domingo, 31 de julho de 2022

CONTO: O EDIFÍCIO - (FRAGMENTO) - MURILO RUBIÃO - COM GABARITO

 Conto: O edifício – Fragmento

            Murilo Rubião

“Chegará o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios: naquele dia ficarás fora da lei.”

Miqueias, VII, 11.

        Mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares. As especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de “vagas experiências de outra escola de concretagem”.

        Batida a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a que incumbia a direção geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices.

        1. A lenda

        Ao engenheiro responsável, recém-contratado, nada falaram das finalidades do prédio. Finalidades, aliás, que pouco interessavam a João Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no início da carreira, dirigir a construção do maior arranha-céu de que se tinha notícia.

        Ouviu atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas brancas, terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia.

        Davam-lhe ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que deveriam ser corretamente observadas. A sua missão não seria somente exercer funções de natureza técnica. Envolvia toda a complexidade de um organismo singular. Os menores detalhes do funcionamento da empresa construtora estariam a seu cargo, cabendo-lhe proporcionar salários compensadores e constante assistência ao operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer motivos de desarmonia entre os empregados. Essa diretriz, conforme lhe acentuaram, destinava-se a cumprir importante determinação dos falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda corrente de que sobreviveria irremovível confusão no meio dos obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, consequentemente, o malogro definitivo do empreendimento.

        No decorrer das minuciosas explicações dos dirigentes da Fundação, o jovem engenheiro conservou-se tranquilo, demonstrando absoluta confiança em si, e nenhum receio quanto ao êxito das obras. Houve, todavia, uma hora em que se perturbou ligeiramente, gaguejando uma frase ambígua. Já terminara a entrevista e ele recolhia os papéis espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu:

        – Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não pense em terminá-la, João Gaspar. Você morrerá bem antes disso. Nós que aqui estamos constituímos o terceiro Conselho da entidade e, como os anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos o último.

        2. A advertência

        A mesma orientação que recebera dos seus superiores, o engenheiro a transmitiu aos subordinados imediatos. Nem sequer omitiu a advertência que o encabulara. E vendo que suas palavras tinham impressionado bem mais a seus ouvintes do que a ele as do ancião, sentiu-se plenamente satisfeito.

        3. A comissão

        João Gaspar era meticuloso e detestava improvisações. Antes de encher-se a primeira forma de concreto, instituiu uma comissão de controle para fiscalizar o pessoal, organizar tabelas de salários e elaborar um boletim destinado a registrar as ocorrências do dia.

        Essa medida valeu maior rendimento de trabalho e evitou, por diversas vezes, dissensões entre os assalariados.

        A fim de estimular a camaradagem entre os que lidavam na construção, desenvolviam-se aos domingos alegres programas sociais. Devido a esse e outros fatores, tudo corria tranquilamente, encaminhando-se a obra para as etapas previstas.

        De cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia.

        4. O baile

        Inquietante expectativa marcou a aproximação do 800º pavimento. Redobraram-se os cuidados, triplicou-se o número de membros da Comissão de Controle, cuja atividade se tornara incessante, superando dificuldades, aplainando divergências. Deliberadamente, adiou-se o baile que se realizava ao termo de cada cinquenta pisos concluídos.

        Afinal, dissiparam-se as preocupações. Haviam chegado sem embaraços ao octingentésimo andar. O acontecimento foi comemorado com uma festa maior que as precedentes.

        Pela madrugada, porém, o álcool ingerido em demasia e um incidente de pequena importância provocaram um conflito de incrível violência. Homens e mulheres, indiscriminadamente, se atracaram com ferocidade, transformando o salão num amontoado de destroços. Enquanto cadeiras e garrafas cortavam o ar, o engenheiro, aflito, lutava para acalmar os ânimos. Não conseguiu. Um objeto pesado atingiu-o na cabeça, pondo fim a seus esforços conciliatórios. Quando voltou a si, o corpo ensanguentado e dolorido pelas pancadas e pontapés que recebera após a queda, sentiu-se vítima de terrível cilada. De modo inesperado, cumprira-se a antiga predição.

        [...]

RUBIÃO, Murilo. In: SILVERMAN, Malcolm. O novo conto brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 231-238.

              Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 129-132.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Pardieiro: casa ou edifício velho, em ruínas.

·        Planta: mapa, projeto, esquema para a construção de um edifício ou casa.

·        Ceticismo: estado de quem duvida de tudo; descrença.

·        Pertinácia: persistência; obstinação, teimosia.

·        Octingentésimo: 800º = que ocupa, numa sequência, a posição do número oitocentos.

·        Malogro: fracasso; falta de êxito; insucesso.

·        Meticuloso: detalhista; que se preocupa com pormenores; minucioso, cuidadoso, cauteloso.

·        Dissensão: desentendimento; divergência de opiniões ou de interesse; desavença, dissidência; oposição.

02 – Você já ouviu falar em realismo fantástico ou realismo mágico?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – Conhece as obras de representantes brasileiros dessa tendência literária, como Murilo Rubião e José J. Veiga?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – Explique no caderno a alternativa que não se refere aos temas presentes no trecho que você leu.

a)   Aspectos absurdos e fantásticos da vida.

b)   Alienação motivada por trabalho mecânico e obsessivo.

c)   Possibilidade de controle da criação.

d)   Impossibilidade de mudar a realidade.

e)   Transmissão de obras para outras gerações.

Alternativa c: o conto revel a impossibilidade de controlar a criação.

05 – Que elementos desse trecho do conto “O edifício” extrapolam a realidade, ou seja, podem ser considerados fantásticos, absurdos ou extraordinários?

      O conto apresenta elementos simbólicos misteriosos, como a impossibilidade de terminar o edifício; a referência à maldição que se cumpre na conclusão do 800° andar; o fato de terem sido gastos mais de cem anos na construção das fundações do edifício; o número ilimitado de andares; o desconhecimento da finalidade da obra.

06 – Releia o terceiro parágrafo da parte 1, “A lenda”. Como você interpreta as exigências e recomendações feitas a João Gaspar pelos dirigentes da Fundação?

      Trata-se de uma ironia. As empresas, em geral, não têm como objetivo principal o bem-estar dos operários.

07 – Quantos andares foram concluídos até o trecho do conto que você leu?

      800 andares.

08 – Leia:

        Epígrafe, no contexto literário, é uma frase ou texto, geralmente de outro autor, colocado no início de um livro, capítulo, conto, poema etc. para lhe dar apoio temático ou resumir-lhe o sentido ou a motivação.

        Os contos de Murilo Rubião costumam ser precedidos de epígrafes bíblicas. No conto “O edifício”, a epígrafe é uma profecia, uma advertência. Com qual trecho da parte 4, “O baile”, a epígrafe do conto dialoga?

      “[...] sentiu-se vítima de terrível cilada. De modo inesperado, cumprira-se a antiga predição.”

09 – Muitos críticos e estudiosos consideram o conto “O edifício”, de Murilo Rubião, como uma metáfora da criação artística e uma narrativa metalinguística, pois reflete a respeito do ato de criação.

a)   Registre no caderno as características de uma obra de arte que podem ser inferidas pela leitura do conto.

I.             É coletiva e interminável.

II.           Cada geração dá sequência à obra iniciada anteriormente.

III.          É intertextual, pois dialoga com outros movimentos artísticos, com outras obras e com outros autores.

         Todas as alternativas estão corretas.

b)   Que trecho desse conto pode ser relacionado ao confronto entre inovação e tradição (escola tradicional ou acadêmica × escola de vanguarda)?

O trecho que fala do ceticismo do catedrático e da insatisfação dos alunos: “As especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos como tom reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de ‘vagas experiência de outra escola de concretagem’”.

 

 

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