quinta-feira, 19 de outubro de 2017

TEXTO(FRAGMENTO): O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS - BORIS FAUSTO - COM GABARITO


O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS

      Nos festejos populares de rua destacavam-se ranchos, blocos e cordões. Os bairros eram berço de muitas sociedades, entre as quais o Grupo Carnavalesco Barra Funda, nome oficial da atual Camisa Verde e Branco, os Desprezados, o Flor da Mocidade, o Grupo Carnavalesco Campos Elísios, a Escola de Samba Lavapés, do bairro do Cambuci.
      Esta última tinha sido fundada por dona Eunice, cujo verdadeiro nome era Deolinda Madre, casada com o batuqueiro Francisco Papa, filho de italianos. Dona Eunice era uma réplica menos conhecida das figuras femininas do Rio de Janeiro, como dona Neuma e dona Zica, mais ainda porque ia buscar pessoalmente na então capital da República.
        A “Lavapés” desfilava com uma bateria que marcava o ritmo, estandarte agitado ao vento, balizas e passistas, gingado sob os olhares masculinos. Na Vila Esperança – zona leste da cidade –, o Clube Cinco de Julho de destacava no carnaval de rua e nos salões, contando com a ativa participação de imigrantes espanhóis. No carnaval de rua, misturavam-se as “jovens índias”, a gente cuja fantasia se reduzia a um paletó vestido pelo avesso e uma linguiça em torno do pescoço, os barbudos vestidos de mulher.
        Afora a Vila Esperança, a presença dos imigrantes no carnaval paulistano era visível nos bairros da Lapa e do Brás. O corso das avenidas Rangel Pestana e Celso Garcia, os bailes do Teatro Colombo eram muito animados, e as fantasias dos foliões costumavam lembrar suas origens. Enfim, para o bem ou para o mal, como dizia O Estado de São Paulo, o Brás tinha “sangue na guelra”, mas para muitos habitantes da cidade era um mundo à parte, um território desconhecido, situado “além das porteiras”.
        Ho-Fung, Maria Akiau e seus amigos não eram indiferentes ao carnaval. Na terça-feira – 1° de março –, um grupo de chineses e seus descendentes contratou um chauffeur de praça conhecido para passear pela cidade. Partiram da rua Wenceslau Braz por volta das nove horas, compraram alguns pacotes de serpentina e regressaram bem mais tarde, por volta da meia-noite, Ho-Fung e Maria se despediram dos amigos e entraram em sua casa, de onde não sairiam vivos.
        Já Arias caiu em cheio na folia, arranjando-se para dormir durante o dia num quarto de pensão, pelos lados do Brás. O quarto era alugado por um amigo – Pedro Marques – a quem conhecia havia anos, dos tempos de França. Caprichou na aparência, vestido de terno branco, gorro na cabeça, tênis, camiseta de flanela e meias também brancas.
        O corso, os carros alegóricos não o atraíam. Não estava interessado em ser um simples espectador de desfiles, e havia uma grande distância social entre ele e aquela gente que fazia o corso. Gostava era dos bailes populares, em que podia saracotear, dançar o “desparafusado” samba, com mulatas e negras sinuosas. O melhor lugar para isso eram os tablados erguidos no centro da cidade, na praça da Sé e na do Patriarca.
        De acordo com sua versão, na terça-feira gorda pela manhã resolveu ir ao restaurante chinês, em busca de recuperar o emprego após o carnaval. Mas o patrão lhe respondeu que já tinha outro em seu lugar. Não se importou muito com a resposta negativa porque, quem sabe, acabaria encontrando uma saída para as dificuldades nos dias seguintes. Naquele momento, o melhor a fazer era aproveitar a última noite de carnaval. Saiu em companhia de outro amigo de Franca, um servente de pedreiro, Jorge Marques. Foi dançar no tablado erguido na praça do Patriarca.
        Aí pelas nove da noite, juntou-se a eles um rapaz sapateiro, vindo também de França, apelidado de Feitiço.  Como fazia muito calor, Arias, Jorge e Feitiço se lembraram que poderiam deixar os paletós no quarto de outro amigo, que morava próximo, na rua Santo Antônio. O amigo – Benedito Rosa – guardou os paletós, mas não quis se juntar ao grupo, triste pelo fato de a mulher, que ficara em Franca, ter perdido uma criança.
        Feitiço e Jorge Marques resolveram ir para casa mais cedo, pois teriam de trabalhar no dia seguinte, e Arias ficara dançando na praça da Sé sem os companheiros até as três da madrugada, quando o baile terminou. Viu muita gente, dançou com muitas mulheres, mas não conhecia, nem ficou conhecendo nenhuma delas. Já muito tarde depois de buscar seu paletó, desceu a pé até o Brás. Quando entrou no quarto de pensão, não encontrou Pedro Marques, que por sua conta continuara sambando até o dia clarear.
        Por volta do meio-dia, com a cabeça pesada, as cenas do carnaval ainda passando diante de seus olhos, levantou-se e seguiu para o Diário Popular. Aí ficou sabendo da chacina. Aliviado, pensou que o carnaval, além dos prazeres, talvez tivesse salvo sua vida, pois, se não fosse a folia, quem sabe teria ficado no restaurante e dormido numa daquelas mesas onde duas pessoas tinham sido massacradas.
        A versão policial era outra. Na terça-feira de carnaval à tarde, Arias fora procurar Ho-Fung no restaurante chinês a fim de recuperar o emprego, e este acabou concordando porque se relacionava bem com Arias, que “conhecia seu lugar” na casa. Assim, mesmo sendo muito cauteloso com relação aos empregados que dormiam no estabelecimento, concordou que Arias dormisse ali na noite de terça-feira, o lado dos dois garçons. Durante a noite, movido pela intensão de roubar, pois sabia que o cofre do a mão de pilão e massacrou em sequência os dois empregados e o patrão. Sempre na versão policial, entrou depois no quarto de Maria Akiau, com quem se atracou para que lhe desse a chave do quarto, e diante da resistência acabou esganando-a. Na manhã do sai seguinte. Arias fora postar-se na frente do Diário Popular para “assuntar”, para ser visto e dar a impressão de normalidade de comportamento e de inocência.
        Sem advogado, sem parentes, sem contatos que lhe pudessem ser úteis, Arias se viu sozinho diante das autoridades que o acusavam. Ficou detido, enfrentando seguidos interrogatórios acompanhados de ameaças. Mas estas eram compreensíveis para ele, pois afinal de contas tratavam de forçar sua confissão. Incompreensível era a minuciosa tomada de medidas de seu corpo nu; o exame dos dentes e da unhas; as palavras pronunciadas por aqueles homens, que não tinham forma de pergunta mas exigiam resposta; ou ainda uma porção de borrões, em folhas separadas, mostradas umas após outras, parecendo coisa de criança, mas levadas a sério, pois ele tinha de dizer com que pareciam. Diante de tudo isso, Arias procurou fugir à lista de palavras, não entendeu as instruções para as respostas, ou fez que não entendeu, pois intuía sérios riscos por trás daquela “brincadeira”, e tentou disfarçar o nervosismo rindo e dizendo, de quando em quando: “Chi, tá doido”.
        Numa primeira tentativa dos especialistas para que desse uma resposta sobre o que os borrões lhe sugeriam, ficou em silêncio por vários minutos. Quando lhe disseram que aquilo era apenas uma prova de inteligência, respondeu: “Mas a gente diz qualquer coisa e fica ainda mais condenado!”. Foi inútil lhe afirmarem que “não havia nada disso, que ele devia dizer qualquer coisa, que estava vendo fantasmas”. Para não se recusar totalmente a colaborar, falou umas palavras sobre os borrões e calou-se.

                   Boris Fausto. O crime do restaurante chinês. São Paulo:
                                              Companhia das Letras, 2009. p. 74-85.

Barra Funda, Campos Elíseos, Cambuci: logradouros da cidade de São Paulo.
Corso: no carnaval, desfile de carros enfeitados com serpentinas, fitas, etc., em que vão os foliões fantasiados.
Dona Neuma e Dona Zica: famosas sambistas e carnavalescas cariocas, ambas ligadas à escola de samba Estação Primeira de Mangueira (fundada em 1928).
Réplica: imitação, cópia
Saracotear: agitar-se freneticamente, estar inquieto.
Intuir: perceber por intuição, pressentir.


Interpretação do texto:
1 – Os quarto primeiros parágrafos do texto são dedicados ao Carnaval paulistano. Algum dos costumes carnavalescos citados ocorrem em sua cidade ou em seu bairro? Quais?
      Resposta pessoal do aluno.

2 – Que grupo social merece destaque nesse trecho?
      Os imigrantes.

3 – Em que modelo os grupos carnavalescos buscavam inspiração?
      A inspiração era buscada no Carnaval carioca.

4 – Analise o último período do quarto parágrafo, em que o enunciador concorda com uma opinião do jornal O Estado de São Paulo. O que ele quer dizer?
      O enunciador concorda com o jornal a respeito do Brás: tratava-se de um bairro diferente dos demais, podendo essa diferença ser positiva ou negativa, dependendo do contexto.

5 – Que fato é introduzido pela expressão “De acordo com sua versão...”
      O testemunho do crime.

6 – Que frase desse parágrafo mostra que Arias deixou suas preocupações de lado, por um tempo?
“... naquele momento, o melhor a fazer era aproveitar a última noite de carnaval...”



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