quarta-feira, 24 de abril de 2019

CRÔNICA: PRETO NO BRANCO - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

Crônica: Preto no Branco
               Luís Fernando Veríssimo

     “Escrevo peças porque escrever diálogos é a única maneira respeitável de você se contradizer.” Tom Stoppard

        Um palco vazio. Entram dois homens, um vestido de preto e o outro vestido de branco. Eles representam os dois lados do Autor. Isso a plateia já sabe porque está escrito no programa. Pelo Autor. Ou por um dos lados do Autor, já que o outro era contra. O outro lado do Autor queria que o espectador deduzisse no transcorrer do diálogo que os dois autores representam a mesma pessoa, porque, na sua opinião, dar muitas explicações para a plateia subverte a relação de cumplicidade misturada com hostilidade que deve existir entre palco e público, e nada destrói este clima mais depressa do que o público descobrir que está entendendo tudo. Os dois lados do Autor discutiram muito sobre isto e prevaleceu o lado que queria ser perfeitamente claro, mesmo com o perigo de frustrar o público. Palco vazio. Dois homens, representando os dois lados do Autor. Um todo de preto, o outro todo de branco.
        Homem de Branco – Preto.
        Homem de Preto – Branco.
        Branco – Por que não cinza?
        Preto – Vem você com essa absurda mania de conciliação. Essa volúpia pelo entendimento. Essa tara pelo meio-termo!
        Branco – Senão fosse isso, nós não estaríamos aqui. Foi minha moderação que nos manteve longe de brigas. Foi minha ponderação que nos preservou. Se eu fosse atrás de você...
        Preto – Nós teríamos vivido! Pouco, mas com um brilho intenso. Teríamos dito tudo que viesse à cabeça. Distinguido o pão do queijo com audácia. Posto pingos destemidos em todos os “is”. Dado nome completo a todos os bois!
        Branco – Em vez disso, fomos civilizados. Isto é, contidos e cordatos.
        Preto – E temos tiques nervosos para provar.
        Branco – Você preferiria ter dito a piada que magoaria o amigo? A verdade que destruiria o amor? O insulto que nos levaria ao Pronto-Socorro, setor de traumatismo?
        Preto – Preferiria. Para poder dizer que não me calei. Para poder dizer “Eu disse!”
        Branco – Ainda bem que não é você quem manda em nós.
        Preto – Não, é você. Sempre fazemos o que você determina. Ou não fazemos. Não dizemos. Não vivemos! Estou dentro de você, fazendo, dizendo e vivendo só em pensamento. Se ao menos eu pudesse sair aos sábados...
        Branco – Para que, para nos matar? Pior, para nos envergonhar?
        Preto – Melhor se envergonhar pelo dito e o feito do que pelo não dito e não adiado. Você sabe que cada soco que um homem não dá encurta a sua vida em 17 dias? E cada vez que um homem pensa em sair dançando um bolero e se controla, seu fígado aumenta? E cada...
        Branco – Bobagem. Ainda bem que eu sou verdadeiro nós.
        Preto – Não, eu sou o verdadeiro você.
        Branco – Você só é nós em pensamento. Você é minha abstração.
        Preto – Sou tudo o que em nós é autentico e não reprimido. O seja: você é minha falsificação.
        Branco – Você não é uma pessoa, é uma impulsão.
        Preto – Você não é pessoa, é uma interrupção.
        Branco – Mas quem aparece sou eu.
        Preto – Então o que estou fazendo neste palco, e ainda por cima de malha justa?
        Branco – Você só está aqui como uma velha tradição teatral, o interlocutor. Um artifício cênico, para o Autor não falar sozinho.  “Escrever diálogos é a única maneira respeitável de você se contradizer.” Tom Stoppard.
        Preto – Quer dizer que eu só entrei em cena para dizer...
        Branco – Branco. E eu...
        Preto – Preto. Por quê?
        Branco – Para mostrar à plateia que todo homem é a soma, ou a mescla, das duas contradições. Que no fim o destino comum de todos, cremados ou não cremados, não é ser branco ou preto, é ser cinza.
        Preto – Mostrar a quem?
        Branco – A pla... Onde está a plateia?!
        Preto – Foram todos embora.
        Branco – Será porque não entenderam o diálogo?
        Preto – Acho que foi porque entenderam.

Luiz Fernando Verissimo. Preto e Branco. Publicado originalmente no jornal
O Estado de São Paulo – Caderno 2, em 25/11/2001.
Entendendo a crônica:

01 – Releia a citação de Tom Stoppard, utilizada como epígrafe por Veríssimo, e responda: que características do gênero dramático motivam aquele autor a escrever peças de teatro? Explique.
      As caraterísticas são o diálogo – forma básica da linguagem dramática – e o conflito. Segundo Stoppard, o diálogo teatral é uma maneira de o autor se contradizer, ou seja, de discutir e conflitar consigo mesmo.

02 – Por que o texto “Preto no Branco” pode ser considerado uma paródia de uma peça teatral?
      O texto foi publicado como uma crônica, para os leitores de um jornal, e Veríssimo não pretende que ela seja representada em um palco, como se fosse teatro. É, portanto, como crônica, um texto narrativo. Suas características, porém, são as do gênero dramático: atores representando personagens no palco, conflito, diálogo, discurso direto, sem intermediação ou interferência de narrador. Essa imitação do teatro tem uma intenção crítica e até zombeteira.

03 – Uma peça de teatro normalmente não tem narrador. Seu texto é construído essencialmente de diálogos. O autor, no entanto, entremeia o texto de rubricas – orientações e explicações dirigidas aos encenadores (diretor, atores, cenógrafos...). Essas rubricas têm características narrativas e descritivas. Identifique, na crônica, o parágrafo que parodia a rubrica de um texto teatral.
      O primeiro parágrafo.

04 – A rubrica atribui um significado alegórico às personagens, que representam os dois lados ou personalidades conflitantes do autor.
a)   Que características do autor são simbolizadas pela cor branca, atribuída à primeira personagem?
A cor branca simboliza a clareza, a moderação, a ponderação, o espírito conciliador, cordato, propenso ao entendimento.

b)   E pela cor negra, atribuída à segunda personagem?
A cor negra simboliza a sinceridade, a autenticidade, o respeito à verdade, a audácia, a coragem, a emoção, o impulso.



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