domingo, 7 de abril de 2019

TEXTO: NINGUÉM SE BANHA DUAS VEZES NO MESMO RIO - JOSÉ SARAMAGO - COM GABARITO

Texto: Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
                  
                    José Saramago

 “Estou deitado na margem. Dois barcos, presos a um tronco de salgueiro cortado em remotos tempos, oscilam ao jeito do vento, não da corrente, que é macia, vagarosa, quase invisível. A paisagem em frente, conheço-a. Por uma aberta entre as árvores, vejo as terras lisas da lezíria, ao fundo uma franja de vegetação verde-escura, e depois, inevitavelmente, o céu onde boiam nuvens que só não são brancas porque a tarde chega ao fim e há o tom de pérola que é o dia que se extingue. Entretanto, o rio corre. (…)
        Três metros acima da minha cabeça estão presos nos ramos rolos de palha, canalhas de milho, aglomerados de lodo seco. São os vestígios da cheia. À esquerda, na outra margem, alinham-se os freixos que, a esta distância, por obra do vento que Ihes estremece as folhas numa vibração interminável, me fazem lembrar o interior de uma colmeia. (…)
        Entretanto, enquanto vou pensando, o rio continua a passar, em silêncio. Vem agora no vento, da aldeia que não está longe, um lamentoso toque de sinos: alguém morreu, sei quem foi, mas de que serve dizê-Io? Muito alto, duas garças brancas (ou talvez não sejam garças, não importa) desenham um bailado sem princípio nem fim: vieram inscrever-se no meu tempo, irão depois continuar o seu, sem mim.
        Olho agora o rio que conheço tão bem. A cor das águas, a maneira como escorregam ao longo das margens, as espadanas3 verdes, as plataformas de limos onde encontram chão as rãs, onde as libélulas (também chamadas tira-olhos) pousam a extremidade das pequenas garras – este rio é qualquer coisa que me corre no sangue, a que estou preso desde sempre e para sempre. Naveguei nele, aprendi nele a nadar, conheço-lhe os fundões e as locas onde os barbos pairam imóveis. É mais do que um rio, é talvez um segredo.
        E, contudo, estas águas já não são as minhas águas. O tempo flui nelas, arrasta-as e vai arrastando na corrente líquida, devagar, à velocidade (aqui, na terra) de sessenta segundos por minuto. Quantos minutos passaram já desde que me deitei na margem, sobre o feno seco e doirado? Quantos metros andou aquele tronco apodrecido que flutua? O sino ainda toca, a tarde teve agora um arrepio, as garças onde estão? Devagar, levanto-me, sacudo as palhas agarradas à roupa, calço-me. Apanho uma pedra, um seixo redondo e denso, lanço-o pelo ar, num gesto do passado. Cai no meio do rio, mergulha (não vejo, mas sei), atravessa as águas opacas, assenta no lodo do fundo, enterra-se um pouco. (…)
        Desço até à água, mergulho nela as mãos, e não as reconheço. Vêm-me da memória outras mãos mergulhadas noutro rio. As minhas mãos de há trinta anos, o rio antigo de águas que já se perderam no mar. Vejo passar o tempo. Tem a cor da água e vai carregado de detritos, de pétalas arrancadas de flores, de um toque vagaroso de sinos. Então uma ave cor de fogo passa como um relâmpago. O sino cala-se. E eu sacudo as mãos molhadas de tempo, levando-as até aos olhos – as minhas mãos de hoje, com que prendo a vida e a verdade desta hora.”

SARAMAGO, José. Deste mundo e do outro. Lisboa: Editorial Caminho, 1985.
Entendendo o texto:

01 – O texto que você leu é predominantemente descritivo. O observador apresenta suas impressões a respeito do tempo comparando-o a um rio e afirma: “Estou deitado na margem”. Explique o significado dessa frase.
      Por meio dessa frase, percebe-se que o narrador observa o rio e o tempo como se estivesse do lado de fora, como se não estivesse imerso no tempo.

02 – No 2° parágrafo, o observador compara a vibração das folhas ao interior de uma colmeia. Por que é possível afirmar que essa é uma comparação subjetiva?
      Porque é criada pela imaginação do observador.

03 – Ao ler o 4° parágrafo, percebe-se que existe uma ligação maior entre o observador e o rio. De que forma se pode comprovar essa ideia no texto?
      O observador relata seu profundo conhecimento sobre o rio, suas características e a paisagem que o cerca. Sente como se as águas do rio fossem seu próprio sangue ou sua vida, pois ali cresceu com suas lembranças.

04 – Explique por que o observador diz, no 5° parágrafo, que “Estas águas já não são as minhas águas”.
      Como o tempo passa rapidamente, as águas também fluem e mudam. Portanto, já não são as mesmas águas de quando ele ali adormeceu; elas se renovaram.

05 – Ainda no 5° parágrafo, o observador indica alguns possíveis destinos para a pedra. Compare esses destinos às possíveis atitudes das pessoas em relação ao tempo.
      As pessoas, assim como as pedras, podem ficar “paradas” no tempo, negando-se a seguir com ele (“enterra-se um pouco”); podem mudar de lugar, ir para longe ou mesmo mudar de lugar e retornar às suas origens.

06 – No último parágrafo, o observador sente-se um estranho, ao mergulhar suas mãos nas águas do rio
a)   O que o faz imaginar-se tão diferente naquele momento?
Ele compara suas mãos de trinta anos atrás com as de hoje, mais gastas pelo tempo. E, assim como as águas do passado que fluíram para o mar e não são mais as mesmas, o observador percebe que o tempo se foi e que ele se modificou.

b)   Interprete esta imagem: “E eu sacudo as mãos molhadas de tempo”.
Sacudindo as mãos, ele está sacudindo a água e o tempo guardados ou contidos até aquele momento.

07 – Por que o observador tenta reter com suas mãos, no presente, “A vida e a verdade” daquela hora?
      Ele sabe que tudo vai passar brevemente, pois o tempo transforma a vida num momento efêmero.

08 – Explique o título do texto: “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”.
      O observador compara o correr do rio ao passar do tempo. Assim como a água passa e não volta, sempre fluindo na mesma direção, o tempo passa e não volta. O rio muda a cada segundo. O tempo muda a cada segundo.



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