Notícia: Brincar de fazer coisas de verdade – Fragmento
Ângela Nunes
Para as crianças, o dia a dia na aldeia
vai-se alternando entre algumas tarefas domésticas que observam, fazem sozinhas
ou nas quais ajudam: lavar roupas e louças, tomar conta dos irmãos e irmãs
menores. Dar-lhes banho, levar água para casa, ajudar a preparar algum
alimento, levar e trazer recados ou coisas, enxotar as galinhas de dentro das
casas, etc. Essas tarefas domésticas e outras atividades produtivas de que as
crianças fazem parte são de verdade, elas as desempenham utilizando
instrumentos de verdade e o resultado final também é de verdade. Tudo é
permeado por um significado real e tem uma aplicabilidade concreta. No entanto,
o fato de ser tudo de verdade não impede a presença do componente lúdico, ainda
que por vezes esteja dissimulado pela responsabilidade que também é preciso
assumir. Por exemplo, enxotar as galinhas de dentro das casas é uma tarefa das
crianças menores que, frequentemente, transforma-se numa brincadeira de
pega-pega com as galinhas, em que estas dificilmente levam a melhor,
obrigando-as, por vezes, a sair por uma abertura que fazem propositadamente na
palha da parede da casa, junto ao chão.

Um bom local para observar esse tipo de
situação é a beira do rio, para onde afluem mulheres e crianças de todas as
idades para inúmeros afazeres, para a higiene diária, para conversar,
refrescar-se e brincar. Os meninos ajudam a transportar as bacias e recipientes
para água. As meninas, a lavar a louça e as roupas. Entretanto, enquanto fazem
suas tarefas, é frequente que se distraiam com algo mais que esteja acontecendo
na beira do rio, com as outras crianças ou mulheres, com o canto de um pássaro
num galho próximo, com pedrinhas e folhinhas, com a bolhas de sabão, com a
marca dos copos na areia, com as cores
do barro das margens, com o barulhinho da correnteza, ou que encham e esvaziem,
com água e areia, vezes sem conta, alguns dos recipientes que estão lavando,
que verifiquem se eles flutuam ou não... As crianças menores também tentam
ajudar e sempre pegam alguma coisa, que viram e reviram, com água e areia,
voltam a virar, e esforçam-se para que fique limpa. As crianças maiores, e até
mesmo as mulheres, deixam que as menores façam isso à vontade, e só no final
pegam esse utensílio e o lavam elas mesmas. Essa atitude tolerante é reveladora
de uma das características do processo educativo dos A’uwe-Xavante. O que a
criança tem capacidade, ou habilidade para fazer, é respeitado como tal e é
aceito como participação efetiva. Quando é preciso refazer algo que as crianças
menores iniciaram, esse ato não vem acompanhado de uma crítica negativa ou
reclamação por parte das crianças mais velhas, ou das mães. A criança sente-se,
realmente, a salvo do peso do julgamento, e isso a deixa livre para fazer de
novo aquela tarefa... exatamente como sabe, e, assim, vai sabendo cada vez
mais.
Outra característica que julgo
importante levar em conta é o tempo disponível, por parte de adultos e
crianças, para o desempenho de determinadas tarefas. O ritmo da vida permite,
por exemplo, que a mãe espere enquanto a menina experimenta, e que a menina
fique olhando a mãe enquanto esta completa que ela iniciou. Ou, ainda, que a
menina possa repetir uma ou mais vezes o que está fazendo, enquanto a mãe
aguarda que esse processo cumpra-se. Lembro-me de um dia estar voltando do rio
com uma mulher e sua filha de 4 ou 5 anos, a mãe levando uma cesta com roupa
acabada de lavar, e a menina, atrás dela, levando uma bacia com alguns pratos
de alumínio e uma panela, igualmente lavados. Ao subir o pequeno barranco, a
menina derrubou tudo no chão de areia. Ao ouvir o barulho, a mãe volta-se para
ver o que tinha acontecido, e depois olha para mim. A menina não fica nem um
pouco constrangida, e, enquanto a mãe pousa sua carga no chão e continua a
conversar comigo, a menina vai levando as coisas de novo para o rio, para
passar tudo pela água mais uma vez, fazendo boiar cada prato... A mãe não a
apressou, não a repreendeu, tampouco precisou lhe dizer o que fazer numa
situação daquelas. Quando tudo ficou pronto, a mãe levantou-se, pegou sua
cesta, e lá foram as duas a caminho de casa.
NUNES, Ângela. No tempo
e no espaço: brincadeiras das crianças A’uwe-Xavante. In: SILVA, Aracy Lopes
da; NUNES, Ângela; MACEDO, Vera Lopes da Silva (Orgs.). Crianças indígenas:
ensaios antropológicos. São Paulo: Global, 2008. (Fragmento).
Fonte: Língua
Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e
Shirley Goulart – 6º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 64-65.
Entendendo a notícia:
01 – Quais são algumas das
tarefas domésticas que as crianças na aldeia realizam ou ajudam a fazer?
As crianças na
aldeia realizam ou ajudam em tarefas como lavar roupas e louças, cuidar dos
irmãos menores (inclusive dar banho), levar água para casa, auxiliar no preparo
de alimentos, levar e trazer recados ou objetos, e enxotar galinhas de dentro
das casas.
02 – Como o texto descreve a
natureza das tarefas desempenhadas pelas crianças e qual componente está sempre
presente nelas?
O texto afirma
que as tarefas são "de verdade", desempenhadas com instrumentos reais
e com resultados concretos, possuindo um significado e aplicabilidade reais.
Mesmo assim, o componente lúdico (brincadeira) está sempre presente, por vezes
dissimulado pela responsabilidade.
03 – Qual exemplo o texto usa
para ilustrar a mistura entre tarefa e brincadeira?
O exemplo dado é
o de enxotar galinhas, uma tarefa das crianças menores que frequentemente se
transforma numa brincadeira de pega-pega com as galinhas, onde as crianças
chegam a fazer aberturas nas paredes de palha para que as aves saiam.
04 – Por que a beira do rio é
um bom local para observar a interação entre tarefas e brincadeiras das
crianças?
A beira do rio é
um bom local porque é para lá que mulheres e crianças de todas as idades vão
para realizar inúmeros afazeres (higiene, lavar, conversar), além de se
refrescar e brincar. É um ambiente onde as crianças frequentemente se distraem
com o ambiente ao redor enquanto realizam suas tarefas.
05 – Qual é uma característica
importante do processo educativo dos A'uwe-Xavante, revelada pela atitude de
adultos e crianças mais velhas?
Uma
característica importante é a tolerância e o respeito pela capacidade e
habilidade das crianças. As crianças menores são permitidas a participar e
tentar as tarefas à vontade, e quando precisam refazer algo, não há críticas
negativas ou reclamações, o que as deixa livres para aprender e tentar
novamente sem o peso do julgamento.
06 – Como o ritmo de vida na
aldeia influencia o aprendizado das crianças, conforme o texto?
O ritmo da vida
na aldeia permite que tanto adultos quanto crianças tenham tempo disponível
para o desempenho das tarefas. Isso significa que a mãe pode esperar a criança
experimentar, ou a menina pode repetir o que está fazendo, sem pressa,
permitindo que o processo de aprendizado se cumpra naturalmente.
07 – Descreva o episódio
narrado sobre a menina que derruba os pratos e a reação da mãe, e o que isso
demonstra sobre a educação A'uwe-Xavante.
Uma menina de 4
ou 5 anos derruba pratos e uma panela lavados em um barranco de areia. A mãe,
ao ver, não a repreende nem a apressa, mas continua sua conversa. A menina, sem
constrangimento, voltou sozinha ao rio para lavar tudo novamente, inclusive
fazendo os pratos boiarem. Esse episódio demonstra a liberdade da criança para
aprender e refazer sem julgamento ou intervenção apressada dos adultos,
reforçando a autonomia no processo educativo.
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