quarta-feira, 4 de junho de 2025

CONTO: MENSAGEM DA NUVEM NEGRA - FRAGMENTO - ALVES REDOL - COM GABARITO

 Conto: MENSAGEM DA NUVEM NEGRA – Fragmento

           Alves Redol

        Pareciam cercados no trabalho pelo braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande. Como se da Ponta de Erva ao Vau a leiva se consumisse nas labaredas de um incêndio que irrompesse ao mesmo tempo por toda a parte.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxfy2MawhUIPn27B6vWl7sqhn2wgMUw_1vVjjxFdA2yCYOAGsFAx-cqkEIiH_hOHDU5_unvJVb8P2kQ99t7_j7fWtb7hAsIKiLeCTc0FCtxSwkAF1etyzEi7ZYRuzUbf6I5ovoVmfdG_NyHO9Sp3TEx220q8DDpI6af3eQWDEL0KMNU8G1gPj7q0WpvXs/s1600/images.jpg 


        O ar escaldava; lambia-lhes de febre os rostos corridos pelo suor e vincados por esgares que o esforço da ceifa provocava. O Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela fadiga. Lento, mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam, pastoso e espesso. Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os pulmões com metal em fusão.

        Quase exaustos, os peitos arfavam num ritmo de máquinas velhas saturadas de movimento.

        A ceifa, porém, não parava, e ainda bem – a ceifa levava o seu tempo marcado. Se chovesse, o patrão apanharia um boléu de aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles próprios não a desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também. E se ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e conduto da vila.

        Então os dias tornar-se-iam ainda mais penosos e o degredo por terras estranhas mais insuportável.

        Vencidos pelo torpor, os braços não param. Lançam as foices no eito, juntando os pés de arroz na mão esquerda, e o hábito arrasta-os em gestos quase automáticos, mais um passo e outro, a caminho da maracha que fecha o extremo de cada canteiro. Caminham sempre no mesmo balouçar de ombros; as pegadas do seu esforço ficam marcadas na resteva lodosa.

        Talvez muitos deles pensem que o arroz deitado nas gavelas repousa primeiro do que os seus corpos. Se pudessem deter-se também, por instantes, e descansarem depois a cabeça nos montes de espigas que deixam atrás de si, a ceifa poderia animar.

        Mas o bafo que vem da seara queima mais em cada minuto e as cabeças dos alugados pesam já tanto como o cabo das foices nos braços esgotados. Estão atafulhadas de amarelo, de pensamentos e de grãos de fogo que a canícula doente lhes insuflou no sangue.

        Ninguém entoa cantigas para animar, embora os capatazes tenham incitado as raparigas cantaroleiras para o fazer. Nos ranchos não há agora quem saiba cantar.

        Como podem as cachopas entrar em cantos ao desafio, se os peitos parecem fendidos pela fadiga e o ar que respiram se tornou lava do vulcão da planície?!...

        -- Auga!... Auga!... gritam os rapazes aguadeiros.

        [...]

        Para o ceifeiro rebelde os brados dos aguadeiros assemelham-se a gritos de socorro no meio do incêndio. Sente-se mais abatido do que os outros, porque compreende as causas da angústia do rancho e sabe que os outros sofrem mais. Ele tem um norte. E os camaradas ainda não encontraram bússola.

        “Se todos a tivessem...”

        O ceifeiro rebelde pende mais a cabeça para a seara, como se as torturas e as esperanças lhe pesassem.

        [...]

        A ceifa não para – a ceifa não para nunca.

        O Agostinho Serra tem os seus encargos, fala deles a toda a hora, e se começa a chover apanha um boléu dos grandes. A Senhora Companhia não perdoa a renda da terra, haja o que houver.

        De quando em quando, um deixa a foice e vai saltando as travessas para se ir abaixar a boa distância do olhar dos capatazes.

        E procuram todos o mesmo rumo. É que um deles passou ao companheiro do lado que na regadeira do meio a água ainda corre para os canteiros mais rezentos.

        A notícia correu de ceifeiro em ceifeiro. Por isso levam todos o mesmo rumo quando largam a foice nas travessas.

        Deitados de borco na linha que faz berço às águas, podem refrescar o rosto e molhar a cabeça à vontade. Um deles atirou-se para dentro da regadeira, querendo apagar a chama que lhe consumia o corpo. Quando voltou ao rancho, disse ao capataz que caíra à regadeira, numa explicação tola.

        -- Empeci num almeirão, seu Francisco.

        -- Vais fresco, vais. Largas-te aí com algumas sezões que não te ajudas com elas. Vai lá mudar de fato, homem.

        [...].

Portugal: Publicações Europa-América, 1980.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p. 283-284.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

-- Atafulhado: cheio em demasia.

-- Gavela: feixe de espigas.

-- Rezento: úmido.

-- Boléu: queda, baque.

-- Jorna: salário diário.

-- Seara: campo de cereais.

-- Cachopa: moça.

-- Maracha: pequeno muro de terra.

-- Sezão: febre intensa e intermitente.

-- Canícula: cana pequena e delgada.

-- Empeçar: emaranhar, enredar.

-- Resteva: restolho; vegetação rasteira e seca.

02 – Como o narrador descreve a intensidade do calor no local de trabalho dos ceifeiros logo no início do fragmento?

      O narrador descreve a intensidade do calor comparando o local de trabalho a um "braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande", como se toda a leiva estivesse sendo consumida por labaredas. O ar é descrito como "escaldava", lambendo os rostos dos trabalhadores com febre e fazendo com que seus pulmões parecessem ser alimentados por "metal em fusão".

03 – Apesar das condições extremas de trabalho, por que a ceifa não podia parar, de acordo com as preocupações dos rabezanos e dos próprios ceifeiros?

      A ceifa não podia parar porque, se chovesse, o patrão teria grandes prejuízos ("apanharia um boléu de aleijar"). Além disso, os próprios ceifeiros dependiam da ceifa para seus salários ("jornas") e para que o apontador enchesse a folha no sábado, garantindo pão e sustento para suas famílias. A interrupção do trabalho significaria dias ainda mais penosos e um degredo ainda mais insuportável.

04 – Como o narrador descreve o movimento dos ceifeiros durante o trabalho, enfatizando a exaustão e a automatização de seus gestos?

      O narrador descreve o movimento dos ceifeiros como um hábito que os arrasta em "gestos quase automáticos", com um balançar constante de ombros e pegadas marcadas na "resteva lodosa". Seus peitos arfavam como "máquinas velhas saturadas de movimento", e suas cabeças pesavam como o cabo das foices, indicando um profundo torpor e exaustão.

05 – Qual o desejo implícito dos ceifeiros em relação ao descanso, comparado ao arroz que colhem?

      O desejo implícito dos ceifeiros é poderem repousar como o arroz deitado nas gavelas. Eles pensam que o arroz descansa primeiro do que seus corpos e anseiam por poderem deter-se por instantes e descansar a cabeça nos montes de espigas que deixam para trás.

06 – Quem é o "ceifeiro rebelde" mencionado no texto e qual a sua diferença em relação aos outros trabalhadores no que diz respeito à compreensão da situação?

      O "ceifeiro rebelde" é um dos trabalhadores que, diferentemente dos outros, compreende as causas da angústia do rancho e sabe que os outros sofrem mais. Ele possui um "norte", uma direção ou entendimento da situação, enquanto seus camaradas ainda não encontraram essa "bússola".

07 – Qual a atitude dos ceifeiros quando um deles espalha a notícia de que ainda há água corrente em uma das regadeiras, e o que essa atitude revela sobre suas necessidades?

      Quando a notícia da água corrente na regadeira se espalha, os ceifeiros largam suas foices e seguem todos na mesma direção para se refrescarem. Essa atitude revela a sua necessidade extrema de alívio do calor e da sede, mostrando que mesmo uma pequena oportunidade de conforto é avidamente buscada em meio ao sofrimento.

08 – Qual a explicação "tola" que um dos ceifeiros dá ao capataz após se atirar na regadeira e qual a reação do capataz a essa explicação?

      O ceifeiro dá uma explicação "tola" ao capataz, dizendo que "empeci num almeirão" (tropecei numa chicória). A reação do capataz, seu Francisco, é de descrença e ironia, percebendo que o trabalhador apenas buscou se refrescar. Ele comenta que o ceifeiro volta "fresco" e o adverte sobre as possíveis sezões (malária) que poderia ter contraído na água, mandando-o trocar de roupa.

 

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