Conto: BOI DE GUIA
Cora
Coralina
O menino tinha nascido e se criado em
Ituverava, da banda de Minas. O pai era um carreiro de confiança, muito
procurado para serviços e colheitas. Tinha seu carro antigo, de boa mesa
rejuntada, fueirama firme, esteirado de couro cru, roda maciça de cabiúna
ferrada, bem provido o berrante de azeite e com seu eixo de cocão cantador que
a gente ouvia com distância de légua. Desses que antigamente alegravam o sertão
e que os moradores, ouvindo o rechinado, davam logo a pinta do carreiro.
11 – Releia o trecho: “O cavalo [...] parava certo nos fregueses.”
O pai tinha o carro e tinha as juntas
redobradas em parelhas certas, caprichadas, bois arados, retacos, manteúdos, de
grandes aspas e pelagem limpa. Era só que possuía. O canto empastado onde
morava, família grande, meninada se formando e sua ferramenta de trabalho – os bois
de carro.
Trabalhava para os fazendeiros de roda,
principalmente na colheita de café e mantimentos, meses a fio, enchendo tulhas
e paióis vazios. Quando acabava o café, era a cana, do canavial para os
engenhos, onde as tachas ferviam noite e dia e purgavam as grandes formas de
açúcar, cobertas de barro.
O candeeiro era ele, pirralho franzino,
esmirrado, de cinco anos.
Os pais antigos eram duros e criavam os
filhos na lei da disciplina. Na roça, criança não tinha infância. Firmava-se
nas pernas, entendia algum mandado, já tinha servicinho esperando.
Aos quatro anos montava em pelo,
cabresteava potranquinha, trazia bezerro do pasto, levava leite na cidade e
entregava na freguesia.
Era botado em riba do selote, não
alcançava estribo. Se descesse, não subia mais. Punha o litro nas janelas.
O cavalo em que montava era velho,
arrasado manso e sabido. Subia nas calçadas, encostava nos alpendres, conhecia
as ruas, desviava-se das buzinas e parava certo nos fregueses.
Quando
de volta, recolhendo a garrafa vazia, gritava desesperadamente:
-- Garrafa do leite...garrafa vaziiia! ...
Um da casa, atordoado com a gritaria,
se apressava logo a entregar o litro requerido.
Ajudava o pai. Desde que nasceu,
contava ele. Nunca se lembra de ter vadiado como os meninos de agora. Quando
começou a entender o pai, a mãe, os irmãos, o cachorro e o mundo do terreiro,
já foi fazendo servicinho. Catava lenha fina, garrancheira para o fogão, caçava
pela saroba os ninhos das botadeiras, ia atrás dos peruzinhos e já quebrava
xerém às chocas de pinto. Do pasto trazia os bois de serviço. Seu gosto era vir
pendurado no chifre do guia barroso – tão grande, tão forte, tão manso – sempre
remoendo seus bolos de capim, nem percebia, também não se importava, não dava
mostras.
Acostumou-se
com os bois e os bois com ele. Sabia o nome de todos e os particulares de cada
um. Chamava pra mangueira. O pai erguia os braços possantes e passava as grande
cangas lustrosas; encorreiava os canzis debaixo das barbelas, enganchava o cambão,
encostava o coice, prendia a cambota. Passava mão na vara, chamava. As
argolinhas retiniam e o carro com sua boiada arrancavam o caminho das roças.
Com cinco anos, era mestre-de-guia, com
sua varinha argolada.
Às vezes, o serviço era dentro de roças
novas, de primeira derrubada, cheia e tocos, tranqueirada de paulama,
mal-encoivaradas, ainda mais com seus muitos buracos de tatu.
O carreador, mal-amanhado, só dava o
tantinho das rodas. Os bois que aguentassem o repuxado, e o menino, esse,
ninguém reparava nele. Aí era que o carro vinha de caculo. A colheita no meio
da roça. Chuvas se encordoando de norte a sul ameaçando o ar do tempo mudado e
o fazendeiro arrochando pressa.
A boiada tinha de romper a pulso. O
aguilheiro na frente, pequeno, descalço, seu chapeuzinho de palha, seu porte
franzino, dando o que tinha.
Sentia nas costas o bafo quente do
guia. Sentia no pano da camisa a baba grossa do boi. O pai atrás, gritando os
nomes, sacudindo o ferrão. A boiada, briosa e traquejada, não queria ferrão no
couro, a criança atrapalhava. Aí, o guia barroso dava um meneio de cabeça,
baixava a aspa possante e passava a criança pra um lado.
O menino tornava à frente. Outra vez a
baba do boi na camisa, o grito do carreiro afobado, o tinido das argolinhas e a
grande aspa passando a criança pra um lado.
O pai gritou frenisado:
-- Quem já viu aguiero chamá boi de
banda...Passa pra frente porquera...
-- Nhô pai, é o boi que me arreda...
-- Passa pra frente, covarde. Deixa de
invenção, inzoneiro...
O menino enfrentou de novo. O homem
sacudiu a vara e pondo reparo. A argola retiniu, as juntas arrancaram. O
barroso alcançou a criança. Ia pisar, ia esmagar com sua pata enorme e pesada.
Não
pisou, não esmagou. Virou o guampaço num jeito e passou a criança pra um lado
sem magoar. Aí o velho carreiro viu...viu o boi pela primeira vez...
Sentiu uma gastura e pela primeira vez
uma coisa nova inchando seu coração no peito e a limpou uma turvação da vista
na manga da camisa.
Cora
Coralina. Estórias da casa velha da ponte. 2. ed. São Paulo:
Global, 1988.
Entendendo o conto:
01 – O narrador utiliza os
primeiros parágrafos do texto quase exclusivamente para descrever o carro de
bois. Por que esse veículo é tão importante na história?
Porque é a
ferramenta de trabalho do pai do menino.
02 – No segundo parágrafo,
descrevem-se os bois que conduzem o carro. Nessa descrição, empregam-se termos
regionais da língua portuguesa. Algum deles é empregado em sua região? Qual?
Resposta pessoal
do aluno.
03 – Releia a frase a seguir
e explique no caderno o trecho em destaque: “Na roça, então, criança não tinha infância.”
As crianças
tinham pouca liberdade, obedeciam cegamente aos pais e tinham que ajudar no
trabalho.
04 – Você se lembra do
trecho: “... já tinha servicinho
esperando”? Releia os serviços que o garoto faz e responda no caderno: na sua
opinião, são mesmo “servicinhos”? Por quê?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: É a ironia desse diminutivo no contexto.
05 – No caderno resuma, com
suas palavras, a rotina do menino ao entregar leite.
O menino
precisava ser colocado em cima da sela do cavalo, porque não conseguia montar
sozinho; O cavalo ia parando sobre as calçadas, e o litro de leite era colocado
nas janelas. Quando voltava, o garoto recolhia os litros vazios.
06 – Quando se cavalga, o
cavaleiro é o condutor. Essa afirmativa vale para o texto lido? Por quê?
Não, pois nesse caso o verdadeiro
condutor é o cavalo, que conhece o trajeto, para sobre as calçadas, desvia de
buzinas e sabe onde ficam as casas dos fregueses.
07 – Esse serviço, nas roças
novas, era difícil para o menino. Por quê?
Porque o espaço
era pequeno para manobrar o carro de bois, além de o chão estar ainda muito
bruto e esburacado.
08 – Imagina a posição de um
condutor de carro de bois. Em seguida, explique esta fala do pai do menino:
“---
Quem já viu aguiero chama boi de banda...”
O pai critica o menino
por meio de ironia. Sendo o aguilheiro, o garoto deveria tomar a dianteira dos
bois. No entanto, como era muito pequeno, o boi de guia o suspendia com os
chifres e o colocava de lado.
09 – Resuma a cena que leva
o pai a acreditar no menino.
Ao ser advertido pelo pai, o menino vai
de novo para a frente dos bois. O pai sacode a vara e presta atenção. O boi
avança, poderia esmagar a criança com seu peso, mas ajeita os chifres, pega o
garoto e o passa para o lado.
10 – Qual foi a reação do
pai ao presenciar a cena?
O pai ficou
aflito, comovido e quase chorou.
Na verdade, onde parava o cavalo?
Na casa dos fregueses.
12 – Identifique a troca que
ocorre nestes outros exemplos de metonímia:
a)
Ituverava
inteira conhecia o menino.
O nome da cidade substitui a referência aos seus habitantes.
b)
Tomou uma
garrafa de leite.
O conteúdo (leite) é substituído pelo continente (garrafa).
c)
Quando ouviam as argolinhas, os bois se movimentavam.
O efeito (som) é substituído por aquilo que o produz (argolinhas).
13 – O que significa a
expressão destacada em cada uma das frases a seguir?
a)
Aos quatro anos montava em pelo...
Sem sela.
b)
Estava nu em pelo.
Inteiramente nu.
14 – “--- Nhô pai, é o boi que me arreda...”. Dê o sentido do termo
destacado e explique como ele se formou.
Nhô: senhor. Da
forma senhor resultou sinhô e, desta, siô e nhô, termos empregados pelos
escravos quando se dirigiam aos seus senhores.
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