ENTREVISTA: O acompanhamento espiritual
é essencial no final da vida
Vera
Brandão – Um convite a reflexão
Os profissionais estão preparados para
a escuta de queixas e relatos de males e dores, medos, dos cuidados físicos e
rotinas cotidianas? Qual é o espaço para a escuta das necessidades mais íntimas
e subjetivas?
Entrevista a Marie Le Marois
O acompanhamento espiritual é essencial no
final da vida é o título de uma entrevista concedida por Éric Dudoit a
Marie Le Marois, publicada na revista Psychologies. Os temas
“cuidados paliativos” e “espiritualidade” têm sido abordados com maior
frequência nos últimos anos, tanto na literatura acadêmica como na imprensa
aberta.
Sem dúvida, o envelhecimento
populacional torna estes temas – espiritualidade, cuidados paliativos e
finitude – de interesse tanto para os profissionais da área gerontológica, como
para o público em geral. No entanto, devemos refletir sobre o assunto ao longo
da vida, pois a qualquer idade podemos nos confrontar com eles. Geralmente,
deixamos a vida ‘nos levar’, sem muita reflexão…Este é o desafio que nos propõe
esta entrevista.
Temos nos debruçado sobre os temas e
publicado alguns artigos e capítulos de livros sobre esses que são, ainda,
assuntos ‘tabu’, apesar de serem hoje mais abordados. Como docente, nas muitas
experiências com profissionais da gerontologia e com idosos, noto ainda um
‘mal-estar’ ao abordá-los, e já ouvi de algumas pessoas que eles são
‘mórbidos’, e que não querem falar sobre isso. Quando o tema é apenas
espiritualidade existe maior adesão, mas quando o associamos com cuidados
paliativos e finitude notamos um forte movimento de recusa.
Na área da saúde muitos estudos e
pesquisas indicam a religiosidade e/ou espiritualidade como benéficas na
recuperação de pacientes acometidos por diferentes enfermidades e procedimentos
cirúrgicos, assim como na manutenção da autoestima e qualidade de vida no
envelhecimento. Indicam ainda que a busca de sentido na trajetória, baseada em
alguma crença, parece fortalecer os indivíduos de forma plena, dos mais ativos
aos mais fragilizados, incluindo aqueles em cuidados paliativos.
Consideramos que a busca espiritual –
baseada em uma filosofia pessoal – envolve todas as manifestações de vida, e
que pode ser desvinculada do sentido religioso, mas deve passar,
obrigatoriamente, pela escuta sensível e solidária dos que buscam atendimento e
cuidados, em diferentes estágios de sofrimento.
Os profissionais estão preparados para
essa escuta – que vai muito além das competências profissionais e acadêmicas –
de queixas e relatos de males e dores, medos, dos cuidados físicos e rotinas
cotidianas? Qual é o espaço para a escuta das necessidades mais íntimas e subjetivas?
Na perspectiva da educação continuada
consideramos a mídia aberta e de livre acesso essencial na divulgação de temas
ainda ‘incômodos’ para muitos, mas parte da realidade cotidiana. Acreditamos
que só apresentado esses assuntos fundamentais à vida humana de forma ampla
poderemos alcançar clareza a respeito da essência do viver e longe viver.
Assim, iniciamos a seguir esta tradução
livre sobre esses, ainda, polêmicos temas, apresentando o Dr. Éric Dudoit –
doutor em psicologia clínica e psicopatologia, psicanalista, teólogo, próximo
às ideias de Jung e da física quântica:
Será a passagem para a quinta década de
vida ou a experiência que confere a ele a liberdade para encarar as críticas e
zombarias? Depois de vinte anos atuando no mesmo serviço, o Dr. Éric Dudoit,
responsável pela unidade de psico-oncologia em cuidados paliativos no hospital
Timone em Marselha, não tem mais medo de se expor, exprimindo publicamente,
pela primeira vez, suas convicções profundas: não existe tensão entre
psicologia e espiritualidade – os dois se potencializam.
Em seu último livro La porte à
franchir, témoignages d´un passeur d´ames, este homem tranquilo e caloroso
nos apresenta sua experiência de cuidados com pacientes, frequentemente em estado
terminal.
Há dez anos ele criou, juntamente com
os médicos, a unidade de cuidados e pesquisas sobre o espírito e sua vocação é
oferecer aos pacientes hospitalizados ou em cuidado ambulatorial, um suporte
para a totalidade do ser – corpo e espírito.
Segundo as necessidades pessoais, mas
mantendo os tratamentos psico clínicos tradicionais são oferecidos tratamentos
complementares como a sofrologia, massagens e a hipnose ericksoniana com o
auxílio de duas enfermeiras, como também a meditação de consciência plena – em
grupo ou individualmente – e um espaço de discussões espirituais com o próprio
Dr. Eric Dudoit.
Psychologies – Por que o senhor criou
esta unidade?
Éric
Dudoit – Depois de dez anos de prática em cuidados paliativos,
constatava diariamente que os pacientes exprimiam uma necessidade imperiosa de
sentido e profundidade, e que as questões que eles se colocavam, especialmente
sobre a morte, eram fontes de angústia. O sentido é fundamental para o ser
humano, é o que o mantém vivo, e, sem isto, se torna infeliz e perdido.
Com Geneviève Botti, médica do serviço
e aluna, durante três anos, do monge budista Sogyal Rinpochés, e Éliane
Lheureux, sofróloga e terapeuta ayurvédica, tivemos a ideia de formar grupos de
meditação e de leituras de trechos de textos espirituais. O chefe do serviço e
a direção nos deram autorização para criar esta unidade. Hoje somos quatro
profissionais: duas enfermeiras e dois psicólogos que trabalham em estreita
colaboração com os médicos, com profundo respeito mútuo. Fazemos intervenções
em diferentes serviços – gastrologia, dermatologia, neurologia, cirurgia, e às
vezes fazemos o acompanhamento temporário de pacientes que estão em tratamento
em outro hospital.
Psychologies – A quem se dirigem estes
cuidados?
E.D. –
Aos pacientes em cuidados paliativos, ou seja, os que sofrem de uma doença
incurável. Eles podem estar no final da vida, ou ainda terem alguns anos pela
frente. Para estes últimos, o problema é de reencontrar um sentido à sua ‘nova’
vida, com um corpo amputado, sem cabelos ou sobrancelhas. Os cuidados se
dirigem igualmente aos seus próximos, para ajudá-los a tomar um novo folego,
encontrar a postura adequada frente à doença, mas também a eles mesmos. A
equipe hospitalar pode igualmente se beneficiar: quando o cuidador vai bem o
paciente fica melhor.
Psychologies – Qual o perfil dos
pacientes que buscam sua ajuda?
E.D. São
pessoas de todas as idades e mais mulheres do que homens. É sempre mais difícil
para eles dar atenção às próprias emoções. Quanto às crenças religiosas temos
todas as expressões: do crente de fé inabalável ao agnóstico. Quando as pessoas
se dizem praticantes eu sempre proponho que procure o representante de sua
crença, pois, normalmente, todas as religiões estão representadas no hospital.
No Timone oficiam um rabino, um pastor, um padre e um capelão muçulmano. Aos
budistas eu sugiro um médico, da mesma crença, que trabalha em outro hospital.
Psychologies – O que o senhor entende
por espiritualidade?
E.D.
Este termo designa a busca de sentido e, consequentemente, todas as questões
existenciais que podemos nos colocar: o que me constitui como ser humano? Qual
o sentido da minha vida? Neste acompanhamento que realizo com os pacientes,
individualmente, me apoio nos grandes mestres espirituais e outros pensadores
que participam da nossa iluminação, para além dos dogmas e preceitos
confessionais. Eu me apoio em São Francisco de Assis, no monge budista Tich
Nhat Hanh, bem como na historiadora e filósofa Marie-Madeleine Davy, Etty
Hillesum ou ainda no poeta místico persa Rûmi. Curar a alma é tão importante
quanto a curar a doença. É inútil falar de metafísica se o paciente não nos
convida a esta reflexão e, mesmo que esteja aberto a isto, não se trata de
abordar ponto por ponto um argumento lógico para que ele encontre conforto.
Nossa postura é ‘ser’, e deixar com que desembaracem os fios do seu pensamento
e de seus afetos, seguindo o caminho de uma verdade – a própria.
Psychologies – Qual o impacto da
meditação sobre seus pacientes?
E.D.
Estar em silêncio e deixar os pensamentos seguirem livremente seu curso permite
estar no aqui e agora. Foi no contato com pacientes em estado de morte
iminente que aprendi a qualidade do instante presente, o estado de paz que
busca e os ganhos para o aparelho psíquico. A meditação contribui na abertura
do campo da consciência do indivíduo para confiar, e de parar de querer
controlar tudo mentalmente. Deixar de acreditar que nossos pensamentos e
julgamentos permitem que estejamos no domínio dos fatos e percepções.
Observamos também que a meditação age sobre a dor, pois a maior parte do tempo,
quando ela é mais forte, se busca escapar, mas é uma perda de energia
importante, já que ela não diminui, mas o contrário. Meditar permite acolher a
dor e diminuí-la, e suportar melhor os tratamentos (quimioterapia,
radioterapia, cirurgia…). Faz também com que nos tornemos o ator desta doença,
no sentido de que ela vai nos ajudar a sentir nosso corpo e escutar o que ele
tem a dizer.
Psychologies – O senhor utiliza também
de relatos sobre a experiência de morte iminente. Por quê?
E.D. São
relatos de experiências de pessoas que tendo escapado da morte guardam
lembranças deste momento. Eles apresentam semelhanças: impressão como de ‘sair
do corpo’, convicção de estar morto, mas consciente em um corpo imaterial,
movimento em um longo túnel, luzes intensas, e encontro com parentes já
falecidos ou ‘seres de luz’. Isto nos indica que a consciência pode continuar.
Com nossos pacientes consideramos estes relatos como mitos contemporâneos, nem
verdadeiros nem falsos, e discutimos sobre diferentes exemplos como o DVD Faux
Départ, de Sonia Barkallah, ou os trabalhos do Dr. Raymond Moody.
Constatamos
que essas discussões davam esperanças aos pacientes e permitiam também diminuir
a síndrome de ansiedade e a depressão, além de fortalecer os laços entre eles e
as famílias, abrindo espaço para falar da morte, e da sua morte. Mas também de
viver serenamente o momento do último suspiro, fundamental para o que se segue.
Estou convencido que a morte do corpo
não aquela da alma, e que a consciência não é secretada pelo cérebro, mas
deslocada. Acredito que temos muitas vidas e isto forma a ‘vida’ da nossa
natureza humana. Por isso esta ‘passagem’ é essencial na minha perspectiva:
assim como para o nascimento é importante fazer essa passagem nas melhores
condições e paz possíveis.
Minha intenção não é lutar ou derrotar
a morte, mas vê-la como um fato – tenho que morrer – e não pelo prisma das
representações mentais que temos sobre ela: o abismo, o vazio, o nada, a
separação…
E se esta passagem não for tão difícil?
A vida não para nunca, o que muda é a
forma como ela se apresenta.
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