Conto: Farinha de mandioca
Nina Horta
Que comida eu mais gosto… Que comida eu
mais gosto?
Fiquei com a pergunta na cabeça por uns
dois meses. Qual a preferida, qual a mais digna de merecer a palavra saudade.
Profunda, lúgubre, a toda hora me vinha
à mente a feijoada, trançando o feijão, a linguiça, o paio, quiçá, o rabo,
talvez, a orelhinha, ah, feijão-preto, o óbvio ululante.
É, a feijoada resolveria. Só pode ser
ela. Boa demais, brasileira com origens nobres de cassoulets, ela própria
nascida no restaurante G. Lobo, carioca a mais não poder.
Conheço uma autora de livros de comida
que só escreve receitas que gostaria de comer todos os dias, se possível. Nada
de excessos, novidades, exotismos. Só o que perdura e se repete. Concordo com
ela. Neste caso a feijoada perderia pontos, barroca, exagerada.
E o palmito? Só nosso. Quase só nosso,
fruto da palmeira que anuncia nossa brasilidade, flor, folha, fruto, fresco,
branco, macio, desmanchando na boca. Todo dia? Também não.
O jeito é percorrer as raízes
portuguesas, africanas e indígenas. Doces de ovos, o bacalhau ao azeite, as
sardinhas fritas. Tudo delicioso, da pontinha, muito bom, pois, pois.
Dos africanos, as papas, os mingaus, o
dendê translúcido e dourado, comida baiana, vatapás, moquecas, carurus,
acarajés. Comida de festa, comida de santo. Sai do rol das costumeiras.
Dos índios, a farinha. Assim, curto e
grosso. A mandioca ralada, espremida, trabalhada, transformada. Há para todo
gosto.
Na Amazônia pode quebrar a ponta do
dente, desce o país em nuances de beijus, crocantes, etéreas, aéreas, embebem o
feijão sem empapar, empapam-se de feijão.
É de uma modéstia de coisa centrada,
que sabe o seu lugar.
Na Bahia conheço uma, macia como veludo
e que escorre dos dedos como pó, massa saborosa que solta o sabor quando
apertada contra o céu da boca com a língua. Tem um gosto decidido de mandioca.
Em Paraty a granulada já se faz mais
evidente, é comprada em casas de farinha pelos caboclos e trazida para casa em
lombo de burro ou nas costas, mesmo, em sacos de aniagem alvejados, brancos,
limpíssimos. Fazem isso uma vez por mês, num ritual, escolhem o produto,
provam, comparam com o anterior, sentem pequenas diferenças de sabor, de ponto,
de cor. Discutem sobre ela, conversam sobre ela com os amigos, eles que falam
tão pouco. É que não há como comer nem feijão nem peixe frito sem ela, a
companheira.
É isso. Companheira. Acompanha sempre.
Segura o melado, delimita o caldo grosso da galinha, corrige os exageros
líquidos do feijão.
Gosto dela em farofa e em pirão. Farofa
mineira pura, sem ovo, sem bacon. Só a manteiga na frigideira ou o óleo.
Passa-se rapidamente na gordura quente sem deixar queimar o fundo, o que seria
um desastre. Vai se mexendo, mexendo, até que se tenha amalgamado na perfeição.
E está pronta, quente, dando o crocante a tudo que é mole. Tem gente que gosta
fria, gosto tão quente que faça tzzz na língua na hora de experimentar.
Pirão em caldos de legume, pirão no
peixe, farofa com lombo, com pernil e o vinagrete. Eu conheço e você conhece
quem come arroz e macarrão com farofa, a companheira.
Farofa, farinha, efes fricativos, tem
que fechar os lábios senão pula fora, farofa, farinha, frigideira, frisada,
frita, fritada, frugal, fúlvida, fundamental, fundadora.
Revista Ícaro Brasil,
outubro de 1999. Nina Horta é jornalista, escritora, dona do bufê Ginger,
autora do livro Não é sopa (Companhia das Letras) e colaboradora das páginas de
gastronomia do jornal Folha de São Paulo.
Entendendo o conto:
01 – Qual foi a pergunta que a
autora Nina Horta levou em mente por cerca de dois meses?
A pergunta era:
"Que comida eu mais gosto?", buscando a preferida, a mais digna de
merecer a palavra saudade.
02 – Quais comidas brasileiras
a autora considera e por que as descarta como sua preferida?
Ela considera a
feijoada, mas a descarta por ser "barroca, exagerada" para ser
consumida todos os dias. Ela também pensa no palmito, mas decide que não é algo
para comer diariamente. Por fim, menciona comidas africanas como vatapás e
moquecas, classificando-as como "comida de festa", não
"costumeira".
03 – De qual herança culinária
a farinha de mandioca é destacada como vinda?
A farinha de mandioca é destacada como
vinda da herança indígena.
04 – Que qualidades a autora
atribui à farinha de mandioca que a fazem ser a comida mais amada?
Ela a descreve
como "modesta", "centrada", que "sabe o seu lugar".
É uma "companheira" que "acompanha sempre", segura o
melado, delimita o caldo grosso e corrige os exageros líquidos do feijão.
05 – Como a autora descreve a
farinha de mandioca encontrada na Bahia?
Na Bahia, ela
conhece uma farinha "macia como veludo" que "escorre dos dedos
como pó", com uma "massa saborosa que solta o sabor quando apertada
contra o céu da boca com a língua" e um "gosto decidido de
mandioca".
06 – Qual o ritual de compra e
importância da farinha para os caboclos de Paraty, segundo o texto?
Em Paraty, a
farinha granulada é comprada em casas de farinha uma vez por mês. Os caboclos a
levam em lombo de burro ou nas costas, em sacos alvejados. Eles provam,
comparam com a anterior, notam pequenas diferenças de sabor, ponto e cor, e
discutem sobre ela, pois não conseguem comer feijão nem peixe frito sem ela.
07 – De que duas formas
principais a autora gosta de consumir a farinha de mandioca e como descreve uma
delas?
A autora gosta da
farinha em farofa e em pirão. Ela descreve a farofa mineira pura, sem ovo ou
bacon, feita rapidamente na gordura quente, mexendo até "amalgamado na
perfeição", resultando em algo "quente, dando o crocante a tudo que é
mole".
Nenhum comentário:
Postar um comentário