Conto: A Cartomante
Afonso Henrique de Lima Barreto
Não havia dúvida que naqueles atrasos e
atrapalhações de sua vida, alguma influência misteriosa preponderava. Era ele
tentar qualquer cousa, logo tudo mudava. Esteve quase para arranjar-se na Saúde
Pública; mas, assim que obteve um bom "pistolão", toda a política
mudou. Se jogava no bicho, era sempre o grupo seguinte ou o anterior que dava.
Tudo parecia mostrar-lhe que ele não devia ir para adiante. Se não fossem as costuras
da mulher, não sabia bem como poderia ter vivido até ali. Há cinco anos que não
recebia vintém de seu trabalho. Uma nota de dois mil-réis, se alcançava ter na
algibeira por vezes, era obtida com auxílio de não sabia quantas humilhações,
apelando para a generosidade dos amigos.

Queria fugir, fugir para bem longe,
onde a sua miséria atual não tivesse o realce da prosperidade passada; mas,
como fugir? Onde havia de buscar dinheiro que o transportasse, a ele, a mulher
e aos filhos? Viver assim era terrível! Preso à sua vergonha como a uma
calceta, sem que nenhum código e juiz tivessem condenado, que martírio!
A certeza, porém, de que todas as suas
infelicidades vinham de uma influência misteriosa, deu-lhe mais alento. Se era
"coisa feita", havia de haver por força quem a desfizesse. Acordou
mais alegre e se não falou à mulher alegremente era porque ela já havia saído.
Pobre de sua mulher! Avelhantada precocemente, trabalhando que nem uma moura,
doente, entretanto a sua fragilidade transformava-se em energia para manter o
casal.
Ela saía, virava a cidade, trazia
costuras, recebia dinheiro, e aquele angustioso lar ia se arrastando, graças
aos esforços da esposa.
Bem! As cousas iam mudar! Ele iria a
uma cartomante e havia de descobrir o que e quem atrasavam a sua vida.
Saiu, foi à venda e consultou o jornal.
Havia muitos videntes, espíritas, teósofos anunciados; mas simpatizou com uma
cartomante, cujo anúncio dizia assim: “Madame Dadá, sonâmbula, extralúcida,
deita as cartas e desfaz toda espécie de feitiçaria, principalmente a africana.
Rua etc.".
Não quis procurar outra; era aquela,
pois já adquirira a convicção de que aquela sua vida vinha sendo trabalhada
pela mandinga de algum preto mina, a soldo do seu cunhado Castrioto, que jamais
vira com bons olhos o seu casamento com a irmã.
Arranjou, com o primeiro conhecido que
encontrou, o dinheiro necessário, e correu depressa para a casa de Madame Dadá.
O mistério ia desfazer-se e o malefício
ser cortado. A abastança voltaria à casa; compraria um terno para o Zezé, umas
botinas para Alice, a filha mais moça; e aquela cruciante vida de cinco anos
havia de lhe ficar na memória como passageiro pesadelo.
Pelo caminho tudo lhe sorria. Era o sol
muito claro e doce, um sol de junho; eram as fisionomias risonhas dos
transeuntes; e o mundo, que até ali lhe aparecia mau e turvo, repentinamente
lhe surgia claro e doce.
Entrou, esperou um pouco, com o coração
a lhe saltar do peito.
O consulente saiu e ele foi afinal à
presença da pitonisa.
Era sua mulher.
In: Minidicionário Luft
(Edição especial). São Paulo: Scipione, 1990. p. 43-45.
Fonte: Letra e Vida.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos –
Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 290.
Entendendo o conto:
01 – Qual a principal
dificuldade que o protagonista enfrenta no início do conto?
O protagonista
está vivendo em uma situação de miséria e "atrapalhações" em sua
vida, não conseguindo se arranjar financeiramente há cinco anos e dependendo
das costuras da mulher para sobreviver.
02 – Que explicação o
protagonista encontra para suas desgraças?
Ele acredita que todas as suas
infelicidades vêm de uma "influência misteriosa" ou "coisa
feita", uma espécie de mandinga.
03 – Qual a atitude da esposa
do protagonista diante da situação difícil?
A esposa, apesar
de "avelhantada precocemente" e doente, demonstra grande energia e
força, trabalhando incansavelmente ("que nem uma moura") para manter o
casal e o lar.
04 – O que o protagonista
decide fazer para mudar sua sorte?
Ele decide
procurar uma cartomante para descobrir o que e quem estão atrasando sua vida e
desfazer o malefício.
05 – Por que o protagonista
escolhe Madame Dadá especificamente?
Ele simpatiza com
o anúncio de Madame Dadá por acreditar que sua vida está sendo afetada pela
"mandinga de algum preto mina", e o anúncio da cartomante prometia
desfazer "principalmente a africana". Ele também suspeita que seu
cunhado, Castrioto, esteja por trás da feitiçaria.
06 – Como o protagonista se
sente ao ir em direção à casa da cartomante?
O protagonista se
sente esperançoso e alegre. O mundo, antes turvo, lhe surge "claro e doce",
e ele acredita que o mistério será desfeito e a abastança voltará.
07 – Qual a revelação
surpreendente ao final do trecho?
A revelação final
é que a pessoa que estava consultando a cartomante antes do protagonista era
sua própria mulher.
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