Romance: Triste fim de Policarpo
Quaresma
Fragmento
Lima
Barreto
[...]
Como lhe parecia ilógico com ele mesmo
estar ali metido naquele estreito calabouço. Pois ele, o Quaresma plácido, o
Quaresma de tão profundos pensamentos patrióticos, merecia aquele triste fim?
De que maneira sorrateira o Destino o
arrastara até ali, sem que ele pudesse pressentir o seu extravagante propósito,
tão aparentemente sem relação com o resto da sua vida? Teria sido ele com os
seus atos passados, com as suas ações encadeadas no tempo, que fizera com que
aquele velho deus docilmente o trouxesse até à execução de tal desígnio? Ou
teriam sido os fatos externos, que venceram a ele, Quaresma, e fizeram-no
escravo da sentença da onipotente divindade? Ele não sabia, e, quando teimava
em pensar, as duas coisas se baralhavam, se emaranhavam e a conclusão certa e
exata lhe fugia.
Não estava ali há muitas horas. Fora
preso pela manhã, logo ao erguer-se da cama; e, pelo cálculo aproximado do
tempo, pois estava sem relógio e mesmo se o tivesse não poderia consultá-lo à
fraca luz da masmorra, imaginava podiam ser onze horas.
Por que estava preso? Ao certo não
sabia; o oficial que o conduzira, nada lhe quisera dizer; e, desde que saíra da
ilha das Enxadas para a das Cobras, não trocara palavra com ninguém, não vira
nenhum conhecido no caminho, nem o próprio Ricardo que lhe podia, com um olhar,
com um gesto, trazer sossego às suas dúvidas. Entretanto, ele atribuía a prisão
à carta que escrevera ao presidente, protestando contra a cena que presenciara
na véspera.
Não se pudera conter. Aquela leva de
desgraçados a sair assim, a desoras, escolhidos a esmo, para uma carniçaria
distante, falara fundo a todos os seus sentimentos; pusera diante dos seus
olhos todos os seus princípios morais; desafiara a sua coragem moral e a sua
solidariedade humana; e ele escrevera a carta com veemência, com paixão,
indignado. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro, franca e nitidamente.
Devia ser por isso que ele estava ali
naquela masmorra, engaiolado, trancafiado, isolado dos seus semelhantes como
uma fera, como um criminoso, sepultado na treva, sofrendo umidade, misturado
com os seus detritos, quase sem comer... Como acabarei? Como acabarei? E a
pergunta lhe vinha, no meio da revoada de pensamentos que aquela angústia
provocava pensar. Não havia base para qualquer hipótese. Era de conduta tão irregular
e incerta o Governo que tudo ele podia esperar: a liberdade ou a morte, mais
esta que aquela.
O tempo estava de morte, de
carnificina; todos tinham sede de matar, para afirmar mais a vitória e senti-la
bem na consciência coisa sua, própria, e altamente honrosa.
Iria morrer, quem sabe se naquela noite
mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da
miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de
contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso,
a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o
recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o. E o que
não deixará de ver, de gozar, de fruir, na sua vida? Tudo. Não brincara, não
pandegara, não amara - todo esse lado da existência que parece fugir um pouco à
sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele não experimentara.
Desde dezoito anos que o tal
patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades. Que
lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem... Em que lhe
contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O
importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas coisas
de tupi, do folk-lore, das suas tentativas agrícolas... Restava disso tudo em
sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!
O tupi encontrou a incredulidade geral,
o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura?
Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros.
Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara?
Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater
como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua
vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções.
São Paulo: Saraiva, 2007. p. 199-201.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo;
·
Desora: tarde da noite, altas horas.
·
Feraz: muito produtivo, fecundo, fértil.
·
Fruir: desfrutar, aproveitar, gozar.
·
Mofa: zombaria, troça.
·
Pandegar: viver em festa.
02 – Policarpo Quaresma
participava como voluntário na Revolta da Armada, ao lado de Floriano Peixoto,
quando foi preso. De acordo com as pistas do texto, levante hipóteses:
a)
Por que Quaresma foi preso?
Por ter feito uma crítica ao modo como os presos eram tratados na
prisão.
b)
O que provavelmente ele viu na prisão, e o teria
levado a escrever a carta-denúncia?
Ele vira presos serem levados para serem fuzilados às escondidas.
c)
Como Quaresma supõe que Floriano Peixoto
interpretou essa iniciativa dele?
Como traição.
03 – Na prisão, Quaresma faz
uma retrospectiva e uma avaliação de sua vida, de sua conduta e de seus
valores. A que conclusão chega?
Ele chega à
conclusão de que tudo fora inútil, pois não houve reconhecimento de seus
esforços pelo bem do Brasil.
04 – Observe estes
fragmentos do texto:
“E, agora estava na velhice, como ela
(a pátria) o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava?
Matando-o.”
“Onde estava a doçura de nossa gente?
Pois ele não a viu combater como feras?”
a)
Nesses fragmentos, a quem Quaresma atribui a
responsabilidade, respectivamente, por sua prisão e pela violência da guerra?
À pátria e ao povo.
b)
Quem, na verdade, tinha responsabilidade por
tais ocorrências?
O governo do Marechal Floriano.
c)
Apesar de Quaresma fazer uma autocrítica, que
característica da personagem ainda se mantém nesses fragmentos?
A ingenuidade.
05 – No texto, é empregada a
técnica do discurso indireto livre. Identifique um trecho em que tal recurso
foi utilizado e explique o efeito de sentido que ele provoca no texto.
Entre outros:
“Como acabarei? Como acabarei?”. O emprego do discurso indireto livre permite
retratar de modo mais aprofundado o estado psicológico de Quaresma na prisão.
06 – No final do texto se
lê: “A sua vida era uma decepção, uma
série, melhor, um encadeamento de decepções”. Explique a diferença de
sentido entre “série de decepções” e “encadeamento de decepções”.
“Série de
decepções” dá uma noção de sequência, apenas. Já “Encadeamento de decepções” dá
uma ideia de causa e efeito, isto é, uma decepção leva a outra, e assim
sucessivamente.
07 – Policarpo Quaresma,
muitas vezes associado a D. Quixote, personagem de Miguel de Cervantes, é um
típico herói problemático. Explique por quê?
Porque era um
idealista, um visionário, que se frustra ao ver que seus projetos não são
compatíveis com a realidade do país.
08 – Pode-se dizer que o
romance Triste fim de Policarpo Quaresma faz uma crítica à sociedade da época.
Qual é o alvo dessa crítica?
Entre outras
possibilidades: por um lado, o nacionalismo ingênuo e desprovido de críticas
cultivado por algumas pessoas e grupos sociais; por outro lado, o autoritarismo
e a falta de valores éticos e morais dos governantes.
EXCELENTE
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