Crônica: Dias perfeitos
Cecília
Meireles
Dias perfeitos são esses em que Meteorologia
afirma, vai chover e chove mesmo: não os outros, quando se anda de capa e
guarda-chuva para cá e para lá, até se perder um dos dois ou os dois juntos.
Dias perfeitos são esses em que todos
os relógios amanhecem certos: o do pulso, o da cozinha, o da igreja, o da
Glória, o da Carioca, excetuando-se apenas os das relojoarias, pois a graça,
destes, é marcarem todos horas diferentes.
Dias perfeitos são esses em que os
pneus não amanhecem vazios: as ruas acordam com dois ou três buracos
consertados, pelo menos; o ônibus não vem em cima de nós, buzinando e na
contramão; e os sinais de cruzamento não estão enguiçados e os guardas estão no
seu posto, sem conversa para as morenas nem para os colegas.
Dias perfeitos são esses em que não cai
botão nenhum da nossa roupa ou, se cair, uma pessoa amável aparecerá correndo,
gastando o coração, para no-lo oferecer como quem oferece uma rosa, deplorando
não dispor de linha e agulha para voltar a pô-lo no lugar.
Dias perfeitos são esses em que ninguém
pisa nos nossos sapatos, nem esbarra com uma cesta nas nossas meias, ou, se
isso acontecer, pede milhões de desculpas, hábito que se vai perdendo com uma
velocidade supervostokiana.
Dias perfeitos são esses em que os
guichês do Correio dispõem de gentis senhoritas e respeitáveis senhores que não
estão fazendo crochê nem jogando xadrez sozinhos e não se aborrecem com o
mísero pretendente à expedição de uma carta aérea, e até sabem quanto pesa a
missiva e qual o seu destino, no mapa, e têm troco certo na gaveta, e não
atiram os selos pelo ar como quem solta pombos da cartola. (Ah, esses são dias
perfeitíssimos! ...)
Dias
perfeitos são esses em que o motorista do carro de trás não buzina como um
doido, os da direita e da esquerda não dançam quadrilha na nossa frente, e os
velhotes não leem jornal no meio da rua, e as mocinhas que carregam à cabeça
seus tabuleiros de penteados não resolvem atravessar, com suas perninhas
trepadas em metro e meio de saltos, justamente por lugares por onde nem a bola
de futebol doméstico se arrisca.
Dias perfeitos são esses em que se vai
ao teatro, como mandam os amigos, e os atores sabem o que estão fazendo, e a
vizinha de trás não conversa do prólogo ao epílogo sobre assuntos particulares,
e a menina da frente não chupa, não mastiga e não assovia caramelos e o
cavalheiro da esquerda não pega no sono, resvalando insensivelmente para cima
de nós o seu mavioso ronco.
Dias perfeitos, esses em que voltamos
para a casa e a encontramos intacta, no mesmo lugar, e intactos estão os nossos
tristes ossos, e podemos dormir em paz, tranquilos e felizes como se
voltássemos apenas de um passeio pelos anéis de Saturno.
Cecília
Meireles. Crônicas para jovens. São Paulo: Global, 2012.
Entendendo a crônica:
01 – De que trata esta
crônica?
Fala desse nosso
desejo de que tudo esteja sempre no seu devido lugar.
02 – Após ler a crônica, percebemos
que somos seres de expectativas. Que significa?
Significa que
esperamos da vida, dos outros, das coisas, de tudo. E cada vez que algo não
corresponde a um desses nossos aguardos, emburramos, à maneira das crianças
mimadas.
03 – Que conclusão podemos
chegar para não se sentirmos frustrados, decepcionados ou desiludidos?
De que não devemos criar expectativas em
demasia. Deixemos a vida nos surpreender.
04 – Na crônica cita o tempo
de relógio, mas se alguém mais prático perguntar: “Mas de que servem esses
relógios se não marcam a hora certa”?
O poeta
responderia: Que tal se perder na hora, no tempo, de vez em quando, sem saber
qual relógio está certo, qual relógio está errado? Afinal, que é o tempo?
05 – Onde podemos encontrar
a beleza da vida?
A beleza da vida está em enxergar
perfeição nos dias, mesmo que não tenham sido nada do que esperávamos deles.
Está em terminar cada jornada, entre o amanhecer e entardecer, um pouco mais
maduros, mais conscientes, mais perfeitos, pois é a nossa própria perfeição que
devemos buscar.
06 – O que acontece quando
tornamos mais perfeitos?
Os dias também o serão, independente de
como se apresentam. Mudaremos a lente que os vê, simplesmente.
Redação
do Momento Espírita, com base em trecho da crônica Dias Perfeitos, de Cecília
Meirelles, do Livro Crônicas para Jovens, ed. Global. Em 28/09/2017.
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