quarta-feira, 25 de junho de 2025

ARTIGO DE OPINIÃO: DORAS E CARMOSINAS - FERNANDA MONTENEGRO - COM GABARITO

 Artigo de opinião: Doras e Carmosinas

               Fernanda Montenegro

        Há momentos em que os anos vividos nos obrigam olhar em volta e fazer uma revisão das nossas perdas e dos nossos danos. Se hoje estou sendo agraciada com a mais alta condecoração de nosso país, é porque sou resultado de muitas influências e convivências. Centenas de companheiros e personagens me formaram, me educaram e estão comigo sempre. Não me refiro só a minha família de sangue, mas principalmente à minha família de opção…

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhldsP4kRtfBszIgeSCoGLyh0kBxPIJA2SVMjJSGWcfTU_XlicvaIoLSUAiuGbBA-8PljXjIRL1B84hLcT_r2EEvXWBr1Hv5P7mi0PXkjI2yhqJJ8yjIbqnzMVWH3P_b9irtWqzG_pzcmYA5-UY8ilo5qb3__YcyXVO2DT2jqIbKh5LhvmyW00bLA9wjeU/s320/1955-professoras-anos-50-a.jpg


        Mas existe o antes. A infância. E – por que não? – o período da minha educação primária. Acho que é aí que tudo começa. Ao trabalhar o mundo da professora Dora de Central do Brasil, lá na infância é que fui buscar, na minha memória, as primeiras professoras que me alfabetizaram. Credenciadas, respeitadas, prestigiadas professoras primárias da minha infância. Professoras de escolas públicas que eu frequentei, no subúrbio do Rio.

        Eu me lembro especialmente com muito carinho de Dona Carmosina Campos de Meneses, que me alfabetizou. E, mais do que isso, que me ensinou a ler, o que é um degrau acima da alfabetização. Naquele tempo, as professoras ainda se chamavam Carmosinas, Afonsinas, Ondinas. Busquei na memória a figura de Dona Carmosina para me aproximar da professora Dora (para mim, personagem não é ficção). E vi como seria trágico se a minha tão prestigiada e amada Dona Carmosina viesse a se transformar, por carências existenciais e sociais, numa endurecida e miserável Dora. Foi essa visão de tantas perdas que me deu o emocional da cena final do filme quando Dora escreve “tenho saudade de tudo”.

        Saudade é uma palavra forte e uma forma profunda de chamamento, de invocação. Entre Carmosina e Dora lá se vão sessenta anos. Penso que minha vocação de atriz foi sensibilizada a partir das leituras em voz alta, leituras muito exigidas, cuidadas, orgânicas, que nós alunos fazíamos usando os livros de português do antigo curso primário. As primeiras coisas que decorei na vida foram dois poemas que Dona Carmosina mandou (é essa a palavra: mandou) que decorássemos nas férias de dezembro: “Meus oito anos” de Casimiro de Abreu e “Canção do exílio” de Gonçalves Dias. Na volta das férias naquele ano de 1937, eu, mesmo tímida, envergonhada e encantada declamei: “Oh! Que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais. Que amor, que sonhos, que flores, naquelas tardes fagueiras, à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais”. Essas bananeiras e esses laranjais não eram licença poética. Os subúrbios de nossas cidades ainda não tinham sofrido essa degradação ambiental que infelizmente se fez presente com o passar dos anos. Vi muitos Brasis entre esses meus oito anos, os oito anos do poeta e essas duas mulheres: Carmosina e Dora. Vejo essa passagem de tempo, claro, com alegrias e ganhos, mas também com muitas perdas e dor. Sou atriz e confesso a minha deformação profissional: esse sentimento de perdas, essa nostalgia me ajudaram a resgatar o emocional dessa desprotegida e amarga Dora ao intuir que dentro dessas Doras desiludidas existe sempre uma Carmosina à espera de um ombro e de um socorro.

        Senhor presidente, nesta nossa confraternização de artistas e autoridades como não lembrar o milagre que a educação e a cultura produzem em todo ser humano. É este, me parece, o espírito que nos une aqui, neste espaço, e por estarmos diante da mais alta autoridade do nosso país, que é Vossa Excelência, a herança cultural da reivindicação artística e social se apresenta… Mas, Vossa Excelência é um democrata e um professor, por isso peço a Vossa Excelência me dar o direito de não resistir, mesmo porque acredito que estamos numa concordância de vontades. Senhor presidente, precisamos urgentemente de muitas, muitas Carmosinas e, se possível, nenhuma Dora. Vossa Excelência tem poder para transformar as Doras em Carmosinas. O país lhe deu esse poder. Eu tenho um sonho que certamente é também um sonho de Vossa Excelência e de muitos, muitos, muitos brasileiros. Eu tenho um sonho (parodiando o notável reverendo americano) que um dia, realmente, todas as desesperadas Doras serão resgatadas desses ônibus perdidos que atravessam esse nosso sertão de miséria e que a elas será dado nem que seja uma parcela daquele reconhecimento e respeito social das professoras Carmosinas da minha infância. Doras com visão de futuro, com autoestima, economicamente ajustadas. Professoras Doras inventivas, confiantes, confiantes no seu magistério, para que possam ser amadas como seres humanos e (por que não?) como personagens também. Muito amadas e lembradas por todos os Vinícius e todos os Josués de nosso país. Mesmo assim prefiro as Carmosinas… Que Dora compreenda e me perdoe. Vale a troca. Para o fortalecimento da nossa educação, da nossa cultura, vale a pena, senhor presidente, se a nossa alma, isto é, se a realização do sonho de todos nós, se essa realização não for pequena. Faço de Dora e Carmosina minhas companheiras neste meu agradecimento. Ignorá-las seria desprezar a minha infância e a realidade da minha, não digo velhice, mas da minha madureza.

Transcrição do discurso feito pela atriz ao ser homenageada por sua indicação ao Oscar de melhor atriz estrangeira pelo desempenho no filme Central do Brasil.

Entendendo o artigo:

01 – Por que Fernanda Montenegro afirma que, ao ser agraciada com uma condecoração, ela é "resultado de muitas influências e convivências"?

      Ela afirma isso porque se sente formada e educada por centenas de companheiros e personagens, não apenas pela sua família de sangue, mas principalmente pela sua "família de opção" (colegas de profissão e os papéis que interpretou).

02 – Qual a importância da infância e da educação primária na formação da autora, segundo o texto?

      Fernanda Montenegro acredita que tudo começa na infância e na educação primária. Ela buscou suas primeiras professoras para construir a personagem Dora, percebendo a influência desses anos iniciais em sua formação.

03 – Quem foi Dona Carmosina Campos de Meneses e qual o seu significado para Fernanda Montenegro?

      Dona Carmosina foi a professora que alfabetizou Fernanda Montenegro e, mais do que isso, a ensinou a ler. Ela é uma figura de muito carinho e representou o prestígio e o respeito das professoras primárias da época.

04 – Como a figura de Dona Carmosina se relaciona com a personagem Dora, do filme "Central do Brasil"?

      Fernanda Montenegro buscou na memória a figura de Dona Carmosina para se aproximar da professora Dora. Ela imaginou o quão trágico seria se uma professora tão prestigiada como Carmosina se transformasse, por carências existenciais e sociais, na endurecida e miserável Dora.

05 – Que dois poemas Dona Carmosina "mandou" que os alunos decorassem nas férias de dezembro de 1937, e qual o impacto disso na autora?

      Os poemas foram "Meus oito anos" de Casimiro de Abreu e "Canção do exílio" de Gonçalves Dias. A autora destaca que a leitura em voz alta e a memorização desses poemas sensibilizaram sua vocação de atriz e a ajudaram a resgatar o emocional da personagem Dora.

06 – Qual o principal contraste que a autora estabelece entre as "Carmosinas" e as "Doras"?

      As Carmosinas representam as professoras prestigiadas, respeitadas, com autoestima e que inspiram a educação. As Doras, por sua vez, simbolizam as professoras desiludidas, amargas, que sofreram com a degradação social e a falta de reconhecimento, muitas vezes "perdidas" em um "sertão de miséria".

07 – Qual o apelo final de Fernanda Montenegro ao presidente, utilizando as figuras de Dora e Carmosina?

      Ela apela por "muitas, muitas Carmosinas e, se possível, nenhuma Dora". Pede ao presidente que utilize seu poder para transformar as Doras em Carmosinas, resgatando-as da miséria e oferecendo-lhes reconhecimento e respeito social para que sejam inventivas, confiantes e amadas.

 

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