terça-feira, 24 de outubro de 2017

CONTO: SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

CONTO: SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA
                 João Guimarães Rosa


  Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.
        As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo – o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.
        A hora era de muito sol – o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.
        O agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. – “Vai ver se botaram água fresca no carro...” – ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: --- “Eles vêm! ...” Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer da comitiva.
        Aí, paravam. A filha – a moça – tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras – o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas – virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.
        Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles trasmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta do Sorôco – para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: --- “Deus vos pague essa despesa ...”.
        O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco aguentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Saí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências, de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.
        De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. – “Ela não faz nada, seo Agente...” – a voz de Sorôco estava muito branda: --- “Ela não acode, quando a gente chama...” A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outrora grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo – um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.
        Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautel, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer minguá, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.
        Agora, mesmo, a gente acorçoo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.
        Sorôco.
        Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.
        Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falavam: --- “O mundo está dessa forma...” Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavm demais de Sorôco.
        Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, para ir-s’embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.
        Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.
        A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi um caso sem comparação.
        A gente estava agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.

                                         João Guimarães Rosa. Primeiras estórias.
                                    Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 61-4.
Atrelado: preso.
Esplanada: terreno plano e descoberto.
Porfiar: discutir, debater.
Borco: parte externa do que está de barriga para baixo.
Chusma: multidão.
Enfunado: inchado, cheio de.
Fichu: lenço de cabeça e ombros.
Reluzência: brilho.
Vigorar: ter sentido.
Acorçoo: alento.
Alteado: levantado, soerguido.
Animoso: corajoso.
Aprestes: aprontamentos; provisões.
Atalhado: reportado.
Avocar: chamar a si a responsabilidade, o direito.
Chirimia: palavras desconexas.
Diligência: providência; medida.
Enxequetado: enxadrezado.
Juntura: circunstância.
Jurisprudência: conjunto de leis.
Mercê: favor; beneficio; benevolência.
Remir: resgatar.
Reportado: moderado, prudente, cauteloso.
Decretado: parado.
Embargado: reprimido, contido.


Interpretação do texto:
1 – Por que as duas mulheres estavam sendo levadas para Barbacena?
      Para serem internadas em um hospital psiquiátrico (hospício).

2 – Na opinião do povo, a partida dessas mulheres representava um alívio para Sorôco. Por quê?
      Sorôco não tinha mais condição de cuidar das duas sozinho, precisa sempre recorrer ao auxílio de outras pessoas.

3 – Quando ambas as mulheres começam a cantar, fica evidente o desequilíbrio entre os dois grupos de personagens: essas mulheres e as demais pessoas. Mesmo a partida do trem não resolve o mal-estar. Como o equilíbrio é reestabelecido no conto, em sua opinião?
      Após a partida do trem, Sorôco, na volta para casa, começa a cantar a cantiga das duas mulheres e a comunidade também. Ou seja, as personagens recuperam o equilíbrio à medida que aderem à manifestação de loucura das mulheres.

4 – Através da cantiga, as duas mulheres exteriorizavam seus sentimentos. Caracterize, com suas palavras, o teor dessa cantiga.
      A grosso modo, a cantiga expressava as adversidades da vida das mulheres.

5 – Que efeito o trecho “[...] não se conhecia dele o parente nenhum [...]” provoca na construção da figura de Sorôco?
      Em nossa leitura, a informação acentua a dramaticidade da partida das duas mulheres, a solidão de Sorôco.

6 – A cantiga, de início, é a expressão da loucura das mulheres. No final, assume outra função no conto. Qual?
      A cantiga permite a manifestação da solidariedade do povo a Sorôco.

7 – Copie em seu caderno palavras ou expressões do texto equivalentes a:
      a – Aglomeração de pessoas;
      “De ajuntamento”.

      b – O povo procurava jeito;
      “O povo caçava jeito”.

      c – Olhar fixamente;
      “Afirmar as vistas”.

      d – Meneava a cabeça.
      “Batia com a cabeça”.


Um comentário:

  1. ... barba quadrada ... em todas pesquisas que fiz não encontrei um significado.

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