sexta-feira, 19 de abril de 2019

CONTO: BOI DE GUIA - CORA CORALINA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: BOI DE GUIA
                Cora Coralina

      O menino tinha nascido e se criado em Ituverava, da banda de Minas. O pai era um carreiro de confiança, muito procurado para serviços e colheitas. Tinha seu carro antigo, de boa mesa rejuntada, fueirama firme, esteirado de couro cru, roda maciça de cabiúna ferrada, bem provido o berrante de azeite e com seu eixo de cocão cantador que a gente ouvia com distância de légua. Desses que antigamente alegravam o sertão e que os moradores, ouvindo o rechinado, davam logo a pinta do carreiro.
        O pai tinha o carro e tinha as juntas redobradas em parelhas certas, caprichadas, bois arados, retacos, manteúdos, de grandes aspas e pelagem limpa. Era só que possuía. O canto empastado onde morava, família grande, meninada se formando e sua ferramenta de trabalho – os bois de carro.
        Trabalhava para os fazendeiros de roda, principalmente na colheita de café e mantimentos, meses a fio, enchendo tulhas e paióis vazios. Quando acabava o café, era a cana, do canavial para os engenhos, onde as tachas ferviam noite e dia e purgavam as grandes formas de açúcar, cobertas de barro.
        O candeeiro era ele, pirralho franzino, esmirrado, de cinco anos.
        Os pais antigos eram duros e criavam os filhos na lei da disciplina. Na roça, criança não tinha infância. Firmava-se nas pernas, entendia algum mandado, já tinha servicinho esperando.
        Aos quatro anos montava em pelo, cabresteava potranquinha, trazia bezerro do pasto, levava leite na cidade e entregava na freguesia.
        Era botado em riba do selote, não alcançava estribo. Se descesse, não subia mais. Punha o litro nas janelas.
        O cavalo em que montava era velho, arrasado manso e sabido. Subia nas calçadas, encostava nos alpendres, conhecia as ruas, desviava-se das buzinas e parava certo nos fregueses.
         Quando de volta, recolhendo a garrafa vazia, gritava desesperadamente:
        -- Garrafa do leite...garrafa vaziiia! ...
        Um da casa, atordoado com a gritaria, se apressava logo a entregar o litro requerido.
        Ajudava o pai. Desde que nasceu, contava ele. Nunca se lembra de ter vadiado como os meninos de agora. Quando começou a entender o pai, a mãe, os irmãos, o cachorro e o mundo do terreiro, já foi fazendo servicinho. Catava lenha fina, garrancheira para o fogão, caçava pela saroba os ninhos das botadeiras, ia atrás dos peruzinhos e já quebrava xerém às chocas de pinto. Do pasto trazia os bois de serviço. Seu gosto era vir pendurado no chifre do guia barroso – tão grande, tão forte, tão manso – sempre remoendo seus bolos de capim, nem percebia, também não se importava, não dava mostras.
        Acostumou-se com os bois e os bois com ele. Sabia o nome de todos e os particulares de cada um. Chamava pra mangueira. O pai erguia os braços possantes e passava as grande cangas lustrosas; encorreiava os canzis debaixo das barbelas, enganchava o cambão, encostava o coice, prendia a cambota. Passava mão na vara, chamava. As argolinhas retiniam e o carro com sua boiada arrancavam o caminho das roças.
        Com cinco anos, era mestre-de-guia, com sua varinha argolada.
        Às vezes, o serviço era dentro de roças novas, de primeira derrubada, cheia e tocos, tranqueirada de paulama, mal-encoivaradas, ainda mais com seus muitos buracos de tatu.
        O carreador, mal-amanhado, só dava o tantinho das rodas. Os bois que aguentassem o repuxado, e o menino, esse, ninguém reparava nele. Aí era que o carro vinha de caculo. A colheita no meio da roça. Chuvas se encordoando de norte a sul ameaçando o ar do tempo mudado e o fazendeiro arrochando pressa.
        A boiada tinha de romper a pulso. O aguilheiro na frente, pequeno, descalço, seu chapeuzinho de palha, seu porte franzino, dando o que tinha.
        Sentia nas costas o bafo quente do guia. Sentia no pano da camisa a baba grossa do boi. O pai atrás, gritando os nomes, sacudindo o ferrão. A boiada, briosa e traquejada, não queria ferrão no couro, a criança atrapalhava. Aí, o guia barroso dava um meneio de cabeça, baixava a aspa possante e passava a criança pra um lado.
        O menino tornava à frente. Outra vez a baba do boi na camisa, o grito do carreiro afobado, o tinido das argolinhas e a grande aspa passando a criança pra um lado.
        O pai gritou frenisado:
        -- Quem já viu aguiero chamá boi de banda...Passa pra frente porquera...
        -- Nhô pai, é o boi que me arreda...
        -- Passa pra frente, covarde. Deixa de invenção, inzoneiro...
        O menino enfrentou de novo. O homem sacudiu a vara e pondo reparo. A argola retiniu, as juntas arrancaram. O barroso alcançou a criança. Ia pisar, ia esmagar com sua pata enorme e pesada.
        Não pisou, não esmagou. Virou o guampaço num jeito e passou a criança pra um lado sem magoar. Aí o velho carreiro viu...viu o boi pela primeira vez...
        Sentiu uma gastura e pela primeira vez uma coisa nova inchando seu coração no peito e a limpou uma turvação da vista na manga da camisa.

                         Cora Coralina. Estórias da casa velha da ponte. 2. ed. São Paulo:
Global, 1988.
Entendendo o conto:

01 – O narrador utiliza os primeiros parágrafos do texto quase exclusivamente para descrever o carro de bois. Por que esse veículo é tão importante na história?
      Porque é a ferramenta de trabalho do pai do menino.

02 – No segundo parágrafo, descrevem-se os bois que conduzem o carro. Nessa descrição, empregam-se termos regionais da língua portuguesa. Algum deles é empregado em sua região? Qual?
      Resposta pessoal do aluno.

03 – Releia a frase a seguir e explique no caderno o trecho em destaque: “Na roça, então, criança não tinha infância.”
      As crianças tinham pouca liberdade, obedeciam cegamente aos pais e tinham que ajudar no trabalho.

04 – Você se lembra do trecho: “... já tinha servicinho esperando”? Releia os serviços que o garoto faz e responda no caderno: na sua opinião, são mesmo “servicinhos”? Por quê?
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: É a ironia desse diminutivo no contexto.

05 – No caderno resuma, com suas palavras, a rotina do menino ao entregar leite.
      O menino precisava ser colocado em cima da sela do cavalo, porque não conseguia montar sozinho; O cavalo ia parando sobre as calçadas, e o litro de leite era colocado nas janelas. Quando voltava, o garoto recolhia os litros vazios.

06 – Quando se cavalga, o cavaleiro é o condutor. Essa afirmativa vale para o texto lido? Por quê?
      Não, pois nesse caso o verdadeiro condutor é o cavalo, que conhece o trajeto, para sobre as calçadas, desvia de buzinas e sabe onde ficam as casas dos fregueses.

07 – Esse serviço, nas roças novas, era difícil para o menino. Por quê?
      Porque o espaço era pequeno para manobrar o carro de bois, além de o chão estar ainda muito bruto e esburacado.

08 – Imagina a posição de um condutor de carro de bois. Em seguida, explique esta fala do pai do menino:
        “--- Quem já viu aguiero chama boi de banda...”
      O pai critica o menino por meio de ironia. Sendo o aguilheiro, o garoto deveria tomar a dianteira dos bois. No entanto, como era muito pequeno, o boi de guia o suspendia com os chifres e o colocava de lado.

09 – Resuma a cena que leva o pai a acreditar no menino.
      Ao ser advertido pelo pai, o menino vai de novo para a frente dos bois. O pai sacode a vara e presta atenção. O boi avança, poderia esmagar a criança com seu peso, mas ajeita os chifres, pega o garoto e o passa para o lado.

10 – Qual foi a reação do pai ao presenciar a cena?
      O pai ficou aflito, comovido e quase chorou.

11 – Releia o trecho: “O cavalo [...] parava certo nos fregueses.”
        Na verdade, onde parava o cavalo?
      Na casa dos fregueses.

12 – Identifique a troca que ocorre nestes outros exemplos de metonímia:
a)   Ituverava inteira conhecia o menino.
O nome da cidade substitui a referência aos seus habitantes.

b)   Tomou uma garrafa de leite.
O conteúdo (leite) é substituído pelo continente (garrafa).

c)   Quando ouviam as argolinhas, os bois se movimentavam.
O efeito (som) é substituído por aquilo que o produz (argolinhas).

13 – O que significa a expressão destacada em cada uma das frases a seguir?
a)   Aos quatro anos montava em pelo...
Sem sela.

b)   Estava nu em pelo.
Inteiramente nu.

14 – “--- Nhô pai, é o boi que me arreda...”. Dê o sentido do termo destacado e explique como ele se formou.
      Nhô: senhor. Da forma senhor resultou sinhô e, desta, siô e nhô, termos empregados pelos escravos quando se dirigiam aos seus senhores.
   
       


Nenhum comentário:

Postar um comentário