Crônica:
O suor e a lágrima
Carlos Heitor Cony
Fazia calor no Rio, quarenta graus e
qualquer coisa, quase quarenta e um. No dia seguinte, os jornais diriam que
fora o dia mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei
ao Santos Dumont, o voo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos
aqui no Rio são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em poucos
lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira
canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o trono de um rei
desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e
estava com calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou meu sapato, cromo italiano,
fabricante ilustre, os Rossetti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte
porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia
lido e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva.
Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o
próprio suor, que era abundante.
Com
o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da
biqueira, mas a todo o instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o
suor inundaria o meu cromo italiano.
E
foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de
graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho, à custa do suor alheio.
Nunca tive sapatos tão brilhantes, tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota
menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu a
gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar no resto dos meus
dias.
Saí daquela cadeira com um baita
sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por
míseros tostões fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus
sapatos e tive vergonha daquele brilho humano salgado como lágrimas.
Carlos Heitor Cony.
O texto acima foi publicado no jornal
“Folha de São Paulo”, edição de 19/02/2001, e faz parte do livro “Figuras do
Brasil – 80 autores em 80 anos de Folha”, Publifolhas – São Paulo, 2001, pág.
319, organização de Arthur Nestrovski.
Entendendo a crônica:
01 – Por que o título do
texto é “O suor e a lágrima”?
Porque mostra o
calor que estava fazendo no Rio, que quase chegava a quarenta e um graus.
02 – O que o autor
aproveitou para fazer, no aeroporto Santos Dumont enquanto esperava pelo
horário da viajem?
Aproveitou para engraxar os sapatos.
03 – O narrador parte de um
acontecimento comum, que o faz refletir. Assinale a opção que expressa o
acontecimento que o leva a essa reflexão.
(X) O suor do
engraxate do aeroporto Santos Dumont, misturando-se à graxa.
( ) O forte calor
que fazia no Rio de Janeiro levava as pessoas a suar.
( ) O atraso da
aeronave onde o narrador viajaria.
( ) O uso, pelo
narrador, de um sapato caro, que foi reconhecido como tal pelo engraxate.
04 – No título do texto, os
termos — suor e lágrima —podem ser interpretados, respectivamente, como:
( ) o fluido
destilado pelos poros da pele; a secreção produzida pelas glândulas lacrimais.
( ) a tristeza;
o trabalho duro.
( ) o trabalho
forçado; o desejo de vingança.
(X) a exploração
do outro; a culpa, o remorso.
05 – Por que o narrador teve
vergonha do brilho dos seus sapatos?
Porque foi
conseguido através do suor de um filho do povo, para poder ganhar uns míseros
tostões para o seu pão de cada dia.
06 – A descrição, feita pelo
narrador, da cadeira em que se sentou para engraxar o sapato sugere que o
móvel:
( ) era velho e
estragado; seu estado podia indicar a pobreza do engraxate.
( ) era muito
antigo, uma relíquia de antiguidade.
( ) tinha várias
funções. Atendia a muitas necessidades.
(X) era velho, já
meio estragado, no entanto muito confortável.
07 – De acordo com o texto,
responda as perguntas abaixo:
a) Qual a diferença
entre desolado e desolante (2º parágrafo)?
* Desolado: arrasado, arruinado,
assolado.
* Desolante: desolador.
b) Ao falar de suor e pão, o
texto lembra uma frase famosa retirada da bíblia. Qual?
“Com o suor do teu rosto comerás o teu
pão, até que voltes ao solo, pois da terra foste formado; porque tu és pó e ao
pó da terra retornarás!”
08 – O narrador chama o
engraxate de “filho do povo”, o que ele quis dizer com essa expressão?
Referiu-se a uma pessoa pobre, simples e
trabalhador como tantos.
09 – Indique se as
afirmativas abaixo são verdadeiras (V) ou falsas (F).
(F) Com o troco generoso deixado para
o engraxate, o narrador quis disfarçar um preconceito que o dominava naquele
momento.
(V) A culpa que o narrador
experimenta é tão grande que extrapola aquele incidente pequeno da limpeza do
sapato.
(V) O espanto do engraxate ao receber
a gorjeta mostra que os fregueses habituais não eram tão generosos.
(V) O dinheiro estava para o
sentimento de culpa do cronista assim como os votos de felicidade estavam para
o sentimento de gratidão que o engraxate experimentava.
(F) A única coisa que chateava o narrador
era o calor escaldante.
10 – Esse texto pertence ao
gênero:
( )
conto (X)crônica. Justifique.
Porque é um
pequeno conto, de enredo indeterminado.
Obrigada
ResponderExcluirNo segundo parágrafo, o autor faz uma comparação. Qual é essa comparação e o que ela representa ?
ResponderExcluirqual é a trama da historia?
ResponderExcluirQual é a tipologia do texto?
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