciais, personalidade, etc.?
A citação de
nomes dá um tom documental, de registro de locais, cenários e fatos, que é uma
das marcas do gênero crônica.
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