sexta-feira, 10 de agosto de 2018

CRÔNICA: DUAS E TRÊS - FERREIRA GULLAR - COM GABARITO

Crônica: Duas e três
            Ferreira Gullar

        Levei um susto quando aquela voz soprou em minha nuca:
        --- Se tu é bom, mata essa: “Não durmo no Rio porque tenho pressa; duas e três.”
        Voltei-me para ver quem falava. Era um homem quarentão, alto e gorducho, de roupas imundas, rasgadas, e cara encardida. Uma cara simpática de gângster regenerado.

        Ele ria:     
        --- Mata essa, vamos!
        Era de manhã cedo, em junho, e fazia um frio agradável. Acordara e, sem ter para onde ir, sentei-me naquele banco da praça Floriano, em frente à Biblioteca Nacional, à espera de que ela abrisse. Meu velho terno marrom esfiapava nas mangas, o sapato empoeirado, a barba por fazer. “Esse homem está me tomando por um vagabundo”, pensei comigo. E achei divertido.
        --- Matar o quê?
        --- A charada, meu besta!
        O velho se debruçava em cima de mim, com um riso gozador. Fedia a suor e molambo. Afastei-o um pouco, com o braço e, meio sem saber o que fizesse, acedi.
        --- Como é mesmo a charada?
        --- Só repito esta vez, tá bom? “Não durmo no Rio porque tenho pressa; duas e três”
        Sempre fui um fracasso para matar charadas. Fiz um esforço para penetrar nas palavras, mas em vão.
        --- Digo mais. – esclareceu-me o vagabundo. – Chaves: “Não durmo no Rio” e “Rio”. Conceito: “pressa” ... Mas você é burro, hei.
        Donde diabo viera aquele cara impertinente, para me obrigar a resolver uma charada àquela hora da manhã? Mas meu orgulho estava em jogo. Pensava e o pensamento escapulia.
        --- Não consigo decifrar. Não me amola.
        --- Então você perdeu.
        --- É, perdi.
        --- Então paga.
        --- Paga o quê?
        --- Duas pratas, meu Zé. Você perdeu!
        Era incrível. Comecei a rir. Ele também ria e dizia: “Paga, duas pratas.” Dei-lhe uma cédula de dois cruzeiros e fiquei ali rindo enquanto ele se afastava arrastando seus sapatos furados.
        Semanas depois, estava eu no Passeio Público, quando ele veio com a mesma conversa, como se nunca me tivesse visto. “Mata essa: não durmo no Rio, porque tenho pressa; duas e três.” Respondi-lhe em cima da bucha: “Não durmo, velo; no Rio. Cidade: velocidade. “Ele ficou desapontado. “Você perdeu”, disse-lhe eu. “Paga duas pratas.” Olhou-me sério, meteu a mão no bolso e estendeu-me duas notas imundas. Fomos tomar juntos um café na Lapa.
GULLAR, Ferreira. O melhor da crônica brasileira. 1 Ferreira
Gullar... [ET al.]. – 5ª Ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.

Entendendo a crônica:
01 – Após a leitura da crônica; o que você entendeu por duas e três?
      Resposta pessoal do aluno.  
  
02 – O narrador se assustou com uma voz, o que ela dizia?
     Se tu é bom, mata essa: “Não durmo no Rio porque tenho pressa; duas e três.”

03 – A narrativa está em 1ª ou 3ª pessoa? Retire do texto um trecho que justifique sua resposta.
      Está em 1ª pessoa – “Levei um susto quando aquela voz soprou em minha nuca.”

04 – Onde e quando aconteceu o primeiro encontro entre os dois homens?
      No banco da praça Floriano, era de manhã cedo no mês de junho.

05 – Para o narrador o que lhe pareceu ser o homem que o abordara? Assinale a alternativa correta:
a) um vagabundo de rua           
b) um mágico de rua
c) um vigarista                           
d) um trabalhador desempregado.

06 – Assinale a alternativa correta:
a) O narrador achou muito comum e normal a abordagem que lhe foi feita pelo homem.
b) O narrador repeliu, veementemente, o homem.
c) Apesar de ter achado estranha a abordagem, o narrador acabou se envolvendo com a simpatia do desconhecido.
d) O estranho queria extorquir o narrador.

07 – Qual a palavra que melhor se aproxima de um sinônimo para a palavra charada?
a) duelo                  
b) disputa                 
c) comando                 
d) enigma.    

08 – Na frase “Este homem está me tomando por um vagabundo.” a expressão destacada significa:
a) “parecendo com”                          
b) “comparando com”
c) “acompanhado por”                    
d) “discordando de”.

09 – O narrador pagou duas pratas ao velho porque:
a) jamais estivera naquela situação.
b) pela conversa agradável do homem.
c) não conseguiu decifrar a charada.  
d) porque o homem estava com fome.

10 – Em “Mata essa, vamos!” o termo destacado tem o mesmo sentido de:
a) elimina             
b) abate                    
c) extermine                  
d) resolve.

11 – O texto se desenvolveu em torno:
a) da amizade impossível entre duas pessoas que pouco se conheciam.
b) da camaradagem entre dois homens apreciadores de charadas
c) do encontro inesperado entre pessoas que não se conheciam 
d) do hábito das pessoas frequentarem praças e bibliotecas.



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