Texto: Onze homens cercam mulher na
madrugada
MARILENE FELINTO – DA EQUIPE
DE ARTICULISTAS
Foram ao todo onze homens para uma
única mulher, numa única madrugada. "Você pensa que essas coisas nunca vão
acontecer com você", a frase típica da mentalidade estreita das classes
favorecidas, incapazes de entender que a vida são os acidentes, os imprevistos
do meio do caminho. Não é necessário muita filosofia. Uma simples frase de
letra de música de John Lennon diz: "a vida é o que lhe acontece enquanto
você está ocupado fazendo outras coisas."
Foram onze homens ao todo numa única
madrugada. O carro pifou de repente, às duas da manhã na rua deserta, do bairro
de classe média. A mulher teve um arrepio de horror: é agora que vou ser estuprada.
O carro não respondia, acusando o defeito insondável.
São Paulo, gigantesca, ganhava
dimensões assustadoras no eco silencioso da madrugada. O carro, pedaços e
partes de lata, ferro e fluidos incompreensíveis, não respondeu.
A mulher desceu, só. Nessas horas,
dependendo da mulher que se é, não haverá um homem a seu lado. O dela estava
longe, no estrangeiro. Isso dava a exata noção de sua pior solidão. Quando
olhava ao redor procurando sinal de vida, sentiu um início de desespero.
O
carro, mudo, tinha virado um poste de concreto, um pedaço de asfalto, matéria
inanimada que antes, funcionando, não parecia – o carro antes parecia gente, um
homem grande, que a trazia de volta para casa a salvo. Dele dependia sua
segurança pessoal, sua integridade física, sua vida.
Era um desses casos de defeituosa
inserção da tecnologia no domínio global da vida: o crescimento das grandes
cidades, a escravização do homem pela máquina, a desorganização social.
Ela seria estuprada em plena rua na
madrugada.
Mas logo reagiu. Afinal, sempre tinha
sido assim. Diante dos supostos perigos noturnos ela tinha, desde menina,
desenvolvido fortalezas internas. Sua vida real, na época, era tão ruim que ela
não temia sombras ocultas no escuro.
Sempre enfrentou com desassombro os
fantasmas que povoavam a infância. Aprendeu cedo a achar aquilo tudo mentira,
pura mentira. Aprendeu cedo a achar que nada podia ser pior do que a própria
vida real e as próprias pessoas.
Os primeiros homens para quem acenou
por ajuda vinham numa motocicleta. Ela não viu que havia um terceiro a
segui-los de carro. Pararam, um deles meio bêbado. Tentaram o tranco, sem
violência.
Os três seguintes estavam juntos num
carro de luxo, que ela avistou de longe. Pararam. Um deles até ofereceu o
celular, se ela quisesse pedir ajuda.
Os outros três eram feirantes já
montando barracas para a feira do dia. Um deles, negro, fingiu-se de aleijado,
saltitando numa perna só, ao perceber que ela vinha pedir ajuda. Ela riu. Os
três empurraram o carro ao longo do trecho final.
Os últimos foram o porteiro e o
zelador, que terminaram de acomodar o carro na garagem. Sentindo-se uma rainha,
ela reprimiu o desejo de beijar na boca todos aqueles homens, gentis servos da
noite. Afinal, arre! Como dizia um poeta, ela estava farta de semideuses. Havia
enfim, gente nesse mundo até possível.
Marilene
Felinto. Folha de São Paulo, 16 de abril de 1996.
Entendendo o texto:
01 – O título tem caráter
sensacionalista. Explique.
O título, através
do vocabulário, chama a atenção do leitor de forma sensacionalista.
02 – A aventura que vai ser
narrada tem sua apresentação no 1° parágrafo: de início, a autora repete as
informações que já foram dadas no título e, em seguida, induz o leitor a
refletir sobre o acontecido.
Que adjuntos adnominais da primeira
oração contribuem para aumentar o suspense?
“Onze” e “única”.
03 – Do segundo parágrafo em
diante, o leitor passa a assistir ao filme: cena após cena. Você concorda com a
metáfora – filme – estabelecida para a crônica de Marilene Felinto? Argumente
sua resposta.
Sim. A cada
parágrafo há descrição de cenas passadas pela mulher, de forma a lembrar em
filme.
04 – Na maior parte do
texto, o leitor está convicto de que a mulher vai ser violentada.
a)Que trecho mostra que essa
convicção se desfaz?
“Tentaram o tranco, sem violência”.
b) Uma interjeição completa
o alívio do leitor. Por que o leitor se sente aliviado?
Nesse momento,
encerra-se a aflição da mulher e o problema é finalmente resolvido.
c) Diante de tanto desespero
da mulher, que fato justifica o seu riso, no penúltimo parágrafo? Explique.
Ela percebe que as suposições dela de que
seria agredida eram somente fruto de sua imaginação.
05 – Para a mulher mostrada
no texto, que importância tinha a “inserção da tecnologia”? Justifique sua
resposta.
A importância de a tecnologia poder ser
ou não responsável pelos defeitos do carro.
06 – No 3° parágrafo, é
feita uma comparação entre um homem e um carro. Que aspectos tornam possível
essa comparação. Explique.
A presença de fluídos e a possibilidade
de se ter “respostas”, qual um ser humano.
07 – Explique o trecho final
do texto: “Havia enfim, gente nesse mundo até possível.”
No mundo, há
pessoas generosas, confiáveis, que ajudam outras em momentos de dificuldades.
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