quinta-feira, 9 de agosto de 2018

CONTO: O RECITAL - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

Conto: O recital
                 
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 Luís Fernando Veríssimo

        Uma boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação rigidamente formal — digamos, um recital de quarteto de cordas — e depois começar a desfiá-la, como um pulôver velho. Então vejamos. Um recital de quarteto de cordas.
        O quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta plateia. São três homens e uma mulher.  A mulher, que é jovem e bonita, toca viola. Veste um longo vestido preto. Os três homens estão de fraque.  Tomam os seus lugares atrás das partituras. Da esquerda para a direita: um violino, outro violino, a viola e o violoncelo. Deixa ver se não esqueci nenhum detalhe. O violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode se revelar importante mais tarde, no conto. Ou não.
        Os quatro afinam seus instrumentos. Depois, silêncio. Aquela expectativa nervosa que precede o início de qualquer concerto. As últimas tossidas da plateia. O primeiro violinista consulta seus pares com um olhar discreto. Estão todos prontos, o violinista coloca o instrumento sob o queixo e posiciona seu arco. Vai começar o recital. Nisso…
        Nisso, o quê? Qual a coisa mais insólita que pode acontecer num recital de um quarteto de cordas? Passar uma manada de zebus pelo palco, por trás deles? Não. Uma manada de zebus passa, parte da plateia pula das suas poltronas e procura as saídas em pânico, outra parte fica paralisada e perplexa, mas depois tudo volta ao normal. O quarteto, que manteve-se firme em seu lugar até o último zebu — são profissionais e, mesmo, aquilo não pode estar acontecendo — começa a tocar. Nenhuma explicação é pedida ou oferecida. Segue o Mozart.
        Não. É preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da confusão, uma pequena incongruência.  Algo que crie apenas um mal-estar, de início e chegue lentamente, em etapas sucessivas, ao caos. Um morcego que posa na cabeça do segundo violinista durante um pizzicato. Não. Melhor ainda. Entra no palco um homem carregando uma tuba.
        Há um murmúrio na plateia. O que é aquilo? O homem entra, com sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado do violoncelista. O primeiro violinista, retesado como um mergulhador que subitamente descobriu que não tem água na piscina, olha para a tuba entre fascinado e horrorizado. O que é aquilo? Depois de alguns instantes em que a tensão no ar é como a corda de um violino esticada ao máximo, o primeiro violinista fala:
        — Por favor…
        — O quê? — diz o homem da tuba, já na defensiva. — Vai dizer que eu não posso ficar aqui?
        — O que o senhor quer?
        — Quero tocar, ora. Podem começar que eu acompanho.
        Alguns risos na plateia. Ruídos de impaciência. Ninguém nota que o violoncelista olhou para trás e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em seguida, como se quisesse se esconder. O primeiro violinista continua:
        — Retire-se, por favor.
        — Por quê? Quero tocar também.
        O primeiro violinista olha nervosamente para a plateia. Nunca em toda a sua carreira como líder do quarteto teve que enfrentar algo parecido. Uma vez um mosquito entrou na sua narina durante uma passagem de Vivaldi.   Mas nunca uma tuba.
        — Por favor. Isto é um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar Mozart.  Não tem nenhuma parte para a tuba.
        — Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e eu faço o um-pá-pá.
        Mais risos na plateia. Expressões de escândalo. De onde surgiu aquele homem com uma tuba? Ele nem está de fraque. Segundo algumas versões veste uma camisa do Vasco. Usa chinelos de dedo. A violista sente-se mal.   O violinista ameaça chamar alguém dos bastidores para retirar o tocador de tuba a força. Mas ele aproxima o bocal do seu instrumento dos lábios e ameaça:
        — Se alguém se aproximar de mim eu toco pof!
        A perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos.
        — Está bem — diz o primeiro violinista. — Vamos conversar.  Você, obviamente, entrou no lugar errado.   Isto é um recital de cordas. Estamos nos preparando para tocar Mozart. Mozart não tem um-pá-pá.
        — Mozart não sabe o que está perdendo — diz o tocador de tuba, rindo para a plateia e tentando conquistar a sua simpatia.
        Não consegue. O ambiente é hostil. O tocador de tuba muda de tom. Torna-se ameaçador:
        — Está bem, seus elitistas. Acabou. Onde é que vocês pensam que estão, no século XVIII? Já houve 17 revoluções populares depois de Mozart. Vou confiscar estas partituras em nome do povo. Vocês todos serão interrogados. Um a um, pá-pá.
        Torna-se suplicante:
        — Por favor, só o que eu quero é tocar um pouco também. Eu sou humilde. Não pude estudar instrumento de cordas. Eu mesmo fiz esta tuba, de um Volkswagen velho. Deixa…
        Num tom sedutor, para a violista:
        — Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua imaginação lúbrica, confessa. Durante o Mozart, neste quarteto anti-séptico, é em mim que você pensa. Na minha barriga e na minha tuba fálica. Você quer ser violada por mim num alegro assai, confessa…
        Finalmente, desafiador, para o violoncelista:
        — Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o mesmo bigode que eu usava em 1968. Devolve!
        O tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros do quarteto entram na briga. A plateia agora grita e pula. É o caos! Simbolizando, talvez, a falência final de todo o sistema de valores que teve início com o iluminismo europeu ou o triunfo do instinto sobre a razão ou ainda, uma pane mental do autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga é que agora quem está com o bigode ruivo é a violista. Vendo-a assim, o tocador de tuba para de morder a perna do segundo violinista, abre os braços e grita: “Mamãe!”
        Nisso, entra no palco uma manada de zebus.
                                  Verissimo, Luís Fernando. O analista de Bagé.
                                          São Paulo, Círculo do Livro, s/d. p. 59-61.
Entendendo o conto:
01 – O narrador se coloca no texto, assumindo o papel de emissor da mensagem e mostrando ao leitor vários de seus procedimentos e dúvidas. Releia atentamente essas passagens e responda: O texto é fruto de intenções? A tessitura obtida é premeditada?
      As intervenções do narrador demonstram que ele estrutura conscientemente seu texto, buscando obter efeitos premeditados (humor, suspense, surpresa) sobre o leitor.

02 – “Isto pode se revelar importante mais tarde, no conto. Ou não. (Segundo parágrafo):
a)   Qual elemento é retomado pelo pronome isto?
O fato de o violoncelista ter um grande bigode ruivo.

b)   Comente a importância desse elemento em duas passagens posteriores: depois do primeiro diálogo entre o homem da tuba e o líder do quarteto e antes da confusão que antecede a entrada dos zebus.
O violoncelista, ao ver o homem de tuba, procura esconder-se. Isso demonstra a existência de algum tipo de contato anterior entre eles. Ao ver o bigode ruivo, o homem de tuba o reconhece e nos fornece uma informação: Ele, homem de tuba, usava esse bigode em 1968 – ano particularmente sugestivo em virtude dos fatos históricos nacionais e internacionais que então ocorreram.

03 – “Nisso...” (Terceiro parágrafo) O que prepara essa palavra? Você, leitor, o que passa a esperar que a lê? E o narrador-emissor, que faz depois de enuncia-la?
      A palavra nisso prepara o leitor para o surgimento de algum fato capaz de provocar o desencadeamento da ação. Como será visto mais tarde, essa palavra prepara a complicação do texto narrativo.

04 – O quarto parágrafo parece ser uma digressão, ou seja, um momento em que o texto foge ao tema principal. Depois da leitura do texto inteiro, essa impressão continua? Qual a importância real desse parágrafo para a estrutura do texto?
      É nesse quarto parágrafo que se introduz a manada de zebus que será fundamental no encerramento caótico da história. Mais uma vez, salta aos olhos a inter-relação entre as partes do texto. Deve-se chamar a atenção do aluno para o aparente desinteresse do narrador nessa passagem, que mascara sua real importância.

05 – O quinto parágrafo nos mostra como deve ser o desenvolvimento de um conto. Relacione o que se diz nesse parágrafo com a série de acontecimentos que o seguem.
      Nesse parágrafo, o narrador tece considerações sobre o momento narrativo da complicação. É evidente a relação entre esse parágrafo e toda a série de acontecimentos desencadeados pela chegada do tocador de tuba.

06 – Aponte, no penúltimo parágrafo, o momento em que o texto avalia aquilo que está sendo narrado. Que tipo de linguagem é então utilizado?
      De “É o caos!” até “... pane mental do autor”. A linguagem utilizada é intelectualizada, típica de críticos de arte, sociólogos, psicólogos.

07 – O desfecho do texto é surpreendente? Relacione esse desfecho com o que é dito no quarto e o quinto parágrafos. Não deixe de observar o que o narrador-emissor havia definido sobre a manada de zebus.
      O desfecho foi finamente arquitetado pelo autor, que, no quarto parágrafo, numa aparente digressão, aludiu pela primeira vez à manada de zebus, e no quinto parágrafo fingiu descarta-la. O texto é, portanto, exemplar para discutir o conceito de coesão textual, reforçando a ideia de que as partes têm de se relacionar mutuamente na textura textual.

08 – O texto nos apresenta um universo em que muitas coisas se mostram diferentes do que determina a lógica do cotidiano. Pensando nisso, comente:
a)   O valor do argumento colocado pelo homem da tuba (18° parágrafo) para evitar a aproximação de quem o quisesse retirar de cena.
A ameaça só pode ser “ameaçadora” num conto em que os despropósitos são apresentados com toda a naturalidade.

b)   A linguagem utilizado pelo homem da tuba na sequência em que se torna ameaçador, suplicante e sedutor (do 23° ao 27° parágrafo).
Ele se mostra altamente intelectualizado, ao contrário do que fariam supor seus trajes e seu comportamento até então. O fato de que usava um bigode ruivo em 68 pode explicar essa nova “personalidade”.

c)   A ambiguidade da passagem “Mas nunca uma tuba” no 14° parágrafo, em que o primeiro violinista se recorda de situações difíceis anteriores.
Há contradição no texto?
Uma tuba nunca entrou no nariz? Ou no palco? O texto não é contraditório porque estabelece um universo regido por regras diferentes daquelas do cotidiano real.

09 – De que forma você utilizaria o texto “O recital” para provar a tese de que um texto é um todo estruturado e não uma mera justaposição de partes desconexas?
      Resposta pessoal do aluno. Deve-se leva-lo a analisar o fino trabalho de construção do texto, evidenciado pelas inúmeras relações de sentido analisadas durante o questionário.

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