sábado, 20 de outubro de 2018

ENTREVISTA: O ACOMPANHAMENTO ESPIRITUAL É ESSENCIAL NO FINAL DA VIDA - VERA BRANDÃO - UM CONVITE A REFLEXÃO


ENTREVISTA: O acompanhamento espiritual é essencial no final da vida
   
                     Vera Brandão – Um convite a reflexão


        Os profissionais estão preparados para a escuta de queixas e relatos de males e dores, medos, dos cuidados físicos e rotinas cotidianas? Qual é o espaço para a escuta das necessidades mais íntimas e subjetivas?

        Entrevista a Marie Le Marois

      O acompanhamento espiritual é essencial no final da vida é o título de uma entrevista concedida por Éric Dudoit a Marie Le Marois, publicada na revista Psychologies. Os temas “cuidados paliativos” e “espiritualidade” têm sido abordados com maior frequência nos últimos anos, tanto na literatura acadêmica como na imprensa aberta.


      Sem dúvida, o envelhecimento populacional torna estes temas – espiritualidade, cuidados paliativos e finitude – de interesse tanto para os profissionais da área gerontológica, como para o público em geral. No entanto, devemos refletir sobre o assunto ao longo da vida, pois a qualquer idade podemos nos confrontar com eles. Geralmente, deixamos a vida ‘nos levar’, sem muita reflexão…Este é o desafio que nos propõe esta entrevista.
        Temos nos debruçado sobre os temas e publicado alguns artigos e capítulos de livros sobre esses que são, ainda, assuntos ‘tabu’, apesar de serem hoje mais abordados. Como docente, nas muitas experiências com profissionais da gerontologia e com idosos, noto ainda um ‘mal-estar’ ao abordá-los, e já ouvi de algumas pessoas que eles são ‘mórbidos’, e que não querem falar sobre isso. Quando o tema é apenas espiritualidade existe maior adesão, mas quando o associamos com cuidados paliativos e finitude notamos um forte movimento de recusa.
        Na área da saúde muitos estudos e pesquisas indicam a religiosidade e/ou espiritualidade como benéficas na recuperação de pacientes acometidos por diferentes enfermidades e procedimentos cirúrgicos, assim como na manutenção da autoestima e qualidade de vida no envelhecimento. Indicam ainda que a busca de sentido na trajetória, baseada em alguma crença, parece fortalecer os indivíduos de forma plena, dos mais ativos aos mais fragilizados, incluindo aqueles em cuidados paliativos.
        Consideramos que a busca espiritual – baseada em uma filosofia pessoal – envolve todas as manifestações de vida, e que pode ser desvinculada do sentido religioso, mas deve passar, obrigatoriamente, pela escuta sensível e solidária dos que buscam atendimento e cuidados, em diferentes estágios de sofrimento.
        Os profissionais estão preparados para essa escuta – que vai muito além das competências profissionais e acadêmicas – de queixas e relatos de males e dores, medos, dos cuidados físicos e rotinas cotidianas? Qual é o espaço para a escuta das necessidades mais íntimas e subjetivas?
        Na perspectiva da educação continuada consideramos a mídia aberta e de livre acesso essencial na divulgação de temas ainda ‘incômodos’ para muitos, mas parte da realidade cotidiana. Acreditamos que só apresentado esses assuntos fundamentais à vida humana de forma ampla poderemos alcançar clareza a respeito da essência do viver e longe viver.


        Assim, iniciamos a seguir esta tradução livre sobre esses, ainda, polêmicos temas, apresentando o Dr. Éric Dudoit – doutor em psicologia clínica e psicopatologia, psicanalista, teólogo, próximo às ideias de Jung e da física quântica:
        Será a passagem para a quinta década de vida ou a experiência que confere a ele a liberdade para encarar as críticas e zombarias? Depois de vinte anos atuando no mesmo serviço, o Dr. Éric Dudoit, responsável pela unidade de psico-oncologia em cuidados paliativos no hospital Timone em Marselha, não tem mais medo de se expor, exprimindo publicamente, pela primeira vez, suas convicções profundas: não existe tensão entre psicologia e espiritualidade – os dois se potencializam.
        Em seu último livro La porte à franchir, témoignages d´un passeur d´ames, este homem tranquilo e caloroso nos apresenta sua experiência de cuidados com pacientes, frequentemente em estado terminal.
        Há dez anos ele criou, juntamente com os médicos, a unidade de cuidados e pesquisas sobre o espírito e sua vocação é oferecer aos pacientes hospitalizados ou em cuidado ambulatorial, um suporte para a totalidade do ser – corpo e espírito.
        Segundo as necessidades pessoais, mas mantendo os tratamentos psico clínicos tradicionais são oferecidos tratamentos complementares como a sofrologia, massagens e a hipnose ericksoniana com o auxílio de duas enfermeiras, como também a meditação de consciência plena – em grupo ou individualmente – e um espaço de discussões espirituais com o próprio Dr. Eric Dudoit.

        Psychologies – Por que o senhor criou esta unidade?

     Éric Dudoit – Depois de dez anos de prática em cuidados paliativos, constatava diariamente que os pacientes exprimiam uma necessidade imperiosa de sentido e profundidade, e que as questões que eles se colocavam, especialmente sobre a morte, eram fontes de angústia. O sentido é fundamental para o ser humano, é o que o mantém vivo, e, sem isto, se torna infeliz e perdido.
        Com Geneviève Botti, médica do serviço e aluna, durante três anos, do monge budista Sogyal Rinpochés, e Éliane Lheureux, sofróloga e terapeuta ayurvédica, tivemos a ideia de formar grupos de meditação e de leituras de trechos de textos espirituais. O chefe do serviço e a direção nos deram autorização para criar esta unidade. Hoje somos quatro profissionais: duas enfermeiras e dois psicólogos que trabalham em estreita colaboração com os médicos, com profundo respeito mútuo. Fazemos intervenções em diferentes serviços – gastrologia, dermatologia, neurologia, cirurgia, e às vezes fazemos o acompanhamento temporário de pacientes que estão em tratamento em outro hospital.

        Psychologies – A quem se dirigem estes cuidados?

        E.D. – Aos pacientes em cuidados paliativos, ou seja, os que sofrem de uma doença incurável. Eles podem estar no final da vida, ou ainda terem alguns anos pela frente. Para estes últimos, o problema é de reencontrar um sentido à sua ‘nova’ vida, com um corpo amputado, sem cabelos ou sobrancelhas. Os cuidados se dirigem igualmente aos seus próximos, para ajudá-los a tomar um novo folego, encontrar a postura adequada frente à doença, mas também a eles mesmos. A equipe hospitalar pode igualmente se beneficiar: quando o cuidador vai bem o paciente fica melhor.

        Psychologies – Qual o perfil dos pacientes que buscam sua ajuda?

        E.D. São pessoas de todas as idades e mais mulheres do que homens. É sempre mais difícil para eles dar atenção às próprias emoções. Quanto às crenças religiosas temos todas as expressões: do crente de fé inabalável ao agnóstico. Quando as pessoas se dizem praticantes eu sempre proponho que procure o representante de sua crença, pois, normalmente, todas as religiões estão representadas no hospital. No Timone oficiam um rabino, um pastor, um padre e um capelão muçulmano. Aos budistas eu sugiro um médico, da mesma crença, que trabalha em outro hospital.

        Psychologies – O que o senhor entende por espiritualidade?

        E.D. Este termo designa a busca de sentido e, consequentemente, todas as questões existenciais que podemos nos colocar: o que me constitui como ser humano? Qual o sentido da minha vida? Neste acompanhamento que realizo com os pacientes, individualmente, me apoio nos grandes mestres espirituais e outros pensadores que participam da nossa iluminação, para além dos dogmas e preceitos confessionais. Eu me apoio em São Francisco de Assis, no monge budista Tich Nhat Hanh, bem como na historiadora e filósofa Marie-Madeleine Davy, Etty Hillesum ou ainda no poeta místico persa Rûmi. Curar a alma é tão importante quanto a curar a doença. É inútil falar de metafísica se o paciente não nos convida a esta reflexão e, mesmo que esteja aberto a isto, não se trata de abordar ponto por ponto um argumento lógico para que ele encontre conforto. Nossa postura é ‘ser’, e deixar com que desembaracem os fios do seu pensamento e de seus afetos, seguindo o caminho de uma verdade – a própria.

        Psychologies – Qual o impacto da meditação sobre seus pacientes?

        E.D. Estar em silêncio e deixar os pensamentos seguirem livremente seu curso permite estar no aqui e agora. Foi no contato com pacientes em estado de morte iminente que aprendi a qualidade do instante presente, o estado de paz que busca e os ganhos para o aparelho psíquico. A meditação contribui na abertura do campo da consciência do indivíduo para confiar, e de parar de querer controlar tudo mentalmente. Deixar de acreditar que nossos pensamentos e julgamentos permitem que estejamos no domínio dos fatos e percepções. Observamos também que a meditação age sobre a dor, pois a maior parte do tempo, quando ela é mais forte, se busca escapar, mas é uma perda de energia importante, já que ela não diminui, mas o contrário. Meditar permite acolher a dor e diminuí-la, e suportar melhor os tratamentos (quimioterapia, radioterapia, cirurgia…). Faz também com que nos tornemos o ator desta doença, no sentido de que ela vai nos ajudar a sentir nosso corpo e escutar o que ele tem a dizer.

        Psychologies – O senhor utiliza também de relatos sobre a experiência de morte iminente. Por quê?

        E.D. São relatos de experiências de pessoas que tendo escapado da morte guardam lembranças deste momento. Eles apresentam semelhanças: impressão como de ‘sair do corpo’, convicção de estar morto, mas consciente em um corpo imaterial, movimento em um longo túnel, luzes intensas, e encontro com parentes já falecidos ou ‘seres de luz’. Isto nos indica que a consciência pode continuar. Com nossos pacientes consideramos estes relatos como mitos contemporâneos, nem verdadeiros nem falsos, e discutimos sobre diferentes exemplos como o DVD Faux Départ, de Sonia Barkallah, ou os trabalhos do Dr. Raymond Moody.
        Constatamos que essas discussões davam esperanças aos pacientes e permitiam também diminuir a síndrome de ansiedade e a depressão, além de fortalecer os laços entre eles e as famílias, abrindo espaço para falar da morte, e da sua morte. Mas também de viver serenamente o momento do último suspiro, fundamental para o que se segue.
        Estou convencido que a morte do corpo não aquela da alma, e que a consciência não é secretada pelo cérebro, mas deslocada. Acredito que temos muitas vidas e isto forma a ‘vida’ da nossa natureza humana. Por isso esta ‘passagem’ é essencial na minha perspectiva: assim como para o nascimento é importante fazer essa passagem nas melhores condições e paz possíveis.
        Minha intenção não é lutar ou derrotar a morte, mas vê-la como um fato – tenho que morrer – e não pelo prisma das representações mentais que temos sobre ela: o abismo, o vazio, o nada, a separação…
        E se esta passagem não for tão difícil?
        A vida não para nunca, o que muda é a forma como ela se apresenta.

                                          


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