Texto: Ninguém se banha duas vezes
no mesmo rio
José Saramago
“Estou deitado na margem. Dois barcos,
presos a um tronco de salgueiro cortado em remotos tempos, oscilam ao jeito do
vento, não da corrente, que é macia, vagarosa, quase invisível. A paisagem em
frente, conheço-a. Por uma aberta entre as árvores, vejo as terras lisas da
lezíria, ao fundo uma franja de vegetação verde-escura, e depois,
inevitavelmente, o céu onde boiam nuvens que só não são brancas porque a tarde
chega ao fim e há o tom de pérola que é o dia que se extingue. Entretanto, o
rio corre. (…)
Três metros acima da minha cabeça estão
presos nos ramos rolos de palha, canalhas de milho, aglomerados de lodo seco.
São os vestígios da cheia. À esquerda, na outra margem, alinham-se os freixos
que, a esta distância, por obra do vento que Ihes estremece as folhas numa
vibração interminável, me fazem lembrar o interior de uma colmeia. (…)
Entretanto, enquanto vou pensando, o
rio continua a passar, em silêncio. Vem agora no vento, da aldeia que não está
longe, um lamentoso toque de sinos: alguém morreu, sei quem foi, mas de que
serve dizê-Io? Muito alto, duas garças brancas (ou talvez não sejam garças, não
importa) desenham um bailado sem princípio nem fim: vieram inscrever-se no meu
tempo, irão depois continuar o seu, sem mim.
Olho agora o rio que conheço tão bem. A
cor das águas, a maneira como escorregam ao longo das margens, as espadanas3
verdes, as plataformas de limos onde encontram chão as rãs, onde as libélulas
(também chamadas tira-olhos) pousam a extremidade das pequenas garras – este
rio é qualquer coisa que me corre no sangue, a que estou preso desde sempre e
para sempre. Naveguei nele, aprendi nele a nadar, conheço-lhe os fundões e as
locas onde os barbos pairam imóveis. É mais do que um rio, é talvez um segredo.
E, contudo, estas águas já não são as
minhas águas. O tempo flui nelas, arrasta-as e vai arrastando na corrente
líquida, devagar, à velocidade (aqui, na terra) de sessenta segundos por
minuto. Quantos minutos passaram já desde que me deitei na margem, sobre o feno
seco e doirado? Quantos metros andou aquele tronco apodrecido que flutua? O
sino ainda toca, a tarde teve agora um arrepio, as garças onde estão? Devagar,
levanto-me, sacudo as palhas agarradas à roupa, calço-me. Apanho uma pedra, um
seixo redondo e denso, lanço-o pelo ar, num gesto do passado. Cai no meio do
rio, mergulha (não vejo, mas sei), atravessa as águas opacas, assenta no lodo
do fundo, enterra-se um pouco. (…)
Desço até à água, mergulho nela as
mãos, e não as reconheço. Vêm-me da memória outras mãos mergulhadas noutro rio.
As minhas mãos de há trinta anos, o rio antigo de águas que já se perderam no
mar. Vejo passar o tempo. Tem a cor da água e vai carregado de detritos, de
pétalas arrancadas de flores, de um toque vagaroso de sinos. Então uma ave cor
de fogo passa como um relâmpago. O sino cala-se. E eu sacudo as mãos molhadas
de tempo, levando-as até aos olhos – as minhas mãos de hoje, com que prendo a
vida e a verdade desta hora.”
SARAMAGO, José. Deste
mundo e do outro. Lisboa: Editorial Caminho, 1985.
Entendendo o texto:
01 – O texto que você leu é
predominantemente descritivo. O observador apresenta suas impressões a respeito
do tempo comparando-o a um rio e afirma: “Estou deitado na margem”. Explique o
significado dessa frase.
Por meio dessa
frase, percebe-se que o narrador observa o rio e o tempo como se estivesse do
lado de fora, como se não estivesse imerso no tempo.
02 – No 2° parágrafo, o
observador compara a vibração das folhas ao interior de uma colmeia. Por que é
possível afirmar que essa é uma comparação subjetiva?
Porque é criada
pela imaginação do observador.
03 – Ao ler o 4° parágrafo,
percebe-se que existe uma ligação maior entre o observador e o rio. De que
forma se pode comprovar essa ideia no texto?
O observador
relata seu profundo conhecimento sobre o rio, suas características e a paisagem
que o cerca. Sente como se as águas do rio fossem seu próprio sangue ou sua
vida, pois ali cresceu com suas lembranças.
04 – Explique por que o
observador diz, no 5° parágrafo, que “Estas águas já não são as minhas águas”.
Como o tempo
passa rapidamente, as águas também fluem e mudam. Portanto, já não são as
mesmas águas de quando ele ali adormeceu; elas se renovaram.
05 – Ainda no 5° parágrafo,
o observador indica alguns possíveis destinos para a pedra. Compare esses
destinos às possíveis atitudes das pessoas em relação ao tempo.
As pessoas, assim
como as pedras, podem ficar “paradas” no tempo, negando-se a seguir com ele
(“enterra-se um pouco”); podem mudar de lugar, ir para longe ou mesmo mudar de
lugar e retornar às suas origens.
06 – No último parágrafo, o
observador sente-se um estranho, ao mergulhar suas mãos nas águas do rio
a)
O que o faz imaginar-se tão diferente naquele
momento?
Ele compara suas mãos de trinta anos atrás com as de hoje, mais
gastas pelo tempo. E, assim como as águas do passado que fluíram para o mar e
não são mais as mesmas, o observador percebe que o tempo se foi e que ele se
modificou.
b)
Interprete esta imagem: “E eu sacudo as mãos
molhadas de tempo”.
Sacudindo as mãos, ele está sacudindo a água e o tempo guardados ou
contidos até aquele momento.
07 – Por que o observador
tenta reter com suas mãos, no presente, “A vida e a verdade” daquela hora?
Ele sabe que tudo
vai passar brevemente, pois o tempo transforma a vida num momento efêmero.
08 – Explique o título do
texto: “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”.
O observador
compara o correr do rio ao passar do tempo. Assim como a água passa e não
volta, sempre fluindo na mesma direção, o tempo passa e não volta. O rio muda a
cada segundo. O tempo muda a cada segundo.
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