SAUDADE
DO TELEVIZINHO
Não é que a TV tenha ocupado todos os
cantos da vida.
É mais: ela tomou o lugar da vida.
[...]
A era do televizinho coincidiu com os
anos de inocência da televisão. Basicamente, tal inocência consistia na crença
de que televisão era uma coisa, e vida era outra. O televizinho, assim como a
amável família que o acolhia, olhava para aquela caixinha luminosa com
deslumbramento, sim, mas também com suave distanciamento. Apreciavam seus
truques como se apreciam os truques do mágico no circo, mas depois iam cuidar
de suas existências. Reinava a ilusória impressão de que a TV ocupava um lugar
determinado no mundo, um pedaço pequeno e restrito, de onde não tinha como
extrapolar. Admitir o contrário seria convir com a hipótese absurda de o
caleidoscópio proporcionar algo mais, na existência de uma pessoa, do que um
divertimento ligeiro para os olhos. Ou de o gramofone ir além d produzir alguns
breves instantes agradáveis – ou desagradáveis – para o ouvido.
Aquela inocente caixa de luz revelou-se
muito mais que uma caixa de luz, porém. Revelou-se uma caixa de surpresas,
caixa de Pandora, caixa-preta – escolha o leitor a caixa de sua preferência.
Cedo transbordou para muito além de seu suposto lugar certo e determinado. Hoje
se conhece todo o seu alcance. Não é que a televisão tenha ocupado todos os
cantos da vida. Essa também não deixa de ser uma visão ingênua. É outra coisa:
a televisão tomou o lugar da vida. Substituiu-a. Engoliu-a e vomitou-se a si
mesma no lugar.
No doce tempo do televizinho, ocorriam
fenômenos que hoje parecem nada menos que prodigiosos. Enquanto a televisão
tinha sua sede na sala do vizinho, o Carnaval era na rua e o futebol era no
campo. Sim, meninos: o Carnaval era na rua e o futebol no campo! Aos poucos,
tudo foi entrando TV adentro, como se aquela caixa tivesse um imã, ou como se
fosse um buraco negro a atrair a matéria cósmica à sua volta. Hoje, tanto o
Carnaval como o futebol são na TV. Tire-se deles a TV, e será como cortar lhes
o ar. Não sobreviverão. E a eleição? No tempo do televizinho, a televisão
ficava lá na sala, quieta, enquanto o comício era na praça. Eleição agora
também foi sugada pelo campo gravitacional da televisão. Neste ano haverá Copa
do Mundo e eleição. Se por alguma espécie de desgraça a televisão sumir do
mundo, não haverá nem uma nem outra. Ou melhor, pode até haver, mas serão
coisas de naturezas tão diversas das que nos habituamos que não merecerão os
mesmos nomes.
Dito o que, chegamos aos programas de
TV como o chamado de Big Brother. O Big Brother original, do romance 1984, de
George Orwell, espionava os cidadãos de modo tão sufocante que a vida ficava
irrespirável. O Big Brother de hoje é o contrário. Sem a presença dele, sem seu olho benfazejo, aí sim
é que a vida some. Estou na TV, logo existo. A vida é representar para a
câmara, e representar para a câmara é a vida. Estar na TV, mesmo que seja a
troco de nada, sem ter nada a dizer, nem habilidade a demonstrar, eis o
programa supremo da existência. O televizinho ficaria intrigado. Hesitaria em
voltar à sala onde reinava aquela caixa.
Roberto Pompeu
de Toledo. Veja, ano 35. n. 8,
27
fev. 2002. p. 122.
1 – O título desse texto é
“Saudade do televizinho”. Na verdade, do que é que o autor tem saudade?
Na verdade, o autor tem saudades do tempo
inocente da televisão, em que se distinguia a vida real da vida virtual.
2 – O autor parece conversar
com o leitor. Como ele cria essa ilusão? Qual a importância disso para o tipo
de texto em questão?
Ele usa a
primeira pessoa do plural, como se incluísse o leitor em suas reflexões; relembra
fatos que provavelmente o leitor viveu, recriando uma experiência coletiva; em
alguns momentos, dirige-se diretamente ao leitor (“Escolha o leitor a caixa de
sua preferência”; “Sim, meninos: o Carnaval era na rua e o futebol no campo!”).
Conquistar a cumplicidade do leitor é importante para convencê-lo da ideia que
ele está desenvolvendo em seu ensaio.
3 – Escolha, para cada um
dos quatro parágrafos que você leu, uma frase, uma expressão ou uma palavra que
sejam as mais significativas, ou seja, aquelas em torno das quais o parágrafo
se organizou.
Parágrafo 1: Na
era do televizinho, tevê era uma coisa e vida era outra.
Parágrafo 2: A tevê tomou o lugar da
vida.
Parágrafo 3: Carnaval, futebol e eleição
deixaram a rua, o campo e a praça; foram sugados pela tevê.
Parágrafo 4: Estou na tevê; logo, existo
(não importa para quê).
4 – Observe as metáforas
utilizadas para designar a televisão: caixa de surpresa, caixa de Pandora,
caixa-preta. Explique cada uma dessas expressões.
-
Caixa de surpresas: é imprevisível; dela pode sair qualquer coisa.
- Caixa de Pandora: guarda em seu
interior todos os males do mundo.
- Caixa-preta: guarda segredos; seu
usuário não pode conhecer seu conteúdo nem interferir em seu funcionamento.
5 – Releia este trecho:
“Não
é que a televisão tenha ocupado todos os cantos da vida. Essa também não deixa
de ser uma visão ingênua. É outra coisa: a televisão tomou o lugar da vida.
Substituiu-a. Engoliu-a e vomitou-se a si mesma no lugar”.
Como você explicaria com
suas palavras esse trecho do texto?
Resposta pessoal do aluno. Considerar a
força da linguagem para explicar que a tevê tornou-se um arremedo da vida.
6 – Segundo a autor, os
fatos deixaram de ser reais para se tornar virtuais, e as pessoas
acostumaram-se a isso de tal forma que não mais se habituariam aos
acontecimentos. Na sua opinião, por que isso ocorre?
Resposta pessoal
do aluno.
7 – “Estou na TV, logo
existo”. Para ter o pleno entendimento dessa frase, você precisa conhecer a
original, que está sendo parodiada pelo autor. Você a conhece? Sabe quem é seu
autor? Que significado adquire essa “nova versão” da frase?
A frase parodiada
é de René Descartes (1596-1650: principal obra: Discurso do método). Um dos
fundadores do moderno movimento racionalista, Descartes introduziu a dúvida
como método para chegar às verdades deduzidas pelo raciocínio. “Se duvido,
penso; se penso, existo”. Em resumo: “Penso, logo existo”. Quando, em sua
paródia, Roberto Pompeu de Toledo diz: “Estou na TV, logo existo”, ele
substitui o ato de pensar pelo ato de exibir-se. É sintomática a retirada do
ato de pensar da frase, como se a simples “existência na tevê” não implicasse a
necessidade de pensar, tanto com relação a quem lá aparece como com relação a
quem fica refém da programação imbecilizada. O “programa supremo da existência”
é lá estar, mesmo que “sem ter nada a dizer”.
8- O televizinho, pretexto
para as reflexões do autor, reaparece ao final do texto. Como é feita a retomada
desse elemento?
O autor retoma a figura do televizinho
para afirmar que, hoje, ele provavelmente não voltaria à sala do vizinho para
assistir à tevê.
9 - Você concorda com esta definição do autor: “A
vida é representar para a câmara”? Por que ele faz essa afirmação?
O autor afirma
que “a vida é representar para a câmara” influenciado pelos programas que
transmitem, ao vivo, a vida de pessoas (famosos ou não) em locais fechados, com
regras previamente combinadas.
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