CRÔNICA: NOITES DO BOGART
Luís Fernando Veríssimo
- Ana Paula...
- Jorge Alberto!
- Escuta, eu...
- Jorge Alberto, este é o Serge, meu namorado. Serge, Jorge Alberto, meu
ex-marido.
- Prazer, Sérgio. Ana, eu...
- Serge.
- Hein?
- O nome dele não é Sergio, é Serge.
- Ah. Escuta, eu posso sentar?
- Claro!
- Você parece ótima.
- Eu estou ótima. Nunca estive tão bem.
- Ele é de Canoas.
- Ah. Desculpa, viu, Serge. Não tem nada a ver com você, mas puxa. Ana!
Nós nos separamos há, o quê? Três semanas? E você está ai, radiante.
- Você queria que eu estivesse o quê? Arrasada?
- Não, podia estar bem. Mas não assim, em público, pô.
- Ah, você acha que eu não devia sair de casa?
- Olha, depois que o meu pai morreu, minha mãe levou dois anos para
aparecer na janela. Entendeu? Não sair de casa: aparecer na janela.
- Mas Jorge Alberto, você não morreu. Eu não sou viúva. Nós só nos
separamos. A vida continua, meu querido! Serge, não repara.
- Mas aqui, Ana? Logo aqui? Lembra a última vez que nós dançamos juntos?
Foi aqui.
- Lembro muito bem. Aliás, foi na noite em que decidimos nos separar.
- Pois então. Isso não significa nada para você? Eu não quero bancar o
antigão e tal, Ana. Mas algumas coisas devem ser respeitadas. Alguns valores
ainda resistem, pombas!
- Mas vem cá: você também não está aqui?
- Sim, mas olha a minha cara. Eu pareço radiante? Vim aqui curtir fossa.
Estou sozinho. Não estou me divertindo. Homem pode sofrer em bar. Mulher não.
- Mas eu não estou sofrendo, estou ótima.
- Exatamente. E está pegando mal pra burro. Você não podia fazer isso
comigo, Aninha.
- Eu não acredito...
- Deixe eu perguntar pro Serge aqui...
- Deixa o Serge fora disso.
- Não, o Serge é homem e vai me dar razão. Serge, suponhamos o
seguinte...
Veríssimo,
Luís Fernando. O marido do doutor Pompeu.
São Paulo, Círculo do Livro, 1989. p. 81-2.
1 – A pontuação das duas primeiras frases do texto já evidencia a
diferença de estado de espírito dos interlocutores. Comente.
O aluno deve perceber o contraste entre a entoação sugerida pelas reticências
(que traduzem a decepção de Jorge Alberto) e o ponto de exclamação (que indica
a espontaneidade de Ana Paula).
2 – Uma característica da língua falada coloquial que deve ser evitada
na língua escrita é a mistura dos tratamentos tu/você. Aponte
passagens do texto em que ocorre e proponha formas apropriadas à língua escrita
culta.
A falta de uniformidade do tratamento ocorre particularmente nas formas do
imperativo afirmativo (escuta, desculpa, olha, vem e outras), da
segunda pessoa do singular, que não condizem com o pronome de tratamento você,
o qual comanda as formas da terceira pessoa do singular. Caso a questão
apresente muitas dificuldades aos alunos – que podem não ter estudado ainda a
formação do imperativo –, deve-se remetê-los às aulas de gramática.
3 – O texto consegue reproduzir várias características da língua falada.
Faça um cuidadoso levantamento dessas características.
As frases incompletas, a mistura de tratamentos, as interjeições, as
repetições, as indicações espaciais (logo aqui), a linguagem familiar (Aninha).
4 – Em alguns pontos, o texto demonstra maior apego à tradição escrita
do que às formas faladas coloquiais, dando-nos a impressão de que o que está
escrito não corresponde ao que deve ter sido efetivamente dito. Aponte e
comente alguns desses pontos.
É o caso das terminações verbais do infinitivo, que não são pronunciadas com
clareza. O mesmo ocorre com os plurais. São exemplos frases como “Ah. Escuta,
eu posso sentar?” ou “Mas algumas coisas devem ser respeitadas”.
5 – “--- Não, podia estar bem. Mas não assim, em público, pô”. Esse
fragmento deixa transparecer com nitidez o principal “problema” enfrentado por
Jorge Alberto. O que você acha desse “problema?”
O aluno deve perceber que o despeito de Jorge Alberto decorre principalmente da
publicidade que Ana Paula faz de sua alegria. Como ele mesmo admite, ela podia
estar alegre por ter se livrado dele – mas não em público...
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