sexta-feira, 6 de outubro de 2017

TEXTO: SAUDADE DO TELEVIZINHO - COM GABARITO

SAUDADE DO TELEVIZINHO

        Não é que a TV tenha ocupado todos os cantos da vida.
        É mais: ela tomou o lugar da vida.
        [...]

        A era do televizinho coincidiu com os anos de inocência da televisão. Basicamente, tal inocência consistia na crença de que televisão era uma coisa, e vida era outra. O televizinho, assim como a amável família que o acolhia, olhava para aquela caixinha luminosa com deslumbramento, sim, mas também com suave distanciamento. Apreciavam seus truques como se apreciam os truques do mágico no circo, mas depois iam cuidar de suas existências. Reinava a ilusória impressão de que a TV ocupava um lugar determinado no mundo, um pedaço pequeno e restrito, de onde não tinha como extrapolar. Admitir o contrário seria convir com a hipótese absurda de o caleidoscópio proporcionar algo mais, na existência de uma pessoa, do que um divertimento ligeiro para os olhos. Ou de o gramofone ir além d produzir alguns breves instantes agradáveis – ou desagradáveis – para o ouvido.
        Aquela inocente caixa de luz revelou-se muito mais que uma caixa de luz, porém. Revelou-se uma caixa de surpresas, caixa de Pandora, caixa-preta – escolha o leitor a caixa de sua preferência. Cedo transbordou para muito além de seu suposto lugar certo e determinado. Hoje se conhece todo o seu alcance. Não é que a televisão tenha ocupado todos os cantos da vida. Essa também não deixa de ser uma visão ingênua. É outra coisa: a televisão tomou o lugar da vida. Substituiu-a. Engoliu-a e vomitou-se a si mesma no lugar.
        No doce tempo do televizinho, ocorriam fenômenos que hoje parecem nada menos que prodigiosos. Enquanto a televisão tinha sua sede na sala do vizinho, o Carnaval era na rua e o futebol era no campo. Sim, meninos: o Carnaval era na rua e o futebol no campo! Aos poucos, tudo foi entrando TV adentro, como se aquela caixa tivesse um imã, ou como se fosse um buraco negro a atrair a matéria cósmica à sua volta. Hoje, tanto o Carnaval como o futebol são na TV. Tire-se deles a TV, e será como cortar lhes o ar. Não sobreviverão. E a eleição? No tempo do televizinho, a televisão ficava lá na sala, quieta, enquanto o comício era na praça. Eleição agora também foi sugada pelo campo gravitacional da televisão. Neste ano haverá Copa do Mundo e eleição. Se por alguma espécie de desgraça a televisão sumir do mundo, não haverá nem uma nem outra. Ou melhor, pode até haver, mas serão coisas de naturezas tão diversas das que nos habituamos que não merecerão os mesmos nomes.
        Dito o que, chegamos aos programas de TV como o chamado de Big Brother. O Big Brother original, do romance 1984, de George Orwell, espionava os cidadãos de modo tão sufocante que a vida ficava irrespirável. O Big Brother de hoje é o contrário. Sem a   presença dele, sem seu olho benfazejo, aí sim é que a vida some. Estou na TV, logo existo. A vida é representar para a câmara, e representar para a câmara é a vida. Estar na TV, mesmo que seja a troco de nada, sem ter nada a dizer, nem habilidade a demonstrar, eis o programa supremo da existência. O televizinho ficaria intrigado. Hesitaria em voltar à sala onde reinava aquela caixa.

                                 Roberto Pompeu de Toledo. Veja, ano 35. n. 8,
                                                                            27 fev. 2002. p. 122.

1 – O título desse texto é “Saudade do televizinho”. Na verdade, do que é que o autor tem saudade?
      Na verdade, o autor tem saudades do tempo inocente da televisão, em que se distinguia a vida real da vida virtual.

2 – O autor parece conversar com o leitor. Como ele cria essa ilusão? Qual a importância disso para o tipo de texto em questão?
      Ele usa a primeira pessoa do plural, como se incluísse o leitor em suas reflexões; relembra fatos que provavelmente o leitor viveu, recriando uma experiência coletiva; em alguns momentos, dirige-se diretamente ao leitor (“Escolha o leitor a caixa de sua preferência”; “Sim, meninos: o Carnaval era na rua e o futebol no campo!”). Conquistar a cumplicidade do leitor é importante para convencê-lo da ideia que ele está desenvolvendo em seu ensaio.

3 – Escolha, para cada um dos quatro parágrafos que você leu, uma frase, uma expressão ou uma palavra que sejam as mais significativas, ou seja, aquelas em torno das quais o parágrafo se organizou.
      Parágrafo 1: Na era do televizinho, tevê era uma coisa e vida era outra.
      Parágrafo 2: A tevê tomou o lugar da vida.
      Parágrafo 3: Carnaval, futebol e eleição deixaram a rua, o campo e a praça; foram sugados pela tevê.
      Parágrafo 4: Estou na tevê; logo, existo (não importa para quê).

4 – Observe as metáforas utilizadas para designar a televisão: caixa de surpresa, caixa de Pandora, caixa-preta. Explique cada uma dessas expressões.
      - Caixa de surpresas: é imprevisível; dela pode sair qualquer coisa.
      - Caixa de Pandora: guarda em seu interior todos os males do mundo.
      - Caixa-preta: guarda segredos; seu usuário não pode conhecer seu conteúdo nem interferir em seu funcionamento.
     
5 – Releia este trecho:
        “Não é que a televisão tenha ocupado todos os cantos da vida. Essa também não deixa de ser uma visão ingênua. É outra coisa: a televisão tomou o lugar da vida. Substituiu-a. Engoliu-a e vomitou-se a si mesma no lugar”.
Como você explicaria com suas palavras esse trecho do texto?
      Resposta pessoal do aluno. Considerar a força da linguagem para explicar que a tevê tornou-se um arremedo da vida.

6 – Segundo a autor, os fatos deixaram de ser reais para se tornar virtuais, e as pessoas acostumaram-se a isso de tal forma que não mais se habituariam aos acontecimentos. Na sua opinião, por que isso ocorre?
      Resposta pessoal do aluno.

7 – “Estou na TV, logo existo”. Para ter o pleno entendimento dessa frase, você precisa conhecer a original, que está sendo parodiada pelo autor. Você a conhece? Sabe quem é seu autor? Que significado adquire essa “nova versão” da frase?
      A frase parodiada é de René Descartes (1596-1650: principal obra: Discurso do método). Um dos fundadores do moderno movimento racionalista, Descartes introduziu a dúvida como método para chegar às verdades deduzidas pelo raciocínio. “Se duvido, penso; se penso, existo”. Em resumo: “Penso, logo existo”. Quando, em sua paródia, Roberto Pompeu de Toledo diz: “Estou na TV, logo existo”, ele substitui o ato de pensar pelo ato de exibir-se. É sintomática a retirada do ato de pensar da frase, como se a simples “existência na tevê” não implicasse a necessidade de pensar, tanto com relação a quem lá aparece como com relação a quem fica refém da programação imbecilizada. O “programa supremo da existência” é lá estar, mesmo que “sem ter nada a dizer”.

8- O televizinho, pretexto para as reflexões do autor, reaparece ao final do texto. Como é feita a retomada desse elemento?
      O autor retoma a figura do televizinho para afirmar que, hoje, ele provavelmente não voltaria à sala do vizinho para assistir à tevê.

9 -  Você concorda com esta definição do autor: “A vida é representar para a câmara”? Por que ele faz essa afirmação?
      O autor afirma que “a vida é representar para a câmara” influenciado pelos programas que transmitem, ao vivo, a vida de pessoas (famosos ou não) em locais fechados, com regras previamente combinadas.


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