segunda-feira, 2 de outubro de 2017

CRÔNICA: ONZE CONTOS DE RÉIS- (MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS) - COM GABARITO


ONZE CONTOS DE RÉIS

...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.
        --- Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto: -- Gatuno, sim senhor; não é outra coisa um filho que me faz isto...
        Sacou da algibeira os meus títulos de dívida, já resgatados por ele, e sacudiu-nos na cara. – Vês, peralta? É assim que um moço deve zelar o nome dos seus? Pensas que eu e meus avós ganhamos o dinheiro em casas de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez ou tomas juízo, ou ficas sem coisa nenhuma.
        Estava furioso, mas de um furor temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e nada opus à ordem da viagem, como de outras vezes fizera; ruminava a ideia de levar Marcela comigo. Fui ter com ela; expus-lhe a crise e fiz-lhe a proposta. Marcela ouviu-me com os olhos no ar, sem responder logo; como insistisse, disse-me que ficava, que não podia ir para a Europa. [...]
        Marcela franziu a testa, cantarolou uma seguidilha, entre dentes; depois queixou-se do calor, e mandou vir um copo de aluá. Trouxe-lhe a mucama, numa salva de prata, que fazia parte dos meus onze contos. Marcela ofereceu-me polidamente o refresco; minha resposta foi dar com a mão no copo e a salva; entornou-se lhe o líquido no regaço, a preta deu um grito, eu bradei-lhe que se fosse embora. Ficando a sós, derramei todo o desespero de meu coração disse-lhe que ela era um monstro, que jamais me tivera amor, que me deixara descer a tudo sem ter ao menos a desculpa da sinceridade; chamei-lhe muitos nomes feios, fazendo muitos gestos descompostos. Marcela deixara-se estar sentada, a estalar as unhas nos dentes, fria como um pedaço de mármore. Tive ímpetos de a estrangular, de a humilhar ao menos, subjugando-a a meus pés. Ia talvez fazê-lo; mas a ação trocou-se noutra; fui eu que me atirei aos pés dela, contrito e súplice; beijei-lhes, recordei aqueles meses da nossa felicidade solitária, repeti-lhe os nomes queridos de outro tempo, sentado no chão com a cabeça entre os joelhos dela, apertando-lhe muito as mãos; ofegante, desvairado, pedi-lhe com lágrimas que me não desamparasse... Marcela esteve alguns instantes a olhar para mim, calados ambos, até que brandamente me desviou e, com um ar enfastiado:
        --- Não me aborreça, disse.
        Levantou-se, sacudiu o vestido, ainda molhado, e caminhou para a alcova. – Não! Bradei eu; não hás de entrar... não quero... Ia a lançar lhe as mãos: era tarde; ela entrara e fechara-se.
        Saí desatinado; gastei duas mortais horas em vaguear pelos bairros mais excêntricos e desertos, onde fosse difícil dar comigo. Ia mastigando o meu desespero, com uma espécie de gula mórbida; evocava os dias, as horas, os instantes de delírio, e ora me comprazia em crer que eles eram eternos, que tudo aquilo era um pesadelo, ora, enganando-me a mim mesmo, tentava rejeitá-los de mim, como um fardo inútil. Então resolvia embarcar imediatamente para cortar a minha vida em duas metades, e deleitava-me com a ideia de que Marcela, sabendo da partida, ficaria ralada de saudades e remorsos.
        [...]
        Enfim, tive uma ideia salvadora... [...] Era nada menos que fasciná-la, fasciná-la muito, deslumbrá-la, arrastá-la; lembrou-me pedir-lhe por um meio mais concreto de que a súplica. Não medi as consequências: recorri a um derradeiro empréstimo; fui à rua dos Ourives, comprei a melhor joia da cidade, três diamantes grandes, encastoados num pente de marfim; corri à casa de Marcela.
        Marcela estava reclinada numa rede, o gesto mole e cansado, uma das pernas pendentes, a verse-lhe o pezinho calçado de meia de seda, os cabelos soltos, derramados, o olhar quieto e sonolento.
        --- Vem comigo, disse eu, arranjei recursos... temos muito dinheiro, terás tudo o que quiseres... Olha, toma.
        E mostrei-lhe o pente com os diamantes. Marcela teve um leve sobressalto, ergueu metade do corpo, e, apoiada num cotovelo, olhou para o pente durante alguns instantes curtos; depois retirou os olhos; tinha-se dominado. Então, eu lancei lhes as mãos aos cabelos, coligi-os, enlaceios à pressa, improvisei um toucado, sem nenhum alinho, e rematei-o com o pente de diamantes; recuei, tornei a aproximar-me, corrigi lhes as madeixas, abaixei-as de um lado, busquei alguma simetria naquela desordem, tudo com uma minuciosidade e um carinho de mãe.
        --- Pronto, disse eu.
        --- Doido! foi a sua primeira resposta.
        A segunda foi puxar-me para si, e pagar-me o sacrifício com um beijo, o mais ardente de todos. Depois tirou o pente, admirou muito a matéria e o lavor, olhando a espaços para mim, e abanando a cabeça, com um ar de repreensão:
        --- Ora você! dizia.
        --- Vens comigo?
        Marcela refletiu um instante. Não gostei da expressão com que passeava os olhos de mim para a parede, e da parede para a joia; mas toda a má impressão se desvaneceu, quando ela me respondeu resolutamente:
        --- Vou. Quando embarcas?
        --- Daqui a dois ou três dias.
        --- Vou.
        Agradeci-lhe de joelhos. Tinha achado a minha Marcela dos primeiros dias, e disse-lhe; ela sorriu, e foi guardar a joia, enquanto eu descia a escada.

                   Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas.
                                                    São Paulo: Moderna, 1984. p. 24-5.

1 – Observe a frase:
“...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos”.
a)   Qual o real significado dessa frase? O que lhe parece a maneira usada pelo narrador para indicar a duração de seu namoro?
O narrador “mede” a paixão de Marcela pelo tempo que durou a relação e pelo dinheiro que lhe custou tal capricho.

b)   A expressão que normalmente se usa é “nada mais, nada menos que”. Por que o narrador omitiu a primeira parte da expressão?
Porque ele parece reforçar a ideia de que Marcela não deixaria por menos os carinhos que lhe deu em troca dos presentes.

c)   Você diria que o narrador está contando algo que aconteceu já há algum tempo ou ele ainda está vivenciando a situação narrada? Justifique sua resposta.
O que ele narra aconteceu há tempos. Segundo o próprio narrador, era um “capricho juvenil”. Ao mesmo tempo que narra, a personagem avalia o que aconteceu.

2 – Em “não é outra coisa um filho que me faz isto...”, que fato a palavra isto está representando?
      O fato de ele ter-se empenhado em dívidas e assinado alguns títulos.

3 – A repreensão que o narrador sofre surte efeito? Justifique sua resposta.
      Não. Logo em seguida, ele faz outro empréstimo. Já que teria de viajar, pensava em levar Marcela consigo. Para convencê-la, compra outra joia.

4 – Que expressões do texto revelam que a peraltice do narrador apontada pelo pai não era a primeira?
      “Desta vez”: significa que houvera outras vezes. “Pensas que eu e meus avós ganhamos o dinheiro em casas de jogo ou a vadiar pelas ruas?”: significa que o narrador fazia isso.

5 – As relações entre as personagens aparecem ser muito diferentes do que realmente são. Como é, de verdade, a relação entre:
a)   O narrador e seu pai?
O pai finge estar furioso com o filho, mas encobre seus deslizes; o filho finge que lhe obedece, mas faz o que acha melhor.

b)   O narrador e sua namorada?
O narrador finge que tudo pode para conquistar Marcela, mas está enterrado em dívidas; ela finge que não liga para os presentes, mas esse é seu único interesse. Ele, por sua vez, finge acreditar em teu amor, embora saiba que é falso. Como se percebe, as relações entre as pessoas são absolutamente hipócritas.

6 – Que atitudes de Marcela demonstram:
a)   Sua frieza?
Domina sua vontade de olhar a joia.

b)   Sua falsidade?
Dá um beijo ardente no narrador.

7 – As três personagens apresentam profundas contradições. Quais?
      Pai: quer dar boa educação ao filho, mas não soube impor-lhe limites.
      Filho: sabe que Marcela é interesseira, mas não abre mão de sua “paixão”, mesmo não sendo correspondido.
      Marcela: não ama o rapaz, mas alimenta suas esperanças porque quer continuar tendo suas vantagens.

8 – Com a joia e a promessa de viagem, o narrador diz ter reencontrado a Marcela dos primeiros dias. Como estaria sendo, então, a Marcela dos últimos dias?
      Provavelmente não era mais carinhosa, estava mudada, enfastiada.

9 – Embora tenha sido publicado em 1881, o livro do qual foi tirado o trecho que você leu se mantém atual em muitos pontos. Você saberia dizer em quê?
      Resposta pessoal do aluno. Considerar as relações entre pai abastado e filho mimado.

10 – Neste trecho, explique por que o autor escolheu o verbo em destaque: “Ficando a sós, derramei todo o desespero de meu coração”.
      É uma metáfora. Observar que, antes de dizer isso, o narrador contara sua explosão, ao dar com a mão no copo de refresco que a mucama lhe trazia. Daí a escolha irônica do derramei.


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