PEÇA TEATRAL: O
REI DA VELA
Oswald de Andrade
Em São Paulo. Escritório de usura de
Abelardo & Abelardo. Um retrato da Gioconda. Caixas amontoadas. Um divã
futurista. Uma secretária Luís XV. Um castiçal de latão. Um telefone. Sinal de
alarma. Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta
enorme de ferro à direita correndo sobre rodas horizontalmente e deixando ver
no interior as grades de uma jaula. O Prontuário, peça de gavetas com os
seguintes rótulos: Malandros – Impontuais – Prontos – Protestados. Na outra
divisão: Penhoras – Liquidações – Suicídios – Tangas.
Pela ampla janela entra o barulho da
manhã na cidade e sai o das máquinas de escrever da antessala.
Abelardo I, Abelardo II e Cliente.
Abelardo I – Sentado em conversa com m
cliente. Aperta um botão, ouve-se um forte barulho de campainha. – Vamos ver
...
Abelardo II – Veste botas e um completo
de domador de feras. Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos. Monóculo. Um
revólver à cinta. – Pronto, seu Abelardo.
Abelardo I --- Traga o dossiê desse
homem.
Abelardo II --- Pois não! O seu nome?
O cliente – embaraçado; o chapéu na
mão, uma gravata de corda no pescoço magro – Manoel Pitanga de Moraes.
Abelardo II – Profissão?
Cliente – Eu era proprietário quando
vim aqui pela primeira vez. Depois fui dois anos funcionário da Estrada de
Ferro Sorocabana O empréstimo, o primeiro, creio que foi feito para o parto
Quando nasceu a menina.
Abelardo II – Já sei Está nos
Impontuais. Entrega o dossiê reclamado e sai.
Abelardo I – Examina – Veja! Isto não é
comercial, seu Pitanga! O senhor fez o primeiro empréstimo em fins de 29
Liquidou em maio de 1931. Fez outro em julho de 31, estamos em 1933. Reformou
sempre. Há dois meses suspendeu o serviço de juros... Não é comercial...
Cliente – Exatamente Procurei o senhor
a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada, com a Revolução de
30. A primeira foi para o parto. A criança já tinha dois anos. E a Revolução em
30... Foi um mau sucesso que complicou tudo...
Abelardo I – O senhor sabe, o sistema
da casa é reformar. Mas não podemos trabalhar com quem não paga juros...
Vivemos disso. O senhor cometeu a maior falta contra a segurança do nosso
negócio e o sistema da casa...
Cliente – Há dois meses somente que não
posso pagar juros.
Abelardo I – Dois meses. O senhor acha
que é pouco?
Cliente – Por isso mesmo é que eu quero
liquidar. Entrar num acordo A fim de não ser penhorado. Que diabo! O senhor tem
auxiliado tanta gente. É o amigo de todo mundo... Por que comigo não há de
fazer um acordo?
Abelardo I – Aqui não há acordo, meu
amigo. Há pagamento!
Cliente – Mas eu me acho numa situação
triste. Não posso pagar tudo, seu Abelardo. Talvez consiga um adiantamento para
liquidar...
Abelardo I – Apesar da sua
impontualidade, examinaremos as suas propostas...
Cliente – Mas eu fui pontual dois anos
e meio. Paguei enquanto pude! A minha dívida era de um conto de réis. Só de
juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos. E até
agora não me utilizei da lei contra a usura...
Abelardo I – Interrompendo-o, brutal.
Ah! meu amigo. Utilize-se dessa coisa imortal e iníqua.
Se fala de lei de usura, estamos com as negociações rotas... Saia daqui!
Cliente – Ora, seu Abelardo. O senhor
me conhece. Eu sou incapaz!
Abelardo I – Não me fale nessa
monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo. Tomo-lhe até a roupa,
ouviu? A camisa do corpo.
Cliente – Eu não vou me aproveitar, seu
Abelardo. Quero lhe pagar. Mas quero também lhe propor um acordo. A minha
situação é triste... Não tenho culpa de ter sido dispensado. Empreguei-me outra
vez. Despediram-me por economia. Não ponho minha filhinha na escola porque não
posso comprar sapatos para ela. Não hei de morrer de fome também. Às vezes não
temos o que comer em casa. Minha mulher agora caiu doente. No entanto, sou um
homem habilitado. Tenho procurado inutilmente emprego por toda a parte. Só
tenho recebido nãos enormes. Do tamanho do céu! Agora, aprendi escrituração,
estou fazendo umas escritas. Uns biscates. Hei de arribar... Quero ver se
adiantam para lhe pagar.
Abelardo I – Mas, enfim, o que é que o
senhor me propõe?
Cliente – Uma pequena redução no
capital.
Abelardo I – No capital! O senhor está
maluco! Reduzir o capital? Nunca!
Cliente – Mas eu já paguei mais do
dobro do que levei daqui...
Abelardo I – Me diga uma coisa, seu
Pitanga. Fui eu que fui procura-lo para assinar este papagaio?
Foi o meu automóvel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o
meu dinheiro? Com que direito o senhor me propõe uma redução no capital que eu
lhe emprestei?
Cliente – Desnorteado. – Eu já paguei
duas vezes...
Abelardo I – Suma-se daqui! Levanta-se.
Saia ou chamo a polícia. É só dar o sinal de crime neste aparelho. A polícia
ainda existe...
Cliente – Para defender os
capitalistas! E os seus crimes!
Abelardo I – Para defender o meu
dinheiro. Será executado hoje mesmo. (Toca a campainha). Abelardo! Dê ordens
para executá-lo! Rua! Vamos. Fuzile-o. É o sistema da casa.
Cliente – Eu sou um covarde! (Vai
chorando). O senhor abusa de um fraco, de um covarde!
Oswald de
Andrade. O rei da vela. São Paulo:
Globo, 2004. p. 37-42.
Usura: agiotagem.
Iníquo:
perverso, injusto.
Papagaio:
nota promissória.
1 – Reveja a indicação da
rubrica inicial para o cenário Em sua opinião, ao formular essas indicações,
que impressão o enunciador desejava provocar no espectador da peça?
A de um ambiente rebuscado e de mau
gosto, além de desarrumado.
2 – O que podem significar,
no contexto da peça:
a)
“As grades da jaula”.
O fato de os devedores estarem presos ao agiota.
b)
A gravata do cliente.
Feita de corda, a gravata remete à ideia de alguém que está “com a
corda no pescoço”, ou seja, cheio de dívidas.
3 – Qual seria o sentido de
prontos e tangas nos prontuários descritos na primeira rubrica?
Prontos e tangas indicam individuo sem
posses, sem dinheiro, na miséria. Se os alunos não conseguirem chegar a essas
respostas, sugira-lhes a consulta ao dicionário e a busca do sentido de acordo
com o contexto.
4 – Redija uma interpretação
da cena, cliente de que o cenário é uma jaula e que Abelardo II está vestido d
domador de feras, com os bigodes retorcidos e um revólver à cinta.
Resposta pessoal do aluno.
5 – Analise, do ponto de
vista da ética, esta fala de Abelardo I: “Me diga uma coisa, seu Pitanga. Fui
eu que fui procura-lo para assinar este papagaio? Foi o meu automóvel que parou
diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro? Com que direito
o senhor me propõe uma redução no capital que eu lhe emprestei?”
Resposta pessoal do aluno. Sendo que há
uma lógica perversa na pergunta do Abelardo I.
6 – Qual é, do ponto de
vista dos agiotas em geral, a falta mais grave que um cliente pode cometer?
Não pagar juros.
7 – Qual é a fala do cliente
que leva Abelardo I a expulsá-lo da sala?
“... E até agora não me utilizei da lei
contra a usura...”
8 – No trecho, “Vamos.
Fuzile-o”, o verbo exprime uma ordem de Abelardo I. O que ele quer dizer com
isso?
Quer que o cliente seja executado, porém
não literalmente.
9 – Como você interpreta a
última fala do cliente?
Resposta pessoal do aluno.
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