sexta-feira, 20 de outubro de 2017

PEÇA TEATRAL: O REI DA VELA - OSWALD DE ANDRADE - COM GABARITO


PEÇA TEATRAL: O REI DA VELA
                                  Oswald de Andrade

     Em São Paulo. Escritório de usura de Abelardo & Abelardo. Um retrato da Gioconda. Caixas amontoadas. Um divã futurista. Uma secretária Luís XV. Um castiçal de latão. Um telefone. Sinal de alarma. Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas horizontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula. O Prontuário, peça de gavetas com os seguintes rótulos: Malandros – Impontuais – Prontos – Protestados. Na outra divisão: Penhoras – Liquidações – Suicídios – Tangas.


      Pela ampla janela entra o barulho da manhã na cidade e sai o das máquinas de escrever da antessala.
        Abelardo I, Abelardo II e Cliente.
        Abelardo I – Sentado em conversa com m cliente. Aperta um botão, ouve-se um forte barulho de campainha. – Vamos ver ...
        Abelardo II – Veste botas e um completo de domador de feras. Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos. Monóculo. Um revólver à cinta. – Pronto, seu Abelardo.
        Abelardo I --- Traga o dossiê desse homem.
        Abelardo II --- Pois não! O seu nome?
        O cliente – embaraçado; o chapéu na mão, uma gravata de corda no pescoço magro – Manoel Pitanga de Moraes.
        Abelardo II – Profissão?
        Cliente – Eu era proprietário quando vim aqui pela primeira vez. Depois fui dois anos funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana O empréstimo, o primeiro, creio que foi feito para o parto Quando nasceu a menina.
        Abelardo II – Já sei Está nos Impontuais. Entrega o dossiê reclamado e sai.
        Abelardo I – Examina – Veja! Isto não é comercial, seu Pitanga! O senhor fez o primeiro empréstimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931. Fez outro em julho de 31, estamos em 1933. Reformou sempre. Há dois meses suspendeu o serviço de juros... Não é comercial...
        Cliente – Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada, com a Revolução de 30. A primeira foi para o parto. A criança já tinha dois anos. E a Revolução em 30... Foi um mau sucesso que complicou tudo...
        Abelardo I – O senhor sabe, o sistema da casa é reformar. Mas não podemos trabalhar com quem não paga juros... Vivemos disso. O senhor cometeu a maior falta contra a segurança do nosso negócio e o sistema da casa...
        Cliente – Há dois meses somente que não posso pagar juros.
        Abelardo I – Dois meses. O senhor acha que é pouco?
        Cliente – Por isso mesmo é que eu quero liquidar. Entrar num acordo A fim de não ser penhorado. Que diabo! O senhor tem auxiliado tanta gente. É o amigo de todo mundo... Por que comigo não há de fazer um acordo?
        Abelardo I – Aqui não há acordo, meu amigo. Há pagamento!
        Cliente – Mas eu me acho numa situação triste. Não posso pagar tudo, seu Abelardo. Talvez consiga um adiantamento para liquidar...
        Abelardo I – Apesar da sua impontualidade, examinaremos as suas propostas...
        Cliente – Mas eu fui pontual dois anos e meio. Paguei enquanto pude! A minha dívida era de um conto de réis. Só de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos. E até agora não me utilizei da lei contra a usura...
        Abelardo I – Interrompendo-o, brutal. Ah! meu amigo. Utilize-se dessa coisa imortal e iníqua. Se fala de lei de usura, estamos com as negociações rotas... Saia daqui!
        Cliente – Ora, seu Abelardo. O senhor me conhece. Eu sou incapaz!
        Abelardo I – Não me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo. Tomo-lhe até a roupa, ouviu? A camisa do corpo.
        Cliente – Eu não vou me aproveitar, seu Abelardo. Quero lhe pagar. Mas quero também lhe propor um acordo. A minha situação é triste... Não tenho culpa de ter sido dispensado. Empreguei-me outra vez. Despediram-me por economia. Não ponho minha filhinha na escola porque não posso comprar sapatos para ela. Não hei de morrer de fome também. Às vezes não temos o que comer em casa. Minha mulher agora caiu doente. No entanto, sou um homem habilitado. Tenho procurado inutilmente emprego por toda a parte. Só tenho recebido nãos enormes. Do tamanho do céu! Agora, aprendi escrituração, estou fazendo umas escritas. Uns biscates. Hei de arribar... Quero ver se adiantam para lhe pagar.
        Abelardo I – Mas, enfim, o que é que o senhor me propõe?
        Cliente – Uma pequena redução no capital.
        Abelardo I – No capital! O senhor está maluco! Reduzir o capital? Nunca!
        Cliente – Mas eu já paguei mais do dobro do que levei daqui...
        Abelardo I – Me diga uma coisa, seu Pitanga. Fui eu que fui procura-lo para assinar este papagaio? Foi o meu automóvel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro? Com que direito o senhor me propõe uma redução no capital que eu lhe emprestei?
        Cliente – Desnorteado. – Eu já paguei duas vezes...
        Abelardo I – Suma-se daqui! Levanta-se. Saia ou chamo a polícia. É só dar o sinal de crime neste aparelho. A polícia ainda existe...
        Cliente – Para defender os capitalistas! E os seus crimes!
        Abelardo I – Para defender o meu dinheiro. Será executado hoje mesmo. (Toca a campainha). Abelardo! Dê ordens para executá-lo! Rua! Vamos. Fuzile-o. É o sistema da casa.
        Cliente – Eu sou um covarde! (Vai chorando). O senhor abusa de um fraco, de um covarde!

                               Oswald de Andrade. O rei da vela. São Paulo:  
                                                                         Globo, 2004. p. 37-42.
Usura: agiotagem.
Iníquo: perverso, injusto.
Papagaio: nota promissória.

1 – Reveja a indicação da rubrica inicial para o cenário Em sua opinião, ao formular essas indicações, que impressão o enunciador desejava provocar no espectador da peça?
      A de um ambiente rebuscado e de mau gosto, além de desarrumado.

2 – O que podem significar, no contexto da peça:
a)   “As grades da jaula”.
O fato de os devedores estarem presos ao agiota.

b)   A gravata do cliente.
Feita de corda, a gravata remete à ideia de alguém que está “com a corda no pescoço”, ou seja, cheio de dívidas.

3 – Qual seria o sentido de prontos e tangas nos prontuários descritos na primeira rubrica?
      Prontos e tangas indicam individuo sem posses, sem dinheiro, na miséria. Se os alunos não conseguirem chegar a essas respostas, sugira-lhes a consulta ao dicionário e a busca do sentido de acordo com o contexto.

4 – Redija uma interpretação da cena, cliente de que o cenário é uma jaula e que Abelardo II está vestido d domador de feras, com os bigodes retorcidos e um revólver à cinta.
      Resposta pessoal do aluno.

5 – Analise, do ponto de vista da ética, esta fala de Abelardo I: “Me diga uma coisa, seu Pitanga. Fui eu que fui procura-lo para assinar este papagaio? Foi o meu automóvel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro? Com que direito o senhor me propõe uma redução no capital que eu lhe emprestei?”
      Resposta pessoal do aluno. Sendo que há uma lógica perversa na pergunta do Abelardo I.

6 – Qual é, do ponto de vista dos agiotas em geral, a falta mais grave que um cliente pode cometer?
      Não pagar juros.

7 – Qual é a fala do cliente que leva Abelardo I a expulsá-lo da sala?
      “... E até agora não me utilizei da lei contra a usura...”

8 – No trecho, “Vamos. Fuzile-o”, o verbo exprime uma ordem de Abelardo I. O que ele quer dizer com isso?
      Quer que o cliente seja executado, porém não literalmente.

9 – Como você interpreta a última fala do cliente?
      Resposta pessoal do aluno.


        

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