terça-feira, 7 de agosto de 2018

CRÔNICA: O SUOR E A LÁGRIMA - CARLOS HEITOR CONY - COM GABARITO

Crônica: O suor e a lágrima   
               Carlos Heitor Cony
   
     Fazia calor no Rio, quarenta graus e qualquer coisa, quase quarenta e um. No dia seguinte, os jornais diriam que fora o dia mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos Dumont, o voo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em poucos lugares avulsos.
        Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolante.
       O engraxate era gordo e estava com calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou meu sapato, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rossetti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis. 
        Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio suor, que era abundante.
        Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a todo o instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano.
        E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho, à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos tão brilhantes, tão dignamente suados.
        Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar no resto dos meus dias.
        Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano salgado como lágrimas.
                                                                         Carlos Heitor Cony.
        O texto acima foi publicado no jornal “Folha de São Paulo”, edição de 19/02/2001, e faz parte do livro “Figuras do Brasil – 80 autores em 80 anos de Folha”, Publifolhas – São Paulo, 2001, pág. 319, organização de Arthur Nestrovski.

Entendendo a crônica:
01 – Por que o título do texto é “O suor e a lágrima”?
      Porque mostra o calor que estava fazendo no Rio, que quase chegava a quarenta e um graus.

02 – O que o autor aproveitou para fazer, no aeroporto Santos Dumont enquanto esperava pelo horário da viajem?
      Aproveitou para engraxar os sapatos.

03 – O narrador parte de um acontecimento comum, que o faz refletir. Assinale a opção que expressa o acontecimento que o leva a essa reflexão.
(X) O suor do engraxate do aeroporto Santos Dumont, misturando-se à graxa.
(   ) O forte calor que fazia no Rio de Janeiro levava as pessoas a suar.
(   ) O atraso da aeronave onde o narrador viajaria.
(   ) O uso, pelo narrador, de um sapato caro, que foi reconhecido como tal pelo engraxate.

04 – No título do texto, os termos — suor e lágrima —podem ser interpretados, respectivamente, como:
(   ) o fluido destilado pelos poros da pele; a secreção produzida pelas glândulas lacrimais.
(   ) a tristeza; o trabalho duro.
(   ) o trabalho forçado; o desejo de vingança.
(X) a exploração do outro; a culpa, o remorso.

05 – Por que o narrador teve vergonha do brilho dos seus sapatos?
      Porque foi conseguido através do suor de um filho do povo, para poder ganhar uns míseros tostões para o seu pão de cada dia.

06 – A descrição, feita pelo narrador, da cadeira em que se sentou para engraxar o sapato sugere que o móvel:
(   ) era velho e estragado; seu estado podia indicar a pobreza do engraxate.
(   ) era muito antigo, uma relíquia de antiguidade.
(   ) tinha várias funções. Atendia a muitas necessidades.
(X) era velho, já meio estragado, no entanto muito confortável.

07 – De acordo com o texto, responda as perguntas abaixo:
a) Qual a diferença entre desolado e desolante (2º parágrafo)?
      * Desolado: arrasado, arruinado, assolado.
      * Desolante: desolador.

b) Ao falar de suor e pão, o texto lembra uma frase famosa retirada da bíblia. Qual?
      “Com o suor do teu rosto comerás o teu pão, até que voltes ao solo, pois da terra foste formado; porque tu és pó e ao pó da terra retornarás!”

08 – O narrador chama o engraxate de “filho do povo”, o que ele quis dizer com essa expressão?
      Referiu-se a uma pessoa pobre, simples e trabalhador como tantos.

09 – Indique se as afirmativas abaixo são verdadeiras (V) ou falsas (F).
(F) Com o troco generoso deixado para o engraxate, o narrador quis disfarçar um preconceito que o dominava naquele momento.
(V) A culpa que o narrador experimenta é tão grande que extrapola aquele incidente pequeno da limpeza do sapato.
(V) O espanto do engraxate ao receber a gorjeta mostra que os fregueses habituais não eram tão generosos.
(V) O dinheiro estava para o sentimento de culpa do cronista assim como os votos de felicidade estavam para o sentimento de gratidão que o engraxate experimentava.
(F) A única coisa que chateava o narrador era o calor escaldante.

10 – Esse texto pertence ao gênero:   
(   ) conto          (X)crônica.    Justifique.
      Porque é um pequeno conto, de enredo indeterminado.




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