segunda-feira, 6 de novembro de 2017

CONTO: CONTINUIDADE DOS PARQUES - JULIO CORTÁZAR - COM GABARITO

Continuidade dos parques

   A história de um homem que lê um romance nos leva a indagar: quais são os limites entre a realidade e a ficção?
   Começara a ler o romance dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou à leitura quando regressava de trem à fazenda; deixava-se interessar lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Nessa tarde, depois de escrever uma carta a seu procurador, discutir com o capataz uma questão de parceria, voltou ao livro na tranquilidade do escritório que dava para o parque dos carvalhos. Recostado em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse, de quando em quando, o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a fantasia novelesca absorveu-o quase em seguida. Gozava do prazer meio perverso de se afastar, linha a linha, daquilo que o rodeava, e sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto respaldo, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que além dos janelões dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra por palavra, absorvido pela trágica desunião dos heróis, deixando-se levar pelas imagens que se formavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do mato. Primeiro entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, a cara ferida pelo chicote de um galho. Ela estancava admiravelmente o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não viera para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos, o punhal ficava morno junto a seu peito, e debaixo batia a liberdade escondida. Um diálogo envolvente corria pelas páginas como um riacho de serpentes, e sentia-se que tudo estava decidido desde o começo. Mesmo essas carícias que envolviam o corpo do amante, como que desejando retê-lo e dissuadi-lo, desenhavam desagradavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada fora esquecido: impedimentos, azares, possíveis erros. A partir dessa hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O reexame cruel mal se interrompia para que a mão de um acariciasse a face do outro. Começava a anoitecer.
        Já sem se olhar, ligados firmemente à tarefa que os aguardava, separavam-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao norte. Do caminho oposto, ele se voltou um instante para vê-la correr como cabelo solto. Correu por sua vez, esquivando-se de árvores e cercas, até distinguir na rósea bruma do crepúsculo a alameda que o levaria à casa. Os cachorros não deviam latir, e não latiram. O capataz não estaria àquela hora, e não estava. Subiu os três degraus do pórtico e entrou. Pelo sangue galopando em seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma varanda, uma escadaria atapetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e então o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto respaldo de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

          Cortázar, Júlio. Final do jogo. Tradução de Remy Gorga, filho.
                          Rio de Janeiro: Expressão e cultura, 1971. p. 11-13.

1 – Todo texto narrativo se constrói a partir da presença de alguns elementos básicos: narrador, personagens, cenário, tempo e enredo. Quem conta a história em “continuidade dos porquês”?
      O foco narrativo desse conto está em 3ª pessoa (“Começara a ler o romance...”), é uma “voz” que conta o que se passa com a personagem principal: o leitor do romance. O aluno já deve ter aprendido, no Ensino Fundamental, o que é um foco narrativo onisciente. Talvez seja interessante aproveitar para relembrar, em linhas gerais, o que caracteriza um foco como esse.

a)   Quais são as personagens envolvidas na história? Como elas são caracterizadas?
A primeira personagem apresentada é um leitor. Pelos comentários do narrador a respeito de suas atividades, imaginamos tratar-se de um dono de fazenda, provavelmente alguém de posses, bastante atarefado, que encontra grande prazer na leitura. Além dele, temos as personagens da história que está lendo: um homem e uma mulher, amantes. Apresentados como “heróis” da história que está sendo lida, precisam se livrar de um “corpo” que parece impedir sua felicidade.

b)   O texto apresenta dois cenários. Quais são eles? O que se descobre sobre o primeiro cenário no final da história?
O primeiro cenário é o escritório do fazendeiro-leitor. O segundo cenário é o lugar de encontro dos amantes, uma cabana no mato. É importante ressaltar que, a partir da tomada de decisão dos amantes, a ação é desencadeada e o narrador passa a apresentar o caminho percorrido pelo homem em direção a sua vítima. Essa descrição culmina com a referência à porta de um salão, à luz dos janelões, ao alto respaldo de uma poltrona de veludo verde, e à cabeça do homem que, sentado na poltrona, lê o romance. Nesse momento, a sala que será adentrada pelo amante revela-se como parte do primeiro cenário.

c)   Em que intervalo de tempo a história se passa?
A história narrada se passa em uma tarde (inicia-se quando o leitor retoma a leitura do romance interrompida dias antes e se encerra quando, ao anoitecer, o homem se aproxima da casa para assassiná-lo).

d)   Há, no texto, um acontecimento que desencadeia a ação final. Qual é ele?
O acontecimento desencadeador da ação final é a tomada de decisão dos amantes. Depois de se encontrarem na cabana no mato, decidem eliminar o “corpo que era necessário destruir” (supõe-se que se trata do marido dessa mulher que vai à cabana encontrar-se com o amante).

2 – No conto, há duas histórias narradas: a do fazendeiro-leitor e a dos amantes. Uma reflete a outra, e as duas histórias terminam por se entrelaçar. Explique como o trabalho de construção do cenário, das personagens e do enredo ajuda a promover esse efeito.
      Por meio da coincidência de cenários e pela menção ao capataz, o narrador nos leva a constatar algo aparentemente impossível: o fazendeiro-leitor lê a sua própria história no romance que tem em mãos. Esse elemento fantástico, absurdo, promove a superposição do que, no conto, são os planos da realidade e da ficção.

 3 – Após a leitura do conto, podemos afirmar que a primeira pista que Cortázar nos fornece sobre o caráter fantástico de sua narrativa é o título da história. Por quê?
      Se voltarmos ao início do conto, veremos que o narrador nos informa algo importante sobre o escritório em que se encontra o fazendeiro-leitor: ele dava para o parque de carvalhos. Logo adiante, quando ele começa a ler o romance, descobrimos que os amantes do romance lido se encontram em uma cabana no mato. Na cena final, a coincidência de cenários nos leva a concluir que a cabana “no mato” localiza-se, na verdade, no parque de carvalhos visto a partir dos janelões do escritório. Nesse sentido, a “continuidade” dos parques alude à fusão do parque da ficção como o parque da realidade do fazendeiro-leitor.

4 – Releia a seguinte passagem do conto.
      “[...] a fantasia novelesca absorveu-o quase em seguida Gozava do prazer meio perverso de se afastar, linha a linha, daquilo que o rodeava [...]”.
O narrador do conto, ao falar do prazer sentido pelo fazendeiro-leitor, alude a uma das funções geralmente associadas à literatura. Qual é a função?
      Nessa passagem, o narrador alude à possibilidade de, por meio da leitura de textos literários, vivermos experiências apenas imaginadas, que em muito diferem da realidade que nos cerca. Nesse sentido, a leitura pode transformar-se em uma verdadeira “viagem”, na qual o leitor embarca munido apenas de sua imaginação, alimentada pelo livro que lê. A mera fruição do texto pode representar, para muitos leitores, um descanso de uma realidade mais dura.

5 – A literatura e as demais formas de arte podem levar o ser humano a refletir sobre as angústias alegrias da própria existência. A leitura do conto nos ajudaria a compreender melhor a realidade? Por quê?
      Em certo sentido, sim. No caso desse conto, vemos uma história aparentemente banal: um homem e uma mulher envolvidos em uma relação de adultério decidem eliminar a pessoa que impede, a seu ver, a concretização de seu amor.

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