CRÔNICA: PESCADORES
Carlos Drummond de Andrade
Domingo pede cachimbo, todo domingo aquele esquema: praia,
bar, soneca, futebol, jantar em restaurante. Acaba em chatura. Os quatro
jovens executivos sonhavam com um programa diferente.
— Se a gente desse uma de pescador?
— Falou.
Muniram-se do necessário, desde o caniço até o sanduíche
incrementado, e saíram rumo à praia mais deserta, mais viscosa, mais
sensacional.
Lá estavam felizes da vida, à espera de peixe. Mas os
peixes, talvez por ser domingo, e todos os domingos serem iguais, também tinham
variado de programa — e não se deixavam fisgar.
— Tem importância não. Daqui a pouco aparecem. De qualquer
modo, estamos curtindo.
— É.
Peixe não vinha. Veio pela estrada foi a Kombi, lentamente.
Parou, saltaram uns barbudos:
— Pescando, hem? Beleza de lugar. Fazem muito bem
aproveitando a folga num programa legal. Saúde. Esporte. Alegria.
— Estamos só arejando a cuca, né? Semana inteira no
escritório, lidando com problemas.
— Ótimo. Assim é que todos deviam fazer. Trocar a poluição
pela natureza, a vida ao ar livre. Somos da televisão, estamos filmando
aspectos do domingo carioca. Podem colaborar?
— Que programa é esse?
- Aprenda a Viver no Rio. Programa novo, cheio de bossas.
Vai ser lançado semana que vem. Gostaríamos que vocês fossem filmados como
exemplo do que se pode curtir num dia de lazer, em benefício do corpo e da
mente.
— Pois não. O grilo é que não pescamos nada ainda.
— Não seja por isso. Tem peixe na Kombi, que a gente
comprou para uma caldeirada logo mais.
Desceram os aparelhos e os peixes, e tudo foi feito com
técnica e verossimilhança, na manhã cristalina. Os quatro retiravam do mar, em
ritual de pescadores experientes, os peixes já pescados. O pessoal da TV ficou
radiante:
— Um barato. Vocês estavam ótimos.
— Quando é que passa o programa?
— Quinta-feira, horário nobre. Já está sendo anunciado.
Quinta-feira, os quatro e suas jovens mulheres e seus
encantadores filhos reuniram-se no apartamento de um deles — o que tivera a
ideia da pescaria.
— Vocês vão ver os maiores pescadores da paróquia em plena
ação.
O programa, badaladíssimo, começou. Eram cenas do despertar
e da manhã carioca, trens superlotados da Linha Auxiliar, filas no elevador,
escritórios em atividade, balconistas, telefonistas, enfermeiras, bancários,
tudo no batente ou correndo para. O apresentador fez uma pausa, mudou de tom:
“— Agora, o contraste. Em pleno dia de trabalho, com a
cidade funcionando a mil por cento para produzir riqueza e desenvolvimento, os
inocentes do Leblon dedicam-se à pescaria sem finalidade. Aí estão esses quatro
folgados, esquecidos de que a Guanabara enfrenta problemas seríssimos e cada
hora desperdiçada reduz o produto nacional bruto…”
— Canalhas!
— Pai, você é um barato!
— E eu que não sabia que você, em vez de ir para o
escritório, vai pescar com a patota, Roberto!
— Se eu pego aqueles safados mato eles.
— E o peixe, pai, você não trouxe o peixe pra casa!
— Não admito gozação!
— Que é que vão dizer amanhã no escritório!
— Desliga! Desliga logo essa porcaria!
Para aliviar a tensão, serviu-se uísque aos adultos,
refrigerante aos garotos.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70
Historinhas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Fonte: Maxi: ensino fundamental
2:multidisciplinar:6 º ao 9º ano/obra coletiva: Thais Ginicolo Cabral. 1.ed.
São Paulo: Maxiprint,2019.7º ano Caderno 2 p.97-100.
Entendendo o texto
01. Indique
as informações pedidas nos quadros a seguir.
Elementos da narrativa
Personagens
– Quatro jovens amigos.
Tempo
– Um dia de domingo e quinta-feira à noite.
Espaço
– Em uma praia do Rio de Janeiro e na casa de um dos amigos.
Enredo
Início – Em um domingo
alguns amigos decidem fazer uma pescaria.
Conflito – Durante a
pescaria, aprecem uns barbudos, numa kombi e convidam os jovens pescadores a
fazerem parte de um programa de televisão.
Clímax – Os rapazes
convidam os familiares a assistir ao programa de TV.
Desfecho – Ao assistir
ao programa percebem que foram enganados.
02. O que
você pensa a respeito do que os barbudos fizeram? Isso é possível de acontecer?
Registre sua resposta e, depois, troque ideias com o professor e com os
colegas.
Resposta pessoal.
03. Releia
as falas, no final do texto, e explique a reação das esposas e dos filhos dos
executivos.
Os filhos parecem zombar dos pais,
enquanto as esposas parecem acreditar no que estavam vendo na TV.
04. Como
você sabe, as crônicas costumam fazer uso de linguagem informal, a fim de
aproximar o leitor da história narrada. Nessa crônica, há grande ocorrência de gírias.
a) Pesquise,
no dicionário, a definição de gíria e registre neste espaço.
Linguagem informal
com vocabulário rico em expressões metafóricas, jocosas, elípticas, usada
inicialmente por um determinado grupo, mas que pode se estender a outros,
passando a fazer parte do uso corrente.
b) Releia
algumas frases em que as gírias aparecem e, pelo contexto e com o auxílio do
professor, anote os significados delas nesse texto.
Uma chatura!
É uma chatice, algo chato,
desinteressante, monótono.
[...] aproveitando a folga num programa legal.
Um programa interessante.
Estamos só arejando a cuca, né.
Estamos só relaxando.
[...] como exemplo do que se pode curtir num
dia de lazer [...]
Exemplos do que se pode desfrutar,
aproveitar, em um dia de lazer.
O grilo é que não pescamos nada ainda.
O problema é que não pescamos nada.
05. Escreva
as características que classificam esse texto como crônica humorística.
- Uso de linguagem informal.
- Personagens comuns, presentes no
dia a dia.
- Texto de curta extensão.
- Crítica com humor.
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