CONTROLE
REMOTO
Entrou em casa. Na sala de jantar, junto
à parede, sobre a prateleira envernizada (legítimo mogno da Amazônia), entre as
caixas de som do aparelho superpotente (digital, estéreo, com equalizador), a
pilha de CDs importados (todos os sucessos do momento) e o vídeo cassete (seis
cabeças, duzentas e trinta programações, controles de zoom, efeitos especiais e
edição), ali estava ela.
Três controles remotos, um do som, um
do vídeo, o terceiro da TV. Mais pesado que os outros, afinal controlava cento
e oitenta e quatro canais, entre UHF, VHF, parabólica e cabo.
Olhou para a porta da sala de jantar,
logo após o corredor. O perfume da refeição dançava no ar como mãos ágeis de
bailarinas árabes, odaliscas enlaçando-o pelo olfato. Seu olhar voltou ao
brilho do controle remoto sobre o sofá, pulsando de ansiedade por ser tocado.
A fome física sucumbiu à fome de
imagens.
Tocou o controle remoto e, num ápice, o
mundo estava à sua frente, em infinitas combinações dependentes apenas de toques
ínfimos nos botõezinhos da moderna varinha mágica. Sorriu ante o poder de criar
um coquetel visual interativo, prazeroso, vaiando de sabor a cada toque.
ZAP. O âncora do telejornal, grisalho,
sorriso sutil e terno impecável atestando sua confiabilidade, exala a Verdade
Absoluta por todos os poros. Porta-voz do governo desmente as denúncias de
corrupção nos altos escalões do Ministério.
Corrupção no Ministério? Impossível.
ZAP.
A deslumbrante modelo guindada à
posição de atriz tempera as belas pernas à beira da piscina com a dicção fanha,
pitada de charme a mais na construção de sua carreira. Não podemos continuar
nos encontrando assim, Marcelo Augusto. Meu marido pode desconfiar. Melhor a
gente dar um tempo...
Quem liga para o que ela diz? A
regulagem do zoom do controle remoto fecha um retângulo de aproximação com as
belas pernas. ZAP.
Um guerreiro ninja lança pelo ar a
lâmina mortal. Ráááá. Iáááá. Splaft. Crunch. A cabeça do inimigo rola pelo chão
deixando um rastro infindável de sangue. Aquele sujeito devia ser o campeão
mundial de hemoglobina. ZAP.
O bandido mexicano sacode a mocinha
frágil escassamente vestida. Tu
serás mi mujer, has oído? O no serás de ningúm otro hombre! As
lágrimas da mocinha escorrem ao som de melosa balada. ZAP.
O novo clip da banda top do momento
esbanja seios e fumaça de gelo-seco nas incompreensíveis imagens
branco-e-preto. Freud explica. O solo de guitarra, heavy, amplificado em
estéreo nas caixas de som, ensurdece no raio de um quilômetro. ZAP.
O gato corre atrás do rato brandindo a
machadinha afiada. Um cachorrão vestido de fora-da-lei-do-velho-oeste amarra a
gatinha no trilho do trem. A Maria Fumaça se aproxima. Clímax ao som da
Rapsódia húngara de Liszt. O gato ergue a machadinha. ZAP.
Pessoas humildes levam tortas na cara e
sorriem. ZAP. Facas Ginsu cortam em segundos um cano de PVC como se fosse um
salsichão. ZAP. Uma apresentadora loirinha, de minissaia com a grife Benneton
em destaque, pula entre dezenas de crianças ao som do mais recente sucesso
pop-sertanejo-com-laivos-de-rock. ZAP. Cary Grant gagueja em preto-e-branco sem
saber se beija Grace Kelly. ZAP. Sharon Stone, em cores, cruza as pernas e faz
Stallone, van Damme e Schwarzenegger gaguejarem. ZAP. Os olhos enormes dos
personagens do desenho japonês não piscam enquanto seus donos se transformam em
cavaleiros superpoderosos e reduzem o nefasto alienígena, que quer dominar a
Terra, a saquê. ZAP. O pregador religioso descreve o fogo do inferno. Os fiéis
arregalam os olhos. ZAP. O pai da família classe média americana ensina valiosa
lição moral aos filhos adolescentes. ZAP. Imagens da CNN ao vivo do Oriente
Médio destacam a perna de um civil, arrancada a bomba, descrevendo uma
trajetória pelo ar. ZAP. ZAP. ZAP. ZAP. ZAP. ZAP. ZAAAAAAAAAAAAAAAAAAAP...
Os olhos já não piscam mais. O aroma do
jantar já não excita seu olfato. O estômago deixou de existir. O tato ignora
qualquer estímulo, exceto os breves toques de botões. A ideia de poder exercido
sobre as imagens esvaiu-se.
Todas as ideias se esvaíram.
O controle remoto zapeia impune,
podendo-se ouvir entre um toque e outro certo chiado eletrônico que poderia ser
tomado por um risinho.
ZAP.
Texto escrito por uma das autoras deste
livro.
1 – Observe, no primeiro
parágrafo, as descrições dos móveis e objetos. A linguagem utilizada,
principalmente nos parênteses, fez você lembrar o quê?
Faz lembrar a linguagem publicitaria
usada nas propagandas de tevê ou nos catálogos de lojas.
2 – Observe também a última
palavra do primeiro parágrafo. Por que foi utilizado o pronome ela no lugar do substantivo? Repare que
esse pronome foi usado sem antecedente. Você já sabia a quem ele se referia, antes
de ler o parágrafo seguinte? Como você descobriu?
A autora não quer
revelar, logo de início, que se trata da tevê. Observar que “ela” é a última
palavra do parágrafo. Por isso, usa o pronome pessoal sem antecedente, o que
não é comum. Os alunos, provavelmente, vão dizer que sabiam que se tratava da
tevê devido ao título: controle remoto.
3 – Releia o terceiro
parágrafo. Foi criada uma imagem bastante atraente para descrever o cheiro da
comida. Com que intenção?
A intensão é
intensificar a ideia de que era difícil escolher entre comer ou ver televisão.
4 – Reescreva a frase no
caderno e complete-a:
A fome física está para o corpo como a
fome de imagens está___________.
A fome física está para o corpo como a
fome de imagens está para o intelecto.
5 – No quinto parágrafo, o
texto nos passa a sensação de que a personagem é onipotente. Como se consegue
isso?
Num simples toque, a personagem pode
controlar 184 canais e isso lhe dá um prazer incrível.
6 – No sexto parágrafo, uma
única palavra alerta o leitor para o fato de que, a partir daquele momento, as
imagens vêm diretamente do aparelho de TV: passamos a ser também meros
espectadores.
a)
Qual palavra é essa? O que significa?
ZAP. A palavra é uma onomatopeia que busca reproduzir o som do
controle remoto.
b)
Com o que está relacionada?
Está relacionada ao poder que o telespectador julga possuir sobre o
aparelho.
c)
Qual sua importância para o texto?
Passa a marcar o texto toda vez que a personagem muda de canal.
d)
A partir dessa palavra, em que tempo
aparecerão conjugados os verbos? Por quê?
No presente do indicativo. Os verbos vão reproduzindo as ações que
ocorrem na tela da tevê. Há uma intensão em “presentificar” essas imagens.
7 – Ainda sobre o sexto
parágrafo, responda:
a)
Por que foi usada a letra maiúscula em
Verdade Absoluta?
Tudo o que o locutor fala é considerado verdade, sem discussão ou
questionamento. Os telespectadores acreditam piamente nele. A imagem dele foi
propositadamente produzida para passar essa impressão.
b)
Como é feita a distinção entre a fala das
personagens da tevê e a fala do narrador?
Usa-se um tipo de letra diferente, o itálico.
8 – A atriz tem dicção
fanha, mas isso parece não ter a menor importância.
a)
Cite uma passagem do texto que confirme essa
afirmação.
“A deslumbrante modelo, guindada à posição de atriz, tempera as
belas pernas...”
b)
O que é possível deduzir sobre a trama da
novela a partir da fala da atriz?
É uma trama absolutamente banal, com triângulo amoroso, como tantas
outras que se repetem indefinidamente nas novelas.
c)
E o nome da personagem, o que lhe parece?
Marcelo Augusto é um nome bem típico de conquistadores ricos e
charmosos.
9 – Releia o décimo
parágrafo para responder aos itens abaixo:
a)
Justifique o emprego das onomatopeias.
As onomatopeias procuram reproduzir o ruído provocado pela luta.
b)
Identifique o recurso utilizado pela autora
neste trecho: “Aquele sujeito devia ser o campeão mundial de hemoglobina”
Além do exagero, percebe-se um tom irônico na narrativa.
c)
Em que outras passagens esse mesmo recurso é
utilizado? Com que intenção ele é empregado?
“O âncora do telejornal [...] exala a Verdade Absoluta por todos os
poros.”
“... com a dicção fanha, pitada de charme a mais na construção de
sua carreira.”
A ironia é um recurso utilizado quando se pretende transmitir
exatamente o oposto do que se afirma. É uma maneira de criticar uma determinada
situação elogiando o que se quer criticar.
10 – Que palavras revelam,
no 11° parágrafo, o apelo para a sensualidade da mocinha frágil?
“Escassamente
vestida.”
11 – Em sua opinião, por que
Freud explica o clip?
O clip “esbanja seios e fumaça”, criando
um clima de sonho erótico. Segundo Freud, psiquiatra austríaco, o que move o
homem é a libido ou o instinto sexual.
12 – No 13° parágrafo, o que
se observa na caracterização do cachorro?
É empregada uma expressão composta de
várias palavras para representar um velho tipo do cinema americano
(fora-da-lei-do-velho-oeste).
13 – O que ocorre com as
cenas da tevê a partir do 14° parágrafo? Por que isso acontece?
Tornam-se mais curtas porque o telespectador muda de canal com mais
rapidez.
14 – Fantasia e realidade
vão bombardeando o telespectador até suas reações físicas desaparecerem. Quando
isso ocorre, ele consegue distinguir realidade de ficção?
Não. Ele perde a noção da realidade. Não
recebe mais nenhum estímulo devido à sobrecarga de imagens recebidas.
15 – Observe a frase:
“A ideia
de poder exercido sobre as imagens esvaiu-se. Todas as ideias se esvaíram”.
Qual o significado dela?
Ele achava que controlava a máquina, mas
ela é que o controla agora. Ele está totalmente alienado.
16 – Em “O controle remoto zapeia impune”, o verbo criado,
que corresponde à onomatopeia, é revelador. Você sabe por quê? Observe o
sujeito da oração. Comente o uso do adjetivo impune.
O controle passa
a ser agora o controlador. Ele adquire vida, zapeia, muda sozinho, impune,
sem ninguém para controla-lo ou puni-lo.
17 – Que passagem do final
do texto nos permite afirmar que ocorreu uma personificação da máquina e uma
coisificação do ser humano?
O controle emite um som, um chiado
eletrônico que poderia ser um risinho de vitória ou deboche. Enquanto isso, o
telespectador está inerte.
18 – Por que a última
palavra do texto é ZAP?
A última palavra
é do controle. Provavelmente, ele desliga o aparelho.
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