Crônica: Herói
da Língua
Ivan Ângelo
Vocês se lembram do meu amigo Toninho
Vernáculo. Já falei dele uma vez, contei histórias da mania que tem de corrigir
erros de português. Daí o apelido. Cansei de falar: deixa, Toninho, esta língua
é complicada mesmo, até autor consagrado escreve com dicionários e gramáticas à
mão.
– Pelo menos eles têm a humildade de
consultar os mestres antes de dar a público o que escrevem – respondia o
Toninho na sua linguagem em roupa de domingo.
Lembram-se dele? Quando encontra erros
de português no seu caminho, telefona para os responsáveis, exige correções em
nome da língua pátria e da educação pública. Coisas assim:
– A placa do seu estabelecimento é um
atentado contra a língua, induz as pessoas a achar que o errado é o certo,
espalha a confusão.
Ultimamente andava se controlando, me
telefonava muito menos do que antes, relatando atentados mais graves contra a
boa linguagem, praticados por quitandeiros, padeiros, donos de restaurantes,
prestadores de serviços em geral – e pasmem: até pela prefeitura (em nomes de
ruas), por publicitários, jornais.
Dom Quixote da gramática, Toninho não
se dava descanso. Lia coisas assim nos anúncios classificados dos jornais e
ficava indignado: baile "beneficente"; faça "seu" óculos
na ótica tal; "aluga-se" dois galpões. Ex-jornalista, aposentado,
telefonava para os encarregados dos pequenos anúncios:
– No meu tempo não era assim! Os
responsáveis eram responsáveis, cuidavam da correção dos anúncios. O povo não
sabe escrever, mas os jornais têm o dever – o dever! – de zelar pela língua!
No convívio diário, arrumava desafetos,
humilhados e ofendidos, mas também alguns – os mais humildes – agradecidos pelo
ensinamento. Quixoteava lições, fosse qual fosse o interlocutor:
– Não é "fluído" que se diz,
é fluido, com a tônica no u. "Fluído" é verbo, é particípio verbal,
não pode ser uma coisa. "Gratuíto" não existe, é gratuito que se diz,
som mais forte no u. Homem não diz "obrigada", isso é coisa de menino
criado entre mulheres; menino fala "obrigado". "Emprestar
dele" é promiscuidade brasileira aqui do Sul; o certo da língua é
emprestar a alguém, ou tomar emprestado. Não é "o" alface, é a
alface, feminino. Não existe isso, "inhoque", que coisa mais feia; o
certo é nhoque, do italiano gnocchi. Grama, medida de peso, é masculino:
"um" grama, "duzentos" gramas. Quilo se escreve com q, u,
i, não existe quilo com k e muito menos com k, y: é comida a quilo e não
"a kylo", como se lê na sua placa. Está na hora "do"
parabéns é errado; parabéns é plural, como em meus parabéns.
– Peraí, Toninho, agora você exagerou.
Hora do parabéns significa: hora de cantar o Parabéns pra Você. Resumido.
Aceitou, mas resmungando. Bom, um dia
desses, telefonaram-me de madrugada: Toninho havia sido preso como pichador de
rua. Quê, um homem de 70 anos? Havia algum engano, com certeza. Fomos para a
delegacia, uma trinca de amigos.
Engano havia e não havia. Nosso amigo
fora realmente flagrado pela polícia com spray e latinha de tinta com pincel,
atuando na fachada de uma casa comercial do bairro onde mora. Explicou-se:
estava corrigindo os erros de português dos pichadores! Começamos os esforços
para livrá-lo da multa e da denúncia, explicamos ao delegado que o ocorrido era
fruto de uma mania dele, loucura leve. Por que penalizá-lo por coisa tão pouca?
Não ia acontecer de novo. Aí o delegado explicou qual era a bronca.
O
Toninho havia pedido para ler seu depoimento, datilografado pelo escrivão, e
começou a apontar erros de português no texto do funcionário. A autoridade
tinha a pretensão de ser também autoridade em gramática. Aí melou,
"teje" preso por desacato. Com dificuldade convencemos o escrivão da
loucura mansa do nosso amigo, e ele liberou o herói da língua pátria.
Ivan Ângelo Veja
São Paulo, ano 40, n 2. 17 de janeiro de 2007. p.130
Disponível em http://vejasp.abril.com.br/materia/heroi-da-lingua/
Entendendo o texto:
01 – Qual é a mensagem que este texto nos traz?
A
perfeição na leitura e na escrita da língua pátria.
02 – Quem é o autor da crônica? Onde e quando foi
publicado?
Ivan
Ângelo Veja São Paulo, ano 40, n 2. 17 de janeiro de 2007.
p.130.
03 – A narração é em 1ª ou 3ª pessoa? Justifique com um
trecho do texto.
Está na 1ª pessoa – “Já falei dele uma vez, contei histórias
da mania que tem de corrigir erros de português.
04 – Quem é a personagem principal?
É o Toninho Vernáculo.
05 – Qual era a mania de Toninho Vernáculo?
Corrigir as palavras escritas erradas nas placas, paredes,
etc.
06 – A expressão: na
sua linguagem em roupa de domingo, significa que Toninho usava:
( ) a linguagem de qualquer
jeito.
( ) as palavras mais simples.
( ) uma linguagem pouco
culta.
(X) a melhor linguagem possível.
07 – “Quê, um
homem de 70 anos?"
Na frase acima, o uso do ponto de interrogação
produz um efeito de:
(X) espanto.
( )
dúvida.
( )
pergunta.
( ) constatação.
08 – Na frase "Por
que penalizá-lo por coisa tão pouca?" O pronome “lo” se refere a
(X) Toninho Vernáculo
( ) escrivão.
( )
amigo.
( ) autoridade.
09 – No trecho: Explicou-se:
estava corrigindo os erros de português dos pichadores! há uma certa dose
de:
(X)
humor.
( )
crítica.
( ) tristeza.
( ) inteligência.
10 – Por qual motivo o
delegado queria prender Toninho Vernáculo?
Por desacato a
autoridade.
11 – O que provoca o humor no último parágrafo?
A pessoa que tinha obrigação de escrever certo, tinha cometido
alguns erros de português.
12 – Procure no dicionário o
significado da palavra vernáculo. O apelido dado a Toninho realmente
era merecido? Justifique sua resposta.
Vernáculo:
genuíno, correto.
Sim. Porque ele vivia para corrigir as
escritas erradas.
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