segunda-feira, 22 de abril de 2019

CRÔNICA: UMA TIA - DANUZA LEÃO - COM QUESTÕES GABARITADAS

Crônica: Uma tia
      
        DANUZA LEÃO 

        Uma tia. Só que não estou falando de uma tia qualquer; estou falando daquela tia de antigamente, que nem sei se ainda existe.
        Ela era assim: magrinha, já nascida com cerca de 75 anos e com os ombros curvados; era tão discreta que nunca ficava doente – e, se ficava, não dizia (para não dar despesa); por ser a mais velha de uma escadinha de 12 ou 13 irmãos, ficou combinado que nunca se casaria. Naquele tempo, era assim: o destino da mais velha era ajudar a criar os mais novos e cuidar da mãe na velhice.
        Como não tinha renda de nenhuma natureza, depois que a mãe morreu, passou a morar ora com uma irmã, ora com outra, fazendo a única coisa que sabia: ajudar. Um parente estava no hospital? Lá ia ela. Alguém da família teve um bebê? Lá estava ela, firme, dormindo num colchonete para que a mãe pudesse dormir. Se se apegava à criança, ninguém estava interessado. Depois de cumprida a missão, voltava para casa e não se falava mais naquilo.
        Dizem que as mães fazem tudo pelos filhos – e até fazem –, mas essas tias são diferentes. Talvez por não terem nunca perdido tempo pensando em homens canalizam seus sentimentos para as sobrinhas e têm sempre uma predileta. No caso, era eu.
        Por mim ela fazia tudo e, de vez em quando, me dava um presente: uns dois palmos de renda amarelecida pelo tempo, que eu adorava – restos do enxoval de um vago noivado que não chegou ao casamento. O noivo desapareceu, nunca mais se tocou no assunto, e as pulseiras e broches de ouro com flores de coral foram devolvidas, como faziam as moças direitas.
        Essa tia não possuía um só bem material, mas era sempre muito cheirosa; cheirava a água-de-colônia, que usava pouco, para economizar. E, quando dei a ela – que já beirava os 90 anos – um casaquinho rosa de tricô, banal, trazido de Paris, ela só o usava em ocasiões muito especiais, para não gastar.
        Em qualquer idade, ficar doente e ter uma tia dessas é uma bênção. Com o quarto em penumbra, ela se sentava numa cadeira em silêncio total e só se levantava – isso várias vezes ao dia – para botar as costas da mão na testa para ver como estava a febre. E isso, falando bem baixinho. Uma mãe faz isso? Faz, mas, quando a febre baixa, aproveita para dar um pulinho ao cabeleireiro para estar linda no jantar da noite.
        Com essa tia, é diferente; você pode contar com ela para rigorosamente tudo, e esse amor não pede nada em troca. Nem mesmo agradecimento.
        É doloroso, mas faz parte da vida não dar valor às pessoas que temos certeza de que nos amam. Quantos domingos eu fiquei lendo e relendo os jornais, sem chamá-la para almoçar fora, coisa de que ela teria gostado tanto (sempre pedindo os pratos mais baratos, claro)? Quantas vezes deixei de levar para ela uma caixinha com três sabonetes ou um frasco de lavanda que nem precisava ser francesa? Pois é.
      O tempo passou, ela morreu, e eu – que não a via muito porque tinha o trabalho, os filhos, o dia-a-dia, a maldita ginástica que não podia perder – nem sofri tanto assim. Passou.
        As reações às vezes são lentas; uns quatro ou cinco anos depois, tive uma cólica renal e, no meio da dor, lembrei-me dela. Dela, que teria ficado sentada no chão do banheiro, passando a mão pelos meus cabelos, só de carinho, enquanto eu tomava aqueles longos banhos quentes para melhorar a dor; dela, que fazia a bainha de meu vestido cinco minutos antes da festa, se fosse preciso; dela, a única que lembrava e contava episódios de minha infância que só ela sabia. Dela, que gostava de mim como nunca, jamais, ninguém gostou nem gostará, e eu só soube depois. Dela, que quando me via em algum sufoco, sempre terminava dizendo: "Vou rezar muito por você, e a Nossa Senhora vai te ajudar", sem tentar me convencer a ir à missa ou a acreditar em Deus.
        E eu, que nunca disse o quanto gostava dela.

                 Danuza Leão. As aparências enganam. São Paulo: Publifolha, 2004.
Entendendo a crônica:

01 – Na crônica, a autora fala de uma tia “que nem sei se ainda existe”. Você tem uma tia assim?
      Resposta pessoal do aluno.

02 – No texto inteiro, há trechos que descrevem a tia. Mas, em certa passagem, essa descrição é bastante evidente.
a)   Que passagem é essa?
Está descrito no 2° parágrafo.

b)   Como essa tia é descrita pela autora?
É descrita física e psicologicamente.

c)   Localize a expressão que introduz esse trecho explicitamente descritivo.
A expressão é: “Ela era assim”.

03 – Que papel ela desempenhava na família?
      O de cuidar dos irmãos mais novos e da mãe na velhice.

04 – A característica principal dessa tia é que ela ajudava sempre que necessário. Indique passagens do texto que explicitam isso.
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Há várias passagens que indicam isso, às vezes de forma melancólica, às vezes de forma bem-humorada.

05 – Com que outro membro da família a tia é comparada? Na sua opinião, por que a autora faz essa comparação?
      Com a mãe. A mãe é associada ao zelo e ao cuidado para com os filhos, características principais dessa tia.

06 – Embora a autora fale de uma tia em especial, é possível afirmarmos que ela buscou descrever um tipo de tia que pode existir em qualquer família. Esse procedimento de linguagem é o que chamamos de generalização. Indique passagens do texto que evidenciem a generalização. 
      Ela generaliza por meio do uso de determinadas expressões como “ter uma tia dessas”, ou “essas tias são diferentes. O tempo todo, há essa dicotomia no texto: a tia em especial, e a generalização dessa figura da parentela.

07 – Todo o texto é percorrido por um sentimento da sobrinha para com a tia.
a)   Que sentimento é esse?
A saudade da tia perdida é o que marca o texto, do começo ao fim.

b)   Localize uma passagem que justifica sua resposta ao item anterior.
No parágrafo que começa em “As reações às vezes são lentas [...]”, esse sentimento fica explícito.

08 – Ao fim da crônica, a autora declara seu arrependimento por não ter sido mais generosa com a tia da seguinte forma: “E eu, que nunca disse o quanto gostava dela”. Na sua opinião, por que Danuza Leão termina o texto dessa forma?
      Resposta pessoal do aluno.

09 – Uma crônica é um texto em que o autor, a partir da observação de um fato corriqueiro, um evento singular, um hábito ou uma situação usual do quotidiano, leva seus leitores a refletirem. O fato observado por Danuza Leão é de qual natureza: um fato corriqueiro, um evento singular ou uma situação habitual do quotidiano? Explique.
      É uma situação habitual. Há indícios no texto que apontam para isso, por exemplo o uso do procedimento da generalização, indicado na questão 6 desta seção.

10 – Ao escrever sua crônica, a autora mistura diferentes níveis de linguagem. Observe: “E, quando dei a ela – que já beirava os 90 anos – um casaquinho rosa de tricô, banal, trazido de Paris, ela só o usava em ocasiões muito especiais, para não gastar.”
a)   Qual é p sentido do verbo beirar nessa passagem?
Nessa passagem, significa “aproximar-se de”.

b)   Consulte o dicionário e verifique que significados ele registra para essa palavra.
O dicionário registra entre outros, os seguintes significados: “costear, ladear, ir pela margem de”; “fazer limite com”.

c)   Por que o uso do verbo beirar, nesse trecho pode ser considerado um indício de que há mistura de níveis de linguagem no texto?
Na linguagem formal, o uso de “aproximar-se” é mais usual.

11 – Releia o trecho a seguir: “Com essa tia, é diferente; você pode contar com ela para rigorosamente tudo, e esse amor não pede nada em troca. Nem mesmo agradecimento.”
        A quem se refere o pronome você nessa passagem? Justifique sua opinião.
      A primeira impressão é que ela se refere ao leitor. Mas, ao ler o trecho com mais atenção, percebe-se que o pronome generaliza a ideia, ou seja, “você pode contar com ela” é o mesmo que dizer “é possível contar com ela” ou “pode-se contar com ela”. O pronome então funciona como índice de indeterminação do sujeito.

12 – Releia esta passagem da crônica: “O tempo passou, ela morreu, e eu – que não a via muito porque tinha o trabalho, os filhos, o dia-a-dia, a maldita ginástica que não podia perder – nem sofri tanto assim. Passou.”
a)   No início e no fim desse parágrafo, emprega-se o verbo passou. O sentido é o mesmo nas duas ocorrências? Explique.
Na primeira ocorrência, o verbo refere-se à passagem do tempo, sendo sinônimo de “transcorrer”.
Na segunda ocorrência, o sentido é outro: “deixar de ocorrer”, “cessar”, “terminar”.

b)   Qual é o sujeito de passou na segunda ocorrência? Explique.
O sujeito – não expresso – pode ser subentendido pelo contexto o sofrimento passou.

13 – No penúltimo parágrafo do texto, que começa em “As reações às vezes são lentas [...]”, repete-se várias vezes a palavra dela após ponto e vírgula ou ponto final. Na sua opinião, o que a autora consegue com essas repetições?
      Essas repetições marcam a insistência na figura da tia. Essa palavra, repetida assim, cria um ritmo semelhante à batida de martelo, o que comunica a ideia de que ela, a autora, não mais se esquecerá dessa tia.

14 – A última palavra do texto é dela. Na sua opinião, por que a autora finaliza o texto com essa palavra?
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Volta-se na insistência sobre a figura da tia e a autora consegue terminar o texto de forma circular, como se fechasse um ciclo.




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