quarta-feira, 3 de agosto de 2022

ROMANCE: A JANGADA DE PEDRA - (FRAGMENTO) - JOSÉ SARAMAGO - COM GABARITO

 Romance: A jangada de pedra – Fragmento

                 José Saramago

        [...]

    Na história dos rios nunca acontecera um tal caso, estar passando a água em seu eterno passar e de repente não passa mais, como torneira que bruscamente tivesse sido fechada, por exemplo, alguém está a lavar as mãos numa bacia, retira a válvula do fundo, fechou a torneira, a água escoa-se, desce, desaparece, o que ainda ficou na concha esmaltada em pouco tempo se evaporará. Explicando por palavras mais próprias, a água do Irati retirou-se como onda que da praia reflui e se afasta, o leito do rio ficou à vista, pedras, lodo, limos, peixes que saltando boquejam e morrem, o súbito silêncio.

        Os engenheiros não estavam no local quando se deu o incrível facto, mas aperceberam-se de que alguma coisa anormal acontecera, os mostradores, na bancada de observação, indicaram que o rio deixara de alimentar a grande bacia aquática. Num jipe foram três técnicos averiguar o intrigante sucesso, e, durante o caminho, pela margem do embalse, examinaram as diversas hipóteses possíveis, não lhes faltou tempo para isso em quase cinco quilómetros, e uma dessas hipóteses era que um desabamento ou escorregamento de terras na montanha tivesse desviado o curso do rio, outra que fosse obra dos franceses, perfídia gaulesa, apesar do acordo bilateral sobre águas fluviais e seus aproveitamentos hidroeléctricos, outra, ainda, e a mais radical de todas, que se tivesse exaurido o manancial, a fonte, o olho-d’água, a eternidade que parecia ser e afinal não era. Neste ponto dividiam-se as opiniões. Um dos engenheiros, homem sossegado, da espécie contemplativa, e que apreciava a vida em Orbaiceta, temia que o mandassem para longe, os outros esfregavam de contentamento as mãos, podia ser que viessem a transferi-los para uma das barragens do Tejo, o mais perto de Madrid e da Gran Vía. Debatendo estas ansiedades pessoais chegaram à ponta extrema do embalse, onde era o desaguadouro, e o rio não estava lá, apenas um fio escasso de água que ainda ressumbrava das terras moles, um gorgolejo lodoso que nem para mover uma azenha de brincar teria força, Onde é que raio se meteu o rio, isto disse o motorista do jipe, e não se poderia ser mais expressivo e rigoroso. Perplexos, atónitos, desconcertados, inquietos também, os engenheiros voltaram a discutir entre si as já explicadas hipóteses, posto o que, verificada a inutilidade prática do prosseguimento do debate, regressaram aos escritórios da barragem, depois seguiram para Orbaiceta, onde os esperava a hierarquia, já informada do mágico desaparecimento do rio. Houve discussões ácidas, incredulidades, chamadas telefónicas para Pamplona e Madrid, e o resultado do fatigante trabalho e trato veio a exprimir-se numa ordem muito simples, disposta em três partes sucessivas e complementares. Subam o curso do rio, descubram o que aconteceu e não digam nada aos franceses.

        A expedição partiu no dia seguinte, ainda antes do nascer do sol, caminho da fronteira, sempre ao lado ou à vista do rio seco, e quando os fatigados inspectores lá chegaram compreenderam que nunca mais tornaria a haver Irati. Por uma fenda que não teria mais de uns três metros de largura, as águas precipitavam-se para o interior da terra, rugindo como um pequeno Mágara. Do outro lado já havia um ajuntamento de franceses, fora sublime ingenuidade pensar que os vizinhos, astutos e cartesianos, não dariam pelo fenômeno, mas ao menos mostravam-se tão estupefactos e desorientados como os espanhóis deste lado, e todos irmãos na ignorância. Chegaram as duas partes à fala, mas a conversa não foi extensa nem profícua, pouco mais que as interjeições de um justificado espanto, um hesitante aventar de hipóteses novas pelo lado dos espanhóis, enfim, uma irritação geral que não encontrava contra quem se voltar, os franceses daí a pouco já sorriam, afinal continuavam a ser donos do rio até à fronteira, não precisariam de reformar os mapas.

        Nessa tarde, helicópteros dos dois países sobrevoaram o local, fizeram fotografias, por meio de guinchos desceram observadores que, suspensos sobre a catarata, olhavam e nada viam, apenas o negro boqueirão e o dorso curvo e luzidio da água. Para se ir adiantando algum proveito, as autoridades municipais de Orbaiceta, do lado espanhol, e de Larrau, do lado francês, reuniram-se junto do rio, debaixo de um toldo armado para a ocasião e dominado pelas três bandeiras, a bicolor e tricolor nacionais, mais a de Navarra, com o propósito de estudarem as virtualidades turísticas de um fenômeno natural com certeza único no mundo e as condições da sua exploração, no interesse mútuo.

        [...]

SARAMAGO, José. A jangada de pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 19-21.

                Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 136-9.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·         Irati: rio que nasce na França e passa pela Espanha. Em tupi-guarani, significa “rio de mel”.

·         Boquejar: abocanhar, bocejar.

·         Embalse: local de um rio por onde passa ou se tem acesso a uma balsa, espécie de jangada grande usada para transportar cargas pesadas, percorrendo, geralmente, pequenas distâncias.

·         Perfídia: deslealdade; falsidade; traição.

·         Gaulesa: referente a Gália, antigo território onde hoje se situa a França.

·         Orbaiceta: povoado espanhol situado na margem do rio Irati.

·         Tejo: rio mais importante e mais extenso da Península Ibérica. Nasce na Espanha e deságua no Oceano Atlântico, banhando Lisboa.

·         Ressumbrar: deixa sair ou cair líquido em pouca quantidade ou gota a gota; gotejar, destilar.

·         Gorgolejo: emitir som parecido com o de um gargarejo.

·         Azenha: moinho de roda movido a água.

·         Pamplona: capital de Navarra, comunidade da Espanha.

·         Mágara: caverna de origem vulcânica.

·         Cartesiano: racional; afeito a ideias claras e procedimentos exatos; rigorosos.

·         Estupefacto: pasmado, assombrado, atônito.

·         Profícuo: útil, proveitoso, vantajoso.

·         Aventar: perceber, pressentir; ocorrer, lembrar; imaginar; supor.

·         Larrau: pequena comunidade francesa localizada na região administrativa da Aquitânia, nas montanhas dos Pirineus, que fazem divisa com a Espanha.

·         Navarra: comunidade autônoma da Espanha cuja capital é Pamplona.

02 – Você já leu algum romance do escritor português José Saramago?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – Sabe que ele foi o primeiro autor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – O que o título ou a metáfora “A jangada de pedra” lhe sugere?

        A metáfora da “jangada de pedra”

        No período das grandes navegações e dos descobrimentos, os países que formam a Península Ibérica − Portugal e Espanha − dominaram as fronteiras e tiveram um passado considerado rico, heroico e glorioso. Por questões políticas e econômicas, eles perderam a hegemonia para países como a Inglaterra e a França.

        Para remeter à história de Portugal e Espanha e dar título ao romance, Saramago aproveita-se de um ditado popular português que compara a Península Ibérica ao formato de uma jangada, embarcação rudimentar comumente usada na costa marítima e que não conseguiria ultrapassar mares ou oceanos. Na ficção, a Península assume o papel metafórico de uma “jangada de pedra” que vai se afastando da Europa, navegando sem rumo, à deriva, pelo Oceano Atlântico.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sugere dinamismo, associado ao movimento dos ventos, deslocamentos por meio de travessia marítima. Já a palavra pedra costuma ser associada a rigidez e vista como elemento estático.

05 – Com base no boxe anterior e no trecho lido de “A jangada de pedra”, responda:

a)   Qual é o foco narrativo do texto? Qual é o cenário?

Foco narrativo em terceira pessoa. As ações se passam às margens do rio Irati, no povoado de Orbaiceta, fronteira com a França, para onde se deslocaram técnicas e autoridades espanholas.

b)   Qual é o elemento fantástico presente nesse trecho? O que esse elemento desencadeia?

O rio Irati secou: “[...] o leito do rio ficou à vista, pedras, lodo, limos, peixes que saltando boquejam e morrem [...]”. Esse fato desencadeia uma sequência de ações de especialistas e autoridades para entender o fenômeno e um encontro entre autoridades espanholas e francesas para avaliar a situação.

06 – Releia:

·         [...] obra dos franceses, perfídia gaulesa, apesar do acordo bilateral sobre águas fluviais [...]

·         [...] e não digam nada aos franceses.

·         Do outro lado já havia um ajuntamento de franceses, fora sublime ingenuidade pensar que os vizinhos, astutos e cartesianos, não dariam pelo fenômeno [...]

        O que essas passagens revelam?

      Essas passagens revelam a disputa política entre Espanha e França.

07 – Os escritores do realismo fantástico relatam fatos sobrenaturais para criticar a realidade. Que críticas podem ser inferidas com base nos fatos narrados nesse trecho?

      Há críticas: à rivalidade entre espanhóis e franceses; aos franceses, por não demonstrarem solidariedade ao perceberem que não tiveram nenhum prejuízo; às autoridades dos dois países, que logo pensaram em tirar proveito da situação; e aos técnicos, engenheiros e especialistas que não conseguem explicar o fenômeno.

08 – Releia:

        “[...] os franceses daí a pouco já sorriam [...]”

        Como você interpreta esse trecho?

            Os franceses compreenderam, aliviados, que não tinham sido prejudicados pelos fenômeno natural, pois o rio não mudara seu curso na França. Continuava o mesmo, de modo de eles não teriam de alterar os mapas ou tornar qualquer outra providência.

09 – Releia outro trecho:

        “Para se ir adiantando algum proveito, as autoridades municipais de Orbaiceta, do lado espanhol, e de Larrau, do lado francês, reuniram-se junto do rio, debaixo de um toldo armado [...]”

        Qual foi o objetivo dessa reunião?

      As autoridades municipais reuniram-se para estudar um meio de tirar proveito do fenômeno natural e concluíram que seria possível explorar turisticamente a região, de modo a atender aos interesses dos dois países.

10 – Como observamos em “A jangada de pedra”, o escritor português José Saramago tem estilo próprio e usa recursos como: a criação de frases e parágrafos longos; a transgressão de determinadas regras convencionadas da modalidade escrita; a não marcação do discurso direto com parágrafos, travessões ou aspas. Leia um exemplo:

        “[...] Onde é que raio se meteu o rio, isto disse o motorista do jipe, e não se poderia ser mais expressivo e rigoroso.”

a)   Releia o texto de Saramago e encontre outro exemplo em que ele não marca o discurso direto com parágrafos, travessões ou aspas.

Outro exemplo de discurso direto sem uso de parágrafo, travessão ou aspas: “Houve discussões ácidas, incredulidades, chamadas telefónicas para Pamplona e Madrid, e o resultado do fatigante trabalho e trato veio a exprimir-se numa ordem muito simples, disposta em três partes sucessivas e complementares. Subam o curso do rio, descubram o que aconteceu e não digam nada aos franceses.”

b)   Esse tipo de pontuação do discurso direto pode ter qual finalidade?

Pode ter a finalidade de marcar o fluxo mais veloz do pensamento e da fala, como se a história fosse contada oralmente, sem interrupções.

11 – Você concorda com a visão de que a vida apresenta muitos aspectos absurdos e de que o real e o fantástico costumam se cruzar? Converse com os colegas e o professor.

      Resposta pessoal do aluno.

12 – Ao ler esse trecho da obra de Saramago, você deve ter percebido algumas diferenças entre a língua falada e escrita em Portugal e a falada e escrita no Brasil.

a)   Identifique diferenças de grafia e escreva-as no caderno.

Uso da letra c em palavras como facto, inspectores, etupefactos, hidroeléctricos. Uso de acento agudo em palavras que, no Brasil, recebem acento circunflexo, como atónitos, quilómetros, telefónicas.

b)   O que essas diferenças de grafia revelam?

Revelam diferenças de pronúncia.

c)   Que palavras e expressões presentes no texto não são comumente usadas no português atual do Brasil?

Azenha, gorgolejo, ressumbrava, boquejam, embalse, bacia (com sentido de pia) etc.

d)   No Brasil, que forma verbal seria mais usual que a destacada em: “[...] alguém está a lavar as mãos numa bacia [...]”.

O gerúndio (“alguém está lavando as mãos numa bacia”) ou o imperfeito do indicativo (“alguém lavava as mãos numa bacia”).

 

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