domingo, 1 de abril de 2018

CRÔNICA: SE EU FOSSE PINTOR... - CECÍLIA MEIRELES - COM GABARITO

CRÔNICA: SE EU FOSSE PINTOR...
                     Cecília Meireles

 Se eu fosse pintor começaria a delinear este primeiro plano de trepadeiras entrelaçadas, com pequenos jasmins e grandes campânulas roxas, por onde flutua uma borboleta cor de marfim, com um pouco de ouro nas pontas das asas.
   Mas logo depois, entre o primeiro plano e a casa fechada, há pombos de cintilante alvura, e pássaros azuis tão rápidos e certeiros que seria impossível deixar de fixa-los, para dar alegria aos olhos dos que jamais os viram ou verão.
        Mas o quintal da casa abandonada ostenta uma delicada mangueira, ainda com moles folhas cor de bronze sobre a cerrada fronde sombria, uma delicada mangueira repleta de pequenos frutos, de um verde tenro, que se destacam do verde-escuro como se estivessem ali apenas para tornar a árvore um ornamento vivo, entre os muros brancos, os pisos vermelhos, o jogo das escadas e dos telhados em redor
        E que faria eu, pintor, dos inúmeros pardais que pousam nesses muros e nesses telhados, e aí conversam, namoram-se, amam-se, e dizem adeus, cada um com seu destino, entre a floresta e os jardins, o vento e a névoa?
        Mas por trás estão as velhas casas, pequenas e tortas, pintadas de cores vivas, como desenhos infantis, com seus varais carregados de toalhas de mesa, saias floridas, panos vermelhos e amarelos, combinados harmoniosamente pela lavadeira que ali os colocou. Se eu fosse pintor, como poderia perder esse arranjo, tão simples e natural, e ao mesmo tempo de tão admirável efeito?
        Mas, depois disso, aparecem várias fachadas, que se vão sobrepondo umas às outras, dispostas entre palmeiras e arbustos vários, pela encosta do morro. Aparecem mesmo dois ou três castelos, azuis e brancos, e um deles tem até, na ponta da torre, um galo de metal verde. Eu, pintor, como deixaria de pintar tão graciosos motivos?
        Sinto, porém, que tudo isso por onde vão meus olhos, ao subirem do vale à montanha, possui uma riqueza invisível, que a distância abafa e desfaz: por detrás dessas paredes, desses muros, dentro dessas casas pobres e desses castelinhos de brinquedo, há criaturas que falam, discutem, entendem-se e não se entendem, amam, odeiam, desejam, acordam todos os dias com mil perguntas e não sei se chegam à noite com alguma resposta.
        Se eu fosse pintor, gostaria de pintar esse último plano, esse último recesso da paisagem. Mas houve jamais algum pintor que pudesse fixar esse móvel oceano, inquieto, incerto, constantemente variável que é o pensamento humano?

                                              MEIRELES, Cecília. Ilusões do mundo.
                                       Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1976. p. 17-8.

Entendendo o texto:
01 – Podemos afirmar que no texto predominam elementos descritivos? Por quê?
     O texto é predominantemente descritivo, pois veicula uma imagem verbal.

02 – A finalidade do texto é puramente descritiva? Por quê?
     A finalidade do texto não é puramente descritiva, uma vez que, depois da parte descritiva, ocorre um trecho analítico, dedicado a indagações existenciais.

03 – Releia atentamente o texto. A seguir, elabore um esquema em que fique claro o plano seguido pela autora para nos expor o quadro que descreve.
     Primeiro plano: “... trepadeiras entrelaçadas...”; depois, “o quintal da casa abandonada”; depois, as velhas casas por detrás; depois, várias fachadas na encosta do morro; finalmente, a intenção de penetrar pensamentos. Trata-se, como se vê, de um percurso que parte do primeiro plano e ganha em profundidade à medida que avança.

04 – Retire do texto a passagem em que, ao avaliar o quadro descrito, a autora explicita a ordenação que seguiu.
     “Sinto, porém, que tudo isso por onde vão meus olhos, as subirem do vale à montanha...”.

05 – Qual dos cinco sentidos foi privilegiado na observação da autora? Aponte palavras e passagens que justifiquem sua resposta.
     A visão. A passagem citada na resposta à questão anterior justifica esta resposta; outras que podem ser citadas são as que indicam cores, formas, contornos.

06 – Há coerência entre a resposta que você deu à questão 5 e o título do texto? Por quê?
     Sim, afinal o título do texto (e o texto todo) lida com a hipótese de a escritora ser um pintor.

07 – Retire do texto uma passagem em que é feita uma comparação. Como ela se relaciona com o resto do texto?
     “... Estão as velhas casas, pequenas e tortas, pintadas de cores vivas, como desenhos infantis...” Trata-se de uma comparação baseada num elemento pictórico, toda ela profundamente ligada à temática do texto.

08 – Crie comparações que sirvam para descrever:
     O aluno deve procurar obter comparações expressivas como a que se encontra no texto.
     a)   Um morro apinhado de pequenas casas;
     b)   Uma avenida de tráfego intenso;
     c)   Um rio largo e poluído;
     d)   Uma sala de aula pequena e escura.

09 – Cecília Meireles nos fala de uma limitação expressiva dos pintores: a impossibilidade de fixar o pensamento humano. Você, como produtor de textos descritivos, já pensou na melhor forma de transpor esse limite? Como seria?
     Levar ao aluno essa indagação sem a pretensão de conseguir responder a ela com exatidão. É importante que essa dúvida se instaure em quem se propõe a ser um bom elaborador de textos.


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