quinta-feira, 25 de outubro de 2018

CRÔNICA: DIAS PERFEITOS - CECÍLIA MEIRELES - COM QUESTÕES GABARITADAS

Crônica: Dias perfeitos
                Cecília Meireles

        Dias perfeitos são esses em que Meteorologia afirma, vai chover e chove mesmo: não os outros, quando se anda de capa e guarda-chuva para cá e para lá, até se perder um dos dois ou os dois juntos.
        Dias perfeitos são esses em que todos os relógios amanhecem certos: o do pulso, o da cozinha, o da igreja, o da Glória, o da Carioca, excetuando-se apenas os das relojoarias, pois a graça, destes, é marcarem todos horas diferentes.
        Dias perfeitos são esses em que os pneus não amanhecem vazios: as ruas acordam com dois ou três buracos consertados, pelo menos; o ônibus não vem em cima de nós, buzinando e na contramão; e os sinais de cruzamento não estão enguiçados e os guardas estão no seu posto, sem conversa para as morenas nem para os colegas.
        Dias perfeitos são esses em que não cai botão nenhum da nossa roupa ou, se cair, uma pessoa amável aparecerá correndo, gastando o coração, para no-lo oferecer como quem oferece uma rosa, deplorando não dispor de linha e agulha para voltar a pô-lo no lugar.
        Dias perfeitos são esses em que ninguém pisa nos nossos sapatos, nem esbarra com uma cesta nas nossas meias, ou, se isso acontecer, pede milhões de desculpas, hábito que se vai perdendo com uma velocidade supervostokiana.
        Dias perfeitos são esses em que os guichês do Correio dispõem de gentis senhoritas e respeitáveis senhores que não estão fazendo crochê nem jogando xadrez sozinhos e não se aborrecem com o mísero pretendente à expedição de uma carta aérea, e até sabem quanto pesa a missiva e qual o seu destino, no mapa, e têm troco certo na gaveta, e não atiram os selos pelo ar como quem solta pombos da cartola. (Ah, esses são dias perfeitíssimos! ...)
        Dias perfeitos são esses em que o motorista do carro de trás não buzina como um doido, os da direita e da esquerda não dançam quadrilha na nossa frente, e os velhotes não leem jornal no meio da rua, e as mocinhas que carregam à cabeça seus tabuleiros de penteados não resolvem atravessar, com suas perninhas trepadas em metro e meio de saltos, justamente por lugares por onde nem a bola de futebol doméstico se arrisca.
        Dias perfeitos são esses em que se vai ao teatro, como mandam os amigos, e os atores sabem o que estão fazendo, e a vizinha de trás não conversa do prólogo ao epílogo sobre assuntos particulares, e a menina da frente não chupa, não mastiga e não assovia caramelos e o cavalheiro da esquerda não pega no sono, resvalando insensivelmente para cima de nós o seu mavioso ronco.
        Dias perfeitos, esses em que voltamos para a casa e a encontramos intacta, no mesmo lugar, e intactos estão os nossos tristes ossos, e podemos dormir em paz, tranquilos e felizes como se voltássemos apenas de um passeio pelos anéis de Saturno.

Cecília Meireles. Crônicas para jovens. São Paulo: Global, 2012.
Entendendo a crônica:

01 – De que trata esta crônica?
      Fala desse nosso desejo de que tudo esteja sempre no seu devido lugar.

02 – Após ler a crônica, percebemos que somos seres de expectativas. Que significa?
      Significa que esperamos da vida, dos outros, das coisas, de tudo. E cada vez que algo não corresponde a um desses nossos aguardos, emburramos, à maneira das crianças mimadas.

03 – Que conclusão podemos chegar para não se sentirmos frustrados, decepcionados ou desiludidos?
      De que não devemos criar expectativas em demasia. Deixemos a vida nos surpreender.

04 – Na crônica cita o tempo de relógio, mas se alguém mais prático perguntar: “Mas de que servem esses relógios se não marcam a hora certa”?
      O poeta responderia: Que tal se perder na hora, no tempo, de vez em quando, sem saber qual relógio está certo, qual relógio está errado? Afinal, que é o tempo?

05 – Onde podemos encontrar a beleza da vida?
      A beleza da vida está em enxergar perfeição nos dias, mesmo que não tenham sido nada do que esperávamos deles. Está em terminar cada jornada, entre o amanhecer e entardecer, um pouco mais maduros, mais conscientes, mais perfeitos, pois é a nossa própria perfeição que devemos buscar.

06 – O que acontece quando tornamos mais perfeitos?
      Os dias também o serão, independente de como se apresentam. Mudaremos a lente que os vê, simplesmente.

        Redação do Momento Espírita, com base em trecho da crônica Dias Perfeitos, de Cecília Meirelles, do Livro Crônicas para Jovens, ed. Global. Em 28/09/2017.


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