CRÔNICA: A
DESCOBERTA DA ESCRITA
Ignácio de Loyola Brandão
Tentava escrever e eles surgiam,
levando todo o material. Confiscavam e sumiam. Sem satisfações, mas também sem
recriminações. Não diziam nada, olhavam e recolham o que estava sobre a mesa.
Tentou mudar de casa, não adiantou.
Eles chegaram, apenas a caneta tocava o papel. Como se aquele toque tivesse a
capacidade de emitir um sinal, perceptível somente por eles, como o infra som
para um cachorro. Levaram todos os papéis. E, quando ele tentou comprar, as
papelarias não venderam sema a requisição oficial. Nenhum tipo de papel, nada.
Caderno, cada criança tinha direito a cotas estabelecidas. Desvio de cadernos
era punido com degredo perpétuo. Rondou as padarias e descobriu que o pão era
embrulhado em plásticos finos, transparentes. E, quando quis comprar um jornal,
viu que as margens não eram brancas, vazias. Agora, havia nelas um chapado
preto, para impedir que se escrevesse ali. Uma noite, altas horas, escreveu nas
paredes. E pela manhã descobriu que eles tinham vindo e caiado sobre os
escrito. Escreveu novamente. Caiaram, outra vez. Na terceira, derrubaram as
paredes. Ele procurava desmontar caixas, aproveitar as áreas internas. Eles
tinham pensado nisso, antes. As partes internas eram cheias de desenhos, ou com
tintas escuras sobre as quais era impossível gravar alguma coisa. Experimentou
panos brancos, algodão cru, cores leves como o amarelo, o azul claro. Eles
também tinham pensado. As tintas manchavam o pano, borravam, as letras se
confundiam.
Eles não proibiam, prendiam ou
censuravam. Pacientemente, vigiavam. Controlavam. Dia a dia, minuto, segundos
Impediam que ele escrevesse. Sem dizer nada, simplesmente tomando: objetos,
lápis, canetas, cotos de carvão, pincéis, estiletes de madeira, o que ele
inventasse.
Dois, cinco, doze anos se passaram. Ele
experimentou fabricar papel, clandestinamente, em porões e barracos escondidos
no campo. Eles descobriram, arrebentavam as máquinas, destruíam as
matérias-primas.
Ele tentou tudo: vidros, madeira,
borracha, metais. Percebia, com o passar do tempo, que eles não eram os mesmos.
Iam mudando, se revezando. Constantes, sempre incansáveis, silenciosos.
Deixou o tempo correr. Fez que tinha
desistido. Só pensava, escrevia dentro da própria cabeça tudo o que tinha.
Esperou dois anos, cinco, doze. Quando achou que tinha sido esquecido, colocou
o material num carro.
Tomou estradas para o norte, regiões
menos povoadas. Cruzou pantanais, sertões, desertos, montanhas. Calor, frio,
umidade. Encontrou uma planície imensa, a perder de vista. Onde só havia
pedras. Ficou ali. Com martelo e cinzel, começou a escrever. Gravando bem fundo
nas pedras imensas os sinais. Ali podia trabalhar, sem parar.
E o cinzel formava, lentamente, ás,
bês, cês, dês, pês. Traços. Palavras, desenhos.
Ignácio de Loyola Brandão.
O homem do furo na mão
& outras
histórias. São Paulo: Ática, 1987. p. 29-30.
(Série Rosa dos Ventos).
Interpretação:
1 – Ao ler o título, em que
você pensou? Sua hipótese se confirmou após a leitura? Justifique o título do
texto.
Resposta pessoal
do aluno. O título remete a um passado longínquo; provavelmente a expectativa
dos alunos girará em torno das primeiras tentativas do homem de registrar sua
fala.
2- Observe que, no primeiro
período do texto, o autor refere-se a eles.
O pronome pessoal é geralmente empregado no lugar de um nome que já é do
conhecimento do leitor ou que será imediatamente citado. É o que ocorre nesse
texto? Como você explica o emprego desse pronome?
Não. O autor usa o pronome sem
antecedente. Além de instigar o leitor (queremos, a todo custo, saber quem são eles), a indefinição do referente
confere ao texto um caráter alegórico: Eles
são os órgãos repressores.
3 – Como o texto é narrado
em terceira pessoa, os verbos estão conjugados na terceira pessoa do singular,
quando se referem às ações da personagem principal, e na terceira pessoa do
plural. Estes últimos têm que tipo de sujeito? Qual a importância disso para o
texto?
Na
maioria das vezes, os verbos aparecem sem o pronome, configurando um sujeito
indeterminado. Esse recurso sintático faz aumentar o suspense, a curiosidade em
torno do sujeito da ação.
4 – O texto apresenta uma
progressão. De que maneira o autor a constrói?
A progressão na
narrativa é construída de várias maneiras: enumerando ações (e insucessos); com
indicações temporais (muitos anos passaram) e com a informação de que eles iam se revezando, como passar do
tempo.
5 – No trecho: “Percebia,
com o passar do tempo, que eles não eram os mesmos. Iam mudando, se revezando”,
como se poderia explicar esse “revezamento”? A quem, concretamente, o autor
estaria se referindo com esse texto? Procure estabelecer uma relação entre
esses fatos e uma determinada época histórica vivida recentemente pelo povo
brasileiro.
O autor se refere
aos representantes dos órgãos repressores. Provavelmente, com a mudança do
governo, os funcionários (ou censores) mudam também. O autor, alegoricamente,
refere-se ao período da ditadura militar, em que se institui a censura nos meios
de comunicação, da qual ele mesmo foi vítima.
6 – Como você imagina que
seja “escrever dentro da própria cabeça”? Você costuma fazer isso? A quem
atinge, comais intensidade, a impossibilidade de escrever?
Resposta pessoal
do aluno.
7 – Esperar dois, cinco, 12
anos, até achar que tinha sido esquecido é um ato de resistência. O que, na sua
opinião, manteve na personagem a vontade de escrever? Por que ele não desistiu
se não tinha forças suficientes para enfrentar seus repressores?
Nos períodos de grande repressão
política, o movimento de resistência é o que impede a morte total da cultura de
um povo. Com atividades divulgadas apenas em círculos fechados, ou lutando na
clandestinidade para ver chegar o dia da liberdade de um regime autoritário, os
pensadores, intelectuais, artistas, mestres jamais desistem de divulgar as
ideias que julgam acertadas para seu povo. Fingir que desistiram é apenas uma
estratégia de preservação.
8 – O que a escrita, tão
ardentemente desejada pelo personagem, estaria simbolizando no texto? Nesse
sentido, o que significaria “gravar bem fundo nas pedras”?
A escrita
simboliza a liberdade de expressão. “Gravar nas pedras” simbolizaria deixar
suas ideias registradas para sempre Nesse sentido, entende-se o título do
texto: a descoberta da escrita foi a concretização do desejo da personagem de
poder expressar-se, escrever o que pensava e sentia: ele, finalmente, descobre
uma maneira de escrever.
9 – Que processo de construção
de período predomina no texto? Por que o autor o escolheu?
Predomina o processo de coordenação. A
sequência quase interminável de tentativas para “furar o cerco” é reproduzida
com a enumeração das várias ações da personagem.
10 – Observe a extensão dos
períodos. Qual teria sida a intensão do autor ao construí-los assim?
O autor optou por períodos curtos, nos
quais reproduz a ação da personagem e a reação dos opressores, alternadamente.
Há um crescimento da violência no texto (arrebentavam as máquinas), o cerco vai
se fechando até que a personagem decide fingir desistência de seus planos. A
partir desse momento, os períodos se tornam ainda mais curtos, revelando apenas
as atitudes da personagem.
11 – Observe também como foi
construído o último parágrafo do texto e faça um comentário.
O último parágrafo revela a concretização
do sonho da personagem. O autor intensifica o processo de diminuição dos
períodos e encerra o texto apenas com frases nominais.
Amei esse conto.
ResponderExcluir