Conto: A carteira de crocodilo
Mia Couto
A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas. Exibia a carteirinha que o marido lhe trouxera das outras Áfricas, toda em substância de pele de crocodilo. As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce. Até a bílis lhes escorria pelos olhos. Motivadas pela desfaçatez, elas comentavam: o bichonho, assim tão desfolhado, não teria sofrido imensamente? Tal dermificina não seria contra os católicos mandamentos?
– E com o problema das insolações, o
bicho, assim esburacado, apanhando em cheio os ultravioletas...
– Cale-se, Clementina.
Mas o governador Sacramento também se
havia contemplado a ele mesmo. Adquirira um par de sapatos feitos com pele de
cobra. O casal calçava do reino animal, feitos pássaros que têm os pés cobertos
de escamas. Certo dia, uma das nobres damas trouxe a catastrágica novidade. O
governador-geral contraíra grave e irremediável viuvez. A esposa, coitada, fora
comida inteira, incluído corpo, sapatos, colares e outros anexos.
– Foi comida mas... pelo marido,
supõe-se?
– Cale-se, Clementina.
Mas
qual marido? Tinha sido o crocodilo, o monstruoso carnibal. Que horror, com
aqueles dentes capazes de arrepiar tubarões.
– Um crocodilo no Palácio?
– Clemente-se, Clementina.
O monstro de onde surgira?
Imagine-se, tinha emergido da carteira, transfigurado, reencarnado,
assombrado. Acontecera em instantâneo momento: a malograda ia tirar algo da
mala e sentiu que ela se movia, esquiviva. Tentou assegurá-la: tarde e de mais.
Foi só tempo de avistar a dentição triangulosa, língua amarela no breu da
boca. No resto, os testemunhadores nem presenciaram. O sáurio se
eminenciou a olhos imprevistos.
E o governador, sob o peso da desgraça?
O homem ia de rota abatida. Lágrimas catarateavam pelo rosto. O dirigente
recebeu o desfile das condolências. Vieram íntimos e ilustres. A todos ele
cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado. Os visitantes se juntaram
no nobre salão, aguardando palavras do dirigente. O governador avançou para o
centro e anunciou não o luto mas, espantem-se cristãos, a inadiável
condecoração do crocodilo. Em nome da protecção das espécies, explicou. A bem
da ecologia faunística, acrescentou.
No princípio, houve relutâncias,
demoras no entendimento. Mas logo os aplausos abafaram as restantes palavras. O
que sucedeu, então, foi o inacreditável. O governador Sacramento suspendeu a
palavra e espreitou o chão que o sustinha. Pedindo urgentes desculpas ele se
sentou no estrado e se apressou a tirar os sapatos. Entre a audiência ainda
alguém vaticinou:
– Vai ver que os sapatos se convertem
em cobra...
– Clementina!
Sucedeu exactamente o inverso. O
ilustre nem teve tempo de desapertar os atacadores. Perante um espanto ainda
mais geral que o título do governador, se viu o honroso indignitário a
converter-se em serpente. Começou pela língua, afilada e bífida, em rápidas
excursões da boca. Depois, se lhe extinguiram os quase totais membros, o homem,
todo ele, um tronco em flor. Caiu desamparado no mármore do palácio e ainda se
ouviu seu grito:
– Ajudem-me!
Ninguém, porém, avivou músculo que
fosse. Porque, logo e ali, o mutante mutilado, em total mutismo, se
começou a enredar pelo suporte do microfone. Enquanto serpenteava pelo ferro
ele se desnudava, libertadas as vestes como se foram uma desempregada pele. O
governador finalizava elegâncias de cobra. O ofídio se manteve hasteado no
microfone, depois largou-se. Quando se aguardava que se desmoronasse, afinal, o
governador encobrado desatou a caminhar. Porque de humano lhe restavam apenas
os pés, esses mesmos que ele cobrira de ornamento serpentífero.
– Não aplauda, Clementina, por amor de
Deus!
COUTO,
Mia. Contos do nascer da Terra. 3. ed. Lisboa: Editorial Caminho,
1997. p. 101-103.
Fonte: Livro Língua Portuguesa –
Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 132-5.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Canasta: jogo de cartas de baralho também chamado, no Brasil, de
canastra ou tranca.
·
Desfaçatez: descaramento, cinismo; falta de vergonha ou de pudor.
·
Atacador: cordão, cadarço.
·
Bífida: fendida ou separada em duas partes, como a língua das
serpentes.
·
Serpentífero: relativo a uma situação em que há ou em que se produz
serpente ou cobra venenosa.
02 – Você conhece a
literatura em prosa de algum escritor africano de língua portuguesa? Qual?
Resposta pessoal do
aluno.
03 – O realismo mágico
também faria parte do contexto literário desse continente?
Resposta pessoal
do aluno.
04 – Qual seria o tema ou o
assunto de um conto intitulado “A carteira de crocodilo”?
Resposta pessoal
do aluno.
05 – Leia as informações a
seguir:
A República de Moçambique, cuja capital
é Maputo, situa-se na costa sudeste do continente africano. Foi uma colônia
portuguesa e tornou-se independente em 25 de junho de 1975. Segundo estudos
arqueológicos, os povos bantu se fixaram nessa região entre os séculos I e V.
Além de agricultores, eles dominavam a metalurgia, ciência que estuda
os processos de extração de metais e seu uso industrial ou a arte de trabalhar
metais. Os portugueses chegaram pela primeira vez em Moçambique em 1497.
Com base nessas informações, quem
representariam as personagens governador-geral, Sacramento; sua
mulher, Dona Francisca Júlia Sacramento; suas amigas; e os “íntimos e
ilustres”?
Todas essas
personagens representam o colonizador português em Moçambique.
06 – Segundo estudiosos,
esse conto (assim como “O edifício”,
de Murilo Rubião) é filiado ao realismo fantástico.
a) Que elementos desse conto de Mia Couto extrapolam a realidade, ou seja, podem ser considerados fantásticos?
As circunstâncias absurdas que envolveram a morte da senhora Dona
Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, que é devorada por um
crocodilo que sai de sua bolsa de pele; e a metamorfose pública e gradual do
corpo do governador em serpente.
b) Como você interpreta a presença desses elementos fantásticos no conto “A carteira de crocodilo”?
No contexto, esses elementos foram usados com o objetivo de provocar
a reflexão a respeito da arrogância, da vaidade, da hipocrisia, da inveja e de
denunciar a realidade: a política colonialista, o oportunismo político, etc.
c) O que o crocodilo e a serpente simbolizam no contexto?
Os nomes dos dois animais estão associados a aspectos negativos do
ser humano. É chamada de cobra uma
pessoa traiçoeira, maldosa. A expressão “lágrimas de crocodilo” está associada
a fingimento. Tanto no Brasil como em Moçambique, a gíria crocodilar/crocodilagem tem o sentido pejorativo de “agir com
falsidade, hipocrisia”.
d) Que sentimentos, ações humanas e fatos reais são tematizados nesse conto?
A hipocrisia, a falsidade, a vaidade, a inveja, a exploração
colonial, assim como o uso político das tragédias.
07 – Releia e explique no
caderno cada um dos trechos a seguir:
a) A
Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se
pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas. Exibia a
carteirinha que o marido lhe trouxera das outras Áfricas, toda em substância de
pele de crocodilo.
O trecho crítica de forma irônica a
vaidade da mulher do político, que se mostrava superior e exibia sua carteira
de crocodilo, que pode representar a exploração das colônias portuguesas da
África. É uma crítica, também, às atividades sociais realizadas com o falso
pretexto de fazer ações de caridade.
b) As
amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce. Até a bílis lhes escorria
pelos olhos. Motivadas pela desfaçatez, elas comentavam: o bichonho, assim tão
desfolhado, não teria sofrido imensamente? Tal dermificina não seria contra os
católicos mandamentos?
– E com o problema das insolações, o
bicho, assim esburacado, apanhando em cheio os ultravioletas...
Crítica, de forma irônica, à inveja
das “amigas” de Dona Francisca, aos falsos discursos religioso e ecológico, à
hipocrisia. A palavra amigas foi usada no sentido irônico, em que se afirma o
contrário do que se pensa.
c) E o
governador, sob o peso da desgraça? O homem ia de rota abatida. Lágrimas
catarateavam pelo rosto. O dirigente recebeu o desfile das condolências. Vieram
íntimos e ilustres. A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente
emocionado. Os visitantes se juntaram no nobre salão, aguardando palavras do
dirigente. O governador avançou para o centro e anunciou não o luto mas,
espantem-se cristãos, a inadiável condecoração do crocodilo. Em nome da
protecção das espécies, explicou. A bem da ecologia faunística, acrescentou.
Ironiza a comemoração do marido
pela viuvez, como se ele estivesse comemorando a morte da mulher ao condecorar
o crocodilo; e critica os políticos que se apropriam do discurso ecológico e
até da “própria desgraça” para obter ganhos políticos.
d) –
Cale-se, Clementina.; – Clemente-se, Clementina.; – Não aplauda, Clementina,
por amor de Deus!
Uma personagem adverte uma outra, chamada
Clementina, para que ela não expresse o que pensa e mantenha as aparências. É
uma crítica irônica à hipocrisia das relações sociais e de poder.
08 – Baseando-se nos trechos
lidos na atividade 7, responda:
Nesse conto, o narrador de terceira
pessoa é neutro, ou seja, ele só narra o que presencia, ou se posiciona
perante os fatos? Explique sua resposta.
O narrador
posiciona-se, criticando e ironizando as personagens por meio da escolha das
palavras, dos comentários e de descrições, como as seguintes: “As amigas se
raspavam de inveja, incapazes de disfarce”; “O governador finalizava elegâncias
de cobra”; “[...] invisivelmente emocionado [...]”; “[...] honroso indignitário
[...]”; etc. Além disso, dirige-se ao leitor com interrogações: “E o
governador, sob o peso da desgraça?”.
09 – O texto apresenta a voz
do narrador, a do governador, a de uma personagem anônima que se dirige à
personagem Clementina, fazendo-lhe advertências. Pelas advertências, é possível
inferir a voz da personagem Clementina.
a) Quem Clementina pode representar?
As pessoas que aplaudem e consideram justo o destino do governador e
de sua mulher.
b) O que a voz da personagem anônima pode representar?
As pessoas que, por algum interesse, querem manter as aparências.
10 – Nesse conto, Mia Couto
criou neologismos, alterando a classe gramatical de várias palavras e
aglutinando-as a outras. Qual é o feito do emprego desses neologismos no texto?
Eles criam um
efeito humorístico e também reflexivo, irônico, crítico e fantástico.
11 – Explique no caderno:
a)
O sentido e/ou a formação das palavras
destacadas em:
·
A Senhora Dona Francisca
Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e
filantrópicas canastas.
·
No resto, os testemunhadores nem presenciaram.
· Acontecera em instantâneo momento: a malograda ia tirar algo da mala e sentiu que ela se movia, esquiviva.
Certo dia, uma das nobres damas trouxe a catastrágica novidade.
O termo excelenciava-se é
um neologismo formando pela mudança de classe gramatical. Formado pelo adjetivo
excelente e pela forma de tratamento
excelência, tem o sentido de
“exibia-se”. A palavra testemunhadores
é usada com o sentido de pessoas presentes, que estavam no local do
acontecimento. O termo esquiviva é
um neologismo formado pelos adjetivos esquiva
e viva: a carteira movimentou-se de
forma defensiva e dela saiu um crocodilo vivo. O termo catastrágica é um neologismo formado pelos adjetivos catastrófica e
trágica, com o objetivo de reforçar o ocorrido.
b) O sentido das expressões destacadas em:
·
O sáurio se eminenciou a olhos imprevistos.
·
A todos ele
cumprimentou, reservado, invisivelmente
emocionado.
A expressão “se eminenciou a olhos imprevistos” tem o sentido de “se
destacou, se fez ver, ganhou grandes proporções diante das pessoas presentes,
que foram pegas de surpresa, pois não esperavam ver o que viram”. Brincadeira,
humor com a expressão “visivelmente emocionado”, com o sentido de que não
conseguia demonstrar emoção.
c) O sentido da metáfora e da hipérbole em:
Até a bílis lhes escorria pelos olhos.
A expressão “bílis lhes escorria pelos
olhos” é metáfora e hipérbole, com o sentido de muita inveja.
d) O sentido da frase:
Clemente-se,
Clementina.
Clemente-se é um neologismo formado de
verbo com base em substantivo. O nome da personagem pode ser uma ironia porque
a palavra clemência tem o sentido de indulgência, bondade; e a palavra clemente
tem o sentido de indulgente, bondoso.
12 – Explique a formação
e/ou o sentido de mais estes neologismos criados por Mia Couto:
a)
Bichonho;
Neologismo formado com as palavras bicho + medonho, tem o
sentido de bicho medonho, terrível.
b)
Carnibal;
Neologismo formado com as palavras derma/derme (do grego pele)
+ carnificina, tem o sentido de
mortandade, grande extermínio ou carnagem de peles de animais.
c)
Dermificina;
Neologismo formado com as palavras carne + canibal, para
reforçar a voracidade do crocodilo.
d)
Catarateavam.
Neologismo e hipérbole, para reforçar o sentido de lágrimas que
cairiam como cataratas, ou cachoeiras.
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