quarta-feira, 15 de novembro de 2017

CRÔNICA: A PIPOCA - RUBEM ALVES - COMGABARITO

Crônica: A Pipoca
                                            Rubem Alves

    A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.
   Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.
        Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
        As comidas, para mim, são entidades oníricas.
       Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.
    A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas ideias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.
        A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem.
        Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.
        Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé...
        A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.
        Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.
        Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado.
        Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
        E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.
        Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.
        Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.
        Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.
        Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
        Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.
        "Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.
        Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.
        Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.
        Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.
        Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.
        Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á". A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo à panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
        Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...
        "Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu".
       
        Rubem Alves: tudo sobre sua vida e sua obra em "Biografias".

Interpretação do texto:

01 – O tema do texto é:
a) o processo de transformação do milho em pipoca.
b) as propriedades nutricionais da pipoca.
c) o consumo de milho pelos americanos.
d) o surgimento da pipoca.

02 – O texto apresenta duas explicações para o processo de transformação do milho em pipoca. Identifique-as:
a) Explicação mítica: “De acordo com antigas tradições, o grão de milho armazenava um espírito dentro de si. Com isso, assim que o grão era aquecido no fogo, esse espírito se irritava até estourar.”

b) Explicação científica: A ciência explica que “todo grão de milho armazena dentro de si uma ínfima quantidade de água. Assim, quando aquecida, essa água se transforma em vapor e exerce uma pressão que provoca o estouro do milho.”

03 – A frase “Contudo, os indícios mais próximos sobre a origem desse alimento [...]” foi reescrita corretamente em:
a) Por isso, os indícios mais próximos sobre a origem desse alimento [...]
b) Entretanto, os indícios mais próximos sobre a origem desse alimento [...]
c) Por conseguinte, os indícios mais próximos sobre a origem desse alimento [...]
d) Com efeito, os indícios mais próximos sobre a origem desse alimento [...]

04 – Em “[...] todo grão de milho armazena dentro de si uma ínfima quantidade de água.”, o adjetivo grifado poderia ser substituído por:
a) significativa        b) regular        c) pequena        d) importante.

 05 – Leia o texto silenciosamente para compreender de que se trata.
Observe que algumas palavras estão em negrito, são palavras que para entender melhor o texto você precisa do dicionário. Não vale colocar qualquer sinônimo. Deve ser um que tenha o mesmo sentido da palavra no texto.
Fascina: Seduz. 
Onírica: Sonho.
Mirrado: Pequeno.
Metafórica: Comparação.
Presunção: Vaidade.

06 – O texto é uma metáfora entre o milho de pipoca e o homem. Vá ao dicionário ou internet e procure uma definição para metáfora dentro das figuras de linguagem da língua portuguesa. 
      A definição é o emprego de palavras em sentido figurado, por efeito de comparação.

07 – De acordo com o texto coloque V ou F nas afirmativas abaixo:
(F) O autor do texto é um chef de cozinha apreciador das palavras.
(V) Por ter mais escrito que cozinhado deu o nome de “culinária literária”.
(V) A pipoca é um símbolo para os cristãos religiosos e também para o candomblé.
(V) Foi uma paciente que mencionou a pipoca e fez algo inesperado surgir na cabeça do autor.

08 – Na simbologia, o que significa a pipoca:
      - Para os cristãos religiosos: É representado pela morte e ressurreição de Cristo. O estouro do milho de pipoca. Ressurreição.
      - Para o candomblé: É a comida sagrada.

09 – Como a pipoca se revelou para o autor?
      Como uma mudança na vida de pessoa, pela sua transformação.

10 – Segundo o autor, em que se transformou o estouro das pipocas? 
      Pelo poder do fogo podemos, respectivamente, nos transformar em outra coisa.

11 – Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. E assim acontece com a gente?
      Sim. Porque a pessoa não procurou mudar sua vida. Será sempre a mesma pessoa.

12 – Na visão do autor, o que é o fogo?
      É a transformação na vida de cada ser humano.

13 – O que é fogo de dentro? O que é fogo de fora?
      - O fogo de dentro é o pânico, medo, ansiedade, depressão, sofrimentos cuja causas ignoramos.
      - O fogo de fora é a dor, é perder um amor, um filho, ficar doente, perder o emprego, ficar pobre.

14 – Copie o parágrafo em que o autor retrata o sentimento da pipoca dentro da panela. 
      Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer.

15 – Na simbologia cristã como está representado o milagre do milho? 
        O milagre está representado pela ressurreição, o estouro do milho de pipoca.
16 – Na linguagem metafórica, defina os piruás:
      É a pessoa que não se interessa em mudar sua vida.

17 – Quanto à ideia central do texto, assinale a alternativa correta:
a)   A intencionalidade discursiva do autor é divagar sobre a culinária e a origem da pipoca.
b)   A pipoca é usada como metáfora para a transformação de pessoas fisicamente feias em bonitas.
c)   O autor emprega a palavra “piruá” para pessoas duras que não se transformam em algo melhor.
d)   O autor considera que só as pessoas não religiosas tornam-se piruás.

18 – Assinale a alternativa que indica outra forma correta de se reescrever o período abaixo:
        Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella.
a)   Me lembrei, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella.
b)   Lembrei, então, a lição que aprendi com a Mãe Stella.
c)   Lembrei, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella.

19 – Considere o período abaixo:
        Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e coloca-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.
        O pronome isso refere-se:
a)   Ao fato de haver milhos mirrados.
b)   Ao modo como foi “inventada” a pipoca.
c)   Ao sentido religioso da pipoca.
d)   Aos grãos que não estouram no fogo.

20 – Assinale a alternativa que indica corretamente a classe gramatical da palavra destacada no trecho abaixo:
        Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer.
a)   Substantivo                         c) Advérbio
b)   Adjetivo                               d) Verbo

21 – Segundo o texto, o que significa ser como pipoca e o que significa ser como o piruá?
      - Ser pipoca, é aquela pessoa que está sempre procurando a sua modificação.
      - Ser piruá, é aquela pessoa que se recusa a mudança em sua vida.

22 – E você, é uma pipoca estourada ou um piruá? Por quê?
        Resposta Pessoal.

23 – Agora é a sua vez de colocar a sua opinião sobre o texto. Explique o que você achou dele e que lições você tira para a sua vida. 

        Resposta Pessoal.

12 comentários:

  1. Com base na leitura o q o autor quer dizer
    ?

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  2. Por que o autor fala em relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar?
    3 pontos
    Porque pipoca remete à nossa infância, momento em que mais sonhamos e pensamos.
    Porque a pipoca é branca, como uma página vazia, nós preenchemos os espaços com nossos sonhos.
    Porque o estouro da milho o transforma em algo imprevisível, assim como o pensamento.
    Porque nem todos os grãos estouram, assim como nossos pensamentos, nem todos são válidos.???alguém responde

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  3. 4- Explique a frase: “O fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas”.

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  4. Que sujeitos são mobilizados nesta crônica?

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  5. Em que momento veio a inspiração para a escrita da crônica. Que movimento foi esse?

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  6. como a pipoca se revelou para o autor?

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