Crônica: Uma tia
Uma tia. Só que não estou falando de
uma tia qualquer; estou falando daquela tia de antigamente, que nem sei se
ainda existe.
Ela era assim: magrinha, já nascida com
cerca de 75 anos e com os ombros curvados; era tão discreta que nunca ficava
doente – e, se ficava, não dizia (para não dar despesa); por ser a mais velha
de uma escadinha de 12 ou 13 irmãos, ficou combinado que nunca se casaria.
Naquele tempo, era assim: o destino da mais velha era ajudar a criar os mais
novos e cuidar da mãe na velhice.
Como não tinha renda de nenhuma
natureza, depois que a mãe morreu, passou a morar ora com uma irmã, ora com
outra, fazendo a única coisa que sabia: ajudar. Um parente estava no hospital?
Lá ia ela. Alguém da família teve um bebê? Lá estava ela, firme, dormindo num
colchonete para que a mãe pudesse dormir. Se se apegava à criança, ninguém
estava interessado. Depois de cumprida a missão, voltava para casa e não se
falava mais naquilo.
Dizem que as mães fazem tudo pelos
filhos – e até fazem –, mas essas tias são diferentes. Talvez por não terem
nunca perdido tempo pensando em homens canalizam seus sentimentos para as
sobrinhas e têm sempre uma predileta. No caso, era eu.
Por mim ela fazia tudo e, de vez em
quando, me dava um presente: uns dois palmos de renda amarelecida pelo tempo,
que eu adorava – restos do enxoval de um vago noivado que não chegou ao
casamento. O noivo desapareceu, nunca mais se tocou no assunto, e as pulseiras
e broches de ouro com flores de coral foram devolvidas, como faziam as moças
direitas.
Essa tia não possuía um só bem
material, mas era sempre muito cheirosa; cheirava a água-de-colônia, que usava
pouco, para economizar. E, quando dei a ela – que já beirava os 90 anos – um casaquinho
rosa de tricô, banal, trazido de Paris, ela só o usava em ocasiões muito
especiais, para não gastar.
Em qualquer idade, ficar doente e ter
uma tia dessas é uma bênção. Com o quarto em penumbra, ela se sentava numa
cadeira em silêncio total e só se levantava – isso várias vezes ao dia – para botar
as costas da mão na testa para ver como estava a febre. E isso, falando bem
baixinho. Uma mãe faz isso? Faz, mas, quando a febre baixa, aproveita para dar
um pulinho ao cabeleireiro para estar linda no jantar da noite.
Com essa tia, é diferente; você pode
contar com ela para rigorosamente tudo, e esse amor não pede nada em troca. Nem
mesmo agradecimento.
É doloroso, mas faz parte da vida não
dar valor às pessoas que temos certeza de que nos amam. Quantos domingos eu
fiquei lendo e relendo os jornais, sem chamá-la para almoçar fora, coisa de que
ela teria gostado tanto (sempre pedindo os pratos mais baratos, claro)? Quantas
vezes deixei de levar para ela uma caixinha com três sabonetes ou um frasco de
lavanda que nem precisava ser francesa? Pois é.
O tempo passou, ela morreu, e eu – que não
a via muito porque tinha o trabalho, os filhos, o dia-a-dia, a maldita
ginástica que não podia perder – nem sofri tanto assim. Passou.
As reações às vezes são lentas; uns
quatro ou cinco anos depois, tive uma cólica renal e, no meio da dor,
lembrei-me dela. Dela, que teria ficado sentada no chão do banheiro, passando a
mão pelos meus cabelos, só de carinho, enquanto eu tomava aqueles longos banhos
quentes para melhorar a dor; dela, que fazia a bainha de meu vestido cinco
minutos antes da festa, se fosse preciso; dela, a única que lembrava e contava
episódios de minha infância que só ela sabia. Dela, que gostava de mim como
nunca, jamais, ninguém gostou nem gostará, e eu só soube depois. Dela, que
quando me via em algum sufoco, sempre terminava dizendo: "Vou rezar muito
por você, e a Nossa Senhora vai te ajudar", sem tentar me convencer a ir à
missa ou a acreditar em Deus.
E eu, que nunca disse o quanto gostava
dela.
Danuza Leão. As
aparências enganam. São Paulo: Publifolha, 2004.
Entendendo a crônica:
01 – Na crônica, a autora
fala de uma tia “que nem sei se ainda existe”. Você tem uma tia assim?
Resposta pessoal
do aluno.
02 – No texto inteiro, há
trechos que descrevem a tia. Mas, em certa passagem, essa descrição é bastante
evidente.
a)
Que passagem é essa?
Está descrito no 2° parágrafo.
b)
Como essa tia é descrita pela autora?
É descrita física e psicologicamente.
c)
Localize a expressão que introduz esse trecho
explicitamente descritivo.
A expressão é: “Ela era assim”.
03 – Que papel ela
desempenhava na família?
O de cuidar dos
irmãos mais novos e da mãe na velhice.
04 – A característica
principal dessa tia é que ela ajudava sempre que necessário. Indique passagens
do texto que explicitam isso.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Há várias passagens que indicam isso, às vezes de forma
melancólica, às vezes de forma bem-humorada.
05 – Com que outro membro da
família a tia é comparada? Na sua opinião, por que a autora faz essa
comparação?
Com a mãe. A mãe
é associada ao zelo e ao cuidado para com os filhos, características principais
dessa tia.
06 – Embora a autora fale de
uma tia em especial, é possível afirmarmos que ela buscou descrever um tipo de
tia que pode existir em qualquer família. Esse procedimento de linguagem é o
que chamamos de generalização.
Indique passagens do texto que evidenciem a generalização.
Ela generaliza
por meio do uso de determinadas expressões como “ter uma tia dessas”, ou “essas
tias são diferentes. O tempo todo, há essa dicotomia no texto: a tia em
especial, e a generalização dessa figura da parentela.
07 – Todo o texto é
percorrido por um sentimento da sobrinha para com a tia.
a)
Que sentimento é esse?
A saudade da tia perdida é o que marca o texto, do começo ao fim.
b)
Localize uma passagem que justifica sua
resposta ao item anterior.
No parágrafo que começa em “As reações às vezes são lentas [...]”,
esse sentimento fica explícito.
08 – Ao fim da crônica, a
autora declara seu arrependimento por não ter sido mais generosa com a tia da
seguinte forma: “E eu, que nunca disse o quanto gostava dela”. Na sua opinião,
por que Danuza Leão termina o texto dessa forma?
Resposta pessoal do aluno.
09 – Uma crônica é um texto
em que o autor, a partir da observação de um fato corriqueiro, um evento
singular, um hábito ou uma situação usual do quotidiano, leva seus leitores a
refletirem. O fato observado por Danuza Leão é de qual natureza: um fato
corriqueiro, um evento singular ou uma situação habitual do quotidiano?
Explique.
É uma situação
habitual. Há indícios no texto que apontam para isso, por exemplo o uso do
procedimento da generalização, indicado na questão 6 desta seção.
10 – Ao escrever sua
crônica, a autora mistura diferentes níveis de linguagem. Observe: “E, quando dei a ela – que já beirava os 90
anos – um casaquinho rosa de tricô, banal, trazido de Paris, ela só o usava em
ocasiões muito especiais, para não gastar.”
a)
Qual é p sentido do verbo beirar nessa passagem?
Nessa passagem, significa “aproximar-se de”.
b)
Consulte o dicionário e verifique que
significados ele registra para essa palavra.
O dicionário registra entre outros, os seguintes significados:
“costear, ladear, ir pela margem de”; “fazer limite com”.
c)
Por que o uso do verbo beirar, nesse trecho pode ser considerado um indício de que
há mistura de níveis de linguagem no texto?
Na linguagem formal, o uso de “aproximar-se” é mais usual.
11 – Releia o trecho a
seguir: “Com essa tia, é diferente; você
pode contar com ela para rigorosamente tudo, e esse amor não pede nada em
troca. Nem mesmo agradecimento.”
A quem se refere o pronome você nessa passagem? Justifique
sua opinião.
A primeira impressão é que ela se refere ao leitor. Mas, ao
ler o trecho com mais atenção, percebe-se que o pronome generaliza a ideia, ou
seja, “você pode contar com ela” é o mesmo que dizer “é possível contar com
ela” ou “pode-se contar com ela”. O pronome então funciona como índice de
indeterminação do sujeito.
12 – Releia esta passagem da
crônica: “O tempo passou, ela morreu, e eu – que não a via muito porque tinha o
trabalho, os filhos, o dia-a-dia, a maldita ginástica que não podia perder –
nem sofri tanto assim. Passou.”
a)
No início e no fim desse parágrafo,
emprega-se o verbo passou. O
sentido é o mesmo nas duas ocorrências? Explique.
Na primeira ocorrência, o verbo refere-se à passagem do tempo, sendo
sinônimo de “transcorrer”.
Na segunda ocorrência, o sentido é outro: “deixar de ocorrer”,
“cessar”, “terminar”.
b)
Qual é o sujeito de passou na segunda ocorrência? Explique.
O sujeito – não expresso – pode ser subentendido pelo contexto o sofrimento passou.
13 – No penúltimo parágrafo
do texto, que começa em “As reações às vezes são lentas [...]”, repete-se
várias vezes a palavra dela após ponto e vírgula ou ponto final. Na sua
opinião, o que a autora consegue com essas repetições?
Essas repetições
marcam a insistência na figura da tia. Essa palavra, repetida assim, cria um
ritmo semelhante à batida de martelo, o que comunica a ideia de que ela, a
autora, não mais se esquecerá dessa tia.
14 – A última palavra do
texto é dela. Na sua opinião, por que a autora finaliza o texto com essa
palavra?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Volta-se na insistência
sobre a figura da tia e a autora consegue terminar o texto de forma circular,
como se fechasse um ciclo.
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