CONTO: VENTA-ROMBA
Graciliano Ramos
Ofereceram a meu pai o emprego de juiz
substituto e ele o aceitou sem nenhum escrúpulo. Nada percebia de lei, possuía
conhecimentos gerais muito precários. Mas estava aparentado com senhores de
engenho, votava na chapa do governo, merecia a confiança do chefe político – e
achou-se capaz de julgar.
Naquele tempo, e depois, os cargos se
davam a sequazes dóceis, perfeitamente cegos. Isto convinha à justiça.
Necessário absolver amigos, condenar inimigos, sem o que a máquina eleitoral
emperraria.
[...]
Venta-Romba pedia esmola, gemendo uma
cantilena, indiferente às recusas:
--- Como vai, seu Major? E a mulher de
seu Major? Os filhinhos de seu Major?
A voz corria mansa; as rugas da cara
morena se aprofundavam num sorriso constante; o nevoeiro dos olhos se iluminava
com estranha doçura. Nunca vi mendigo tão brando. A fome, a seca, noites frias
passadas ao relento, a vagabundagem, a solidão, todas as misérias acumuladas
num horrível fim de existência haviam produzido aquela paz. Não era resignação.
Nem parecia ter consciência dos padecimentos: as dores escorregavam nele sem
deixar mossa.
--- Como vai, seu Major? Os filhinhos
de seu Major?
Humildade serena, insignificância, as
mãos trêmulas e engelhadas, os pés disformes arrastando as alpercatas,
procurando orientar-se nas esquinas, estacionando junto dos balcões. Restos de
felicidade esvaíam-se nas feições tranquilas. O aió sujo pesava-lhe no ombro; o
chapéu de palha esburacado não lhe protegia a cabeça curva; o ceroulão de pano
cru, a camisa aberta, de fralda exposta, eram andrajos e remendos.
Aparecia uma vez por semana, às
sextas-feiras, quando se realizava a caridade: um pires de farinha nas casas
particulares, um vintém nas lojas e nas bodegas. Mas as famílias de lojistas e
bodegueiros não exerciam a caridade, porque isto seria redundância.
--- Peça na venda.
Tínhamos ordem para afastar os
peditórios.
Uma sexta-feira Venta-Romba nos bateu à
porta. Deve ter batido: Não ouvimos as pancadas. Achou o ferrolho e entrou,
surgiu de supetão na sala de jantar, os dedos bambeando no cajado. As moças
assustaram-se, os meninos caíram em grande latomia.
--- Vá-se embora, meu senhor, disse a
patroa.
A distância, esse tratamento de meu
senhor a uma criatura em farrapos soa mal. Era assim que minha mãe se
expressava dirigindo-se qualquer desconhecido. Trouxera o hábito da fazenda, e
isto às vezes não revelava polidez. Em tons vários, meu senhor traduzia
respeito, desdém ou enfado. Agora, com estridência e aspereza, indicava zanga,
e a frase significava, pouco mais ou menos:
---Vá-se embora, vagabundo.
Venta-Romba perturbou-se, engasgou-se,
apagou o sorriso; o vexame e a perplexidade escureceram-lhe o rosto; os beiços
contraíram-se, exibindo as gengivas nuas.
--- Sinha dona... murmurou.
Com certeza buscava explicar-se.
Interjeições roucas e abafadas escapavam-lhe; os olhos baços percebiam o terror
das crianças e arregalavam-se aflitos.
Minha mãe era animosa. Atirava,
montava, calejara na vida agreste. Certo dia um Coronel lhe entrou subitamente
na cozinha, lívido, rogando-lhe que o escondesse da polícia: trancou-o num
quarto, guardou a chave, tomou as primeiras medidas necessárias à fuga. Não
precisava que o marido, pessoa débil, viesse enxotar Venta-Romba. Mas expediu o
moleque José com um recado e plantou-se junto à mesa, áspera, silenciosa, os
cantos da boca repuxados, a mancha vermelha da testa muito larga.
Diante dela, o pobre intentava aliviar
a impressão má, e cada vez mais se confundia; deixou passar o momento de
retirar-se. Coçara a cabeça, gemia desculpas asmáticas, e ninguém o escutava.
Num arranco de impaciência, bateu com o pau no tijolo, agravou a balbúrdia. A
severidade vincou o rosto da mulher; as moças cochicharam rezando e fixaram a
atenção na entrada do corredor.
Nesse ponto chegou meu pai. Chegou
alvoroçado, branco, e logo se fortaleceu, pôs-se a interrogar Venta-Romba, que
desabafou, estranhou a desordem: implicância dos meninos, gritos, choro, a dona
sisuda, as doninhas arrepiadas. Fuzuê brabo à toa, falta de juízo. Graças a
Deus, tudo se alumiava. Descobriu-se, despediu-se, caminhou de costas:
--- Adeus, seu Major.
Meu pai atalhou-o. Antes de qualquer
sindicância, tinha-se resolvido. Enganara-se com os exageros do moleque,
enviara um bilhete ao comandante do destacamento. A fraqueza o impedia a
decisões extremas. Imaginara-se em perigo. Reconhecia o erro, mas obstinava-se.
Misturava o sobressalto originado pela notícia ao enjoo que lhe causava a
figura mofina – e desatinava. Propendia a elevar o intruso, imputar-lhe culpa e
castiga-lo. De outro modo, o caso findaria no ridículo.
--- Está preso, gaguejou, nervoso,
porque nunca se exercitara naquela espécie de violência.
Alguém tossiu na sala, um boné vermelho
apareceu no fim do corredor. Insensível, Venta-Romba tropicava como um
papagaio, arrimava-se penosamente à ombreira da porta. Deteve-se, largou uma
exclamação de surpresa e dúvida. E quando a frase se repetiu, balbuciou
descorado:
--- Brincadeira de seu Major.
Espalhou a vista em roda: o barulho das
crianças fora substituído por uma curiosidade perversa; as moças tremelicavam
na costura; a face de minha mãe expunha indiferença imóvel; um sujeito passeava
na sala de visitas, exibindo pedaços da farda vistosa. Claro que não era
brincadeira, mas o velho, estonteado, não alcançava o desastre. Arredou-se da
porta, encostou-se à parede, esboçou um movimento de defesa. Se não fosse
banguelo, rangeria os dentes; se os músculos não tivessem lassos, endureceria
as munhecas, levantaria o cajado. Impossível morder ou empinar-se; o gesto
maquinal de bicho acuado esmoreceu; devagar, a significação da palavra rija
furou, como pua, o espírito embotado. E emergia da trouxa de molambos uma
pequena flácida:
--- Por quê, seu Major?
Era o que eu também desejava saber. À
janela, distraindo-me com o voo das abelhas e o zunzum do cortiço pendente no
beiral, vira o espalhafato nascer e engrossar em minutos. Não haviam colaborado
nele – e a interrogação lamentosa me abalava. Por quê? Como se prendia um
vivente incapaz de ação? Venta-Romba movia-se de leve. Não podendo fazer mal,
tinha de ser bom. Difícil conduzir aquela bondade trôpega ao cárcere, onde
curtiam pena os malfeitores.
--- Por quê, seu Major?
O cochilo renovado ficou sem resposta.
Seu Major não saberia manifestar-se. Assombrara-se, recorrera à força pública e
receava contradizer-se. Talvez sentisse compaixão e se reconhecesse injusto.
Enraivecia, acusava-se e despejava a cólera sobre o infeliz, causa do
desarranjo. Em desespero, roncou injúrias. O polícia que pigarreava na sala se
avizinhou, a blusa desabotoada, faca de ponta à cintura, as reiúnas de vaqueta
ringindo.
Vinte e quatro horas de cadeia, uma
noite na esteira de pipiri, remoques dos companheiros de prisão, gente
desunida. Perdia-se a sexta-feira, esfumava-se a beneficência mesquinha. Como
havia de ser? Como havia de ser o pagamento da carceragem?
Venta-Romba sucumbiu, molhou de
lágrimas a barba sórdida, extinguiu num murmúrio a pergunta lastimosa. O
soldado ergueu lhe a camisa. Segurou o cós do ceroulão, empunhou aquela ruína
que tropeçava, queria aluir, atravessou o corredor, ganhou a rua.
Fui postar-me na calçada, sombrio, um
aperto no coração. Venta-Romba descia a ladeira aos solavancos, trocando as
pernas, desconchavando-se como um judas de sábado de aleluia. Se não o
agarrassem, cairia. O aió balançava; na cabeça desgovernada os vestígios de
chapéu iam adiante e vinham atrás; as alpercatas escorregavam na grama.
Eu experimentava desgosto, repugnância,
um vago remorso. Não arriscara uma palavra de misericórdia. Nada obteria com a
intervenção, certamente prejudicial, mas devia ter afastado as consequências
dela. Testemunhara uma iniquidade e achava-se cúmplice. Covardia.
Mais tarde, quando os castigos
cessaram, tornei-me em casa insolente e grosseiro – e julgo que a prisão de
Venta-Romba influiu nisto. Deve ter contribuído também para a desconfiança que
a autoridade me inspira.
Graciliano Ramos. Infância. Rio de Janeiro:
Record, 1976. p. 222-9.
Interpretação do texto:
1 – O texto é narrado em
primeira pessoa. Comente a importância disso.
O texto é autobiográfico; o narrador
resgata fatos de sua infância para relatar fatos que vem, no momento da
narrativa, carregados de emoção e revolta. Com o narrador em primeira pessoa,
esses sentimentos fluem com mais intensidade.
2 – Que palavra, na primeira
linha do texto, antecipa para o leitor uma informação negativa a respeito da
atividade do pai do narrador?
Emprego de juiz.
3 – Observe esta passagem do
segundo parágrafo:
“Naquele tempo, e depois, os cargos se davam a sequazes dóceis, perfeitamente cegos. Isto convinha à justiça. Necessário
absolver amigos, condenar inimigos, sem
o que a máquina eleitoral emperraria”.
a)
Supondo que naquele tempo signifique o tempo em que o narrador era criança, a
que tempo estaria se referindo com e
depois?
Provavelmente se refere ao tempo em que já é adulto e que não está
muito longe do nosso tempo (Graciliano Ramos faleceu em 1953).
b)
O adjetivo cegos é usado para caracterizar as pessoas que exerciam cargos
importantes? (Observe, ainda, o adverbio: perfeitamente.)
Ele faz uma referência à imagem da justiça, que é cega, imparcial;
já o pai do narrador deveria ser cego apenas quando fosse conveniente.
c)
Em “Isto covinha à justiça”, a qual justiça o
narrador se refere?
À justiça (ou injustiça) praticada pelos poderosos: pelos donos das
terras e senhores de engenho.
d)
O que seria a máquina eleitoral? O que
poderia fazê-la emperrar?
A máquina eleitoral seria a garantia de continuidade de determinadas
pessoas no poder. Juízes imparciais poderiam atrapalhar esses planos; daí a
necessidade de manter nos cargos importantes apenas os amigos.
4 – Releia a descrição de
Venta-Romba.
a)
Se não era resignação, o que o fazia comportar-se
daquela maneira?
Uma espécie de paz, adquirida após tantos anos de sofrimento.
b)
Que motivos tinha para manter o sorriso
constante?
Nenhum. Porém, já não se dava conta de nada; vivia como que num
outro mundo, indiferente a tudo.
c)
Por que chamava a todos de Major?
Era uma forma de mostrar subserviência. Major, sendo alto posto do
exército, revela um certo respeito a essa instituição e lisonjeia quem é assim
chamado, algo parecido com o título de “coronel” atribuído aos chefões
políticos do nordeste brasileiro.
d)
Por que é comparado a Judas de sábado de
aleluia?
Assim como Judas (aquele boneco que se costuma queimar no sábado de
aleluia), Venta-Romba foi alvo de um ataque. Ele recebeu sobre si a culpa e a
condenação de algo que não fez, o castigo por uma decisão tomada
equivocadamente por um juiz pusilânime. Em última análise, ele foi sacrificado
por ser um mendigo.
5 – Ao reler as afirmações:
“Nunca vi mendigo tão brando.”, “misérias acumuladas num horrível fim de
existência”, observe que elas têm um peso enorme na narrativa.
a)
Por quê?
O ato de ele ser um mendigo inofensivo torna ainda mais indigna a
injustiça sofrida por ele.
b)
Se Venta-Romba era conhecido nas redondezas,
qual a razão do susto e da latomia da família?
Na verdade, não havia razão. As pessoas podem ter-se sentido
incomodadas pelo fato de não terem ouvido o mendigo bater e, de repente,
viram-se frente a frente com a desagradável figura. Ele não se retirou quando
deveria e essa atitude agravou ainda mais a “invasão”.
6 – “... Vá-se embora, meu senhor, disse a patroa”.
a)
Não teria sido mais natural usar “mina mãe”
em lugar de “patroa”, uma vez que o texto é narrado em primeira pessoa?
Ele quis reforçar o gesto da patroa, da dona da casa, que foi
ríspido, não condizente com a postura de uma mãe.
b)
Por que alguém usaria a expressão “meu
senhor” no lugar de “vagabundo”?
Alguém que quisesse ser irônica, que tivesse a intenção de
transmitir exatamente o contrário do que diriam suas palavras.
7 – Apesar de ter condições
de resolver o problema sozinha, por que a mãe mandou chamar o marido? Qual a
importância, na narrativa, do trecho relacionado ao “Coronel”?
Talvez para sentir-se mais seguro ou para
mostrar ao mendigo que ele se arrependeria por não ter obedecido à ordem de
retirar-se imediatamente. O trecho que faz referência ao Coronel enfatiza que a
mãe fora precipitada com Venta-Romba: a mesma pessoa que agora hostilizava o
mendigo e pedia ajuda ao marido fora capaz de dar cobertura a fuga de um outro
homem, sem consultar ninguém.
8 – Revendo a personagem
Venta-Romba, responda:
a)
Venta-Romba não consegue explicar-se,
desfazer o equívoco. Por quê? Ter permanecido na casa foi uma decisão acertada?
Ele se sente constrangido, indignado. Mas sua dificuldade em
expressar-se o impede de desculpar-se e sair. Ele tomara a decisão errada ao
resolver ficar.
b)
Quando julgava poder esclarecer tudo, o
mendigo vê sua situação piorar ainda mais. Por quê?
Achou que já se explicara ao dono da casa; não contava com o fato de
este ter chamado a polícia.
9 – Que atitude do pai do
narrador foi pior do que ter chamado a polícia antes de saber o que acontecia?
Não ter voltado atrás em sua decisão. Ao
ver que se tratava de Venta-Romba, podia ter dispensado a polícia, mas achou
que isso o desmoralizaria.
10 – Que aspectos são realçados
na descrição do policial?
Aspecto que buscam mostrar o abuso de
autoridade: botas fazendo barulho, faca à mostra, farda em desalinho, o
pigarrear de quem quer se fazer notar.
11 – Segundo o narrador, o
que há por trás da arbitrariedade das pessoas?
Fraqueza, insegurança, o fato de
sentirem-se ameaçadas.
12 – Procure no texto todos
os adjetivos usados para caracterizar o pai do narrador. O que você nota?
Ele é exatamente
assim: fraco e inseguro.
13 – Quando, finalmente, o
narrador se coloca favorável a Venta-Romba? Por que pareceu ao narrador absurda
a ideia de colocar o mendigo numa cadeia?
Quando o mendigo
questiona por que está sendo preso. Nesse momento, o narrador também quer saber
o motivo. Venta-Romba era a bondade em pessoa e, no cárcere, só havia
malfeitores.
14 – “... Por quê, seu
Major?” A atitude do mendigo nesse momento lhe pareceu resignada, digna ou
acintosa?
Digna.
15 – Seu Major era parte da
cantilena de Venta-Romba, e a todos ele se dirigia assim. Como se explica,
entretanto, que a expressão seja incorporada ao texto, como, por exemplo, em:
“Seu Major não saberia manifestar-se”?
Ele toma o partido do mendigo e trata o
pai como se fosse um estranho, cuja atitude, na verdade, desaprova totalmente.
16 – O narrador está
desgostoso, mas, covardemente, nada faz em defesa do injustiçado. Por quê?
Ele sabe que, se agisse em defesa de
Venta-Romba, seria duramente castigado. Além disso, de nada adiantaria sua
intervenção. As crianças, nessa época, não eram ouvidas.
17 – Em que esse incidente
influenciou a formação da personalidade do narrador? Em que influenciou você?
O incidente fez o narrador crescer
desconfiando de toda autoridade. De uma certa forma, ele se “vingou” do pai,
revelando publicamente o fato. Todos que o leem passam a reavaliar ou a
reconsiderar sua opinião sobre as “autoridades”.
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