Conto: MENSAGEM DA NUVEM NEGRA – Fragmento
Alves Redol
Pareciam cercados no trabalho pelo
braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande. Como se da Ponta de Erva
ao Vau a leiva se consumisse nas labaredas de um incêndio que irrompesse ao
mesmo tempo por toda a parte.

O ar escaldava; lambia-lhes de febre os
rostos corridos pelo suor e vincados por esgares que o esforço da ceifa
provocava. O Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das
nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela
fadiga. Lento, mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam,
pastoso e espesso. Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os
pulmões com metal em fusão.
Quase exaustos, os peitos arfavam num
ritmo de máquinas velhas saturadas de movimento.
A ceifa, porém, não parava, e ainda bem
– a ceifa levava o seu tempo marcado. Se chovesse, o patrão apanharia um boléu
de aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles próprios não a
desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também. E se
ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e
conduto da vila.
Então os dias tornar-se-iam ainda mais
penosos e o degredo por terras estranhas mais insuportável.
Vencidos pelo torpor, os braços não
param. Lançam as foices no eito, juntando os pés de arroz na mão esquerda, e o
hábito arrasta-os em gestos quase automáticos, mais um passo e outro, a caminho
da maracha que fecha o extremo de cada canteiro. Caminham sempre no mesmo balouçar
de ombros; as pegadas do seu esforço ficam marcadas na resteva lodosa.
Talvez muitos deles pensem que o arroz
deitado nas gavelas repousa primeiro do que os seus corpos. Se pudessem
deter-se também, por instantes, e descansarem depois a cabeça nos montes de
espigas que deixam atrás de si, a ceifa poderia animar.
Mas o bafo que vem da seara queima mais
em cada minuto e as cabeças dos alugados pesam já tanto como o cabo das foices
nos braços esgotados. Estão atafulhadas de amarelo, de pensamentos e de grãos
de fogo que a canícula doente lhes insuflou no sangue.
Ninguém entoa cantigas para animar,
embora os capatazes tenham incitado as raparigas cantaroleiras para o fazer.
Nos ranchos não há agora quem saiba cantar.
Como podem as cachopas entrar em cantos
ao desafio, se os peitos parecem fendidos pela fadiga e o ar que respiram se
tornou lava do vulcão da planície?!...
-- Auga!... Auga!... gritam os rapazes
aguadeiros.
[...]
Para o ceifeiro rebelde os brados dos
aguadeiros assemelham-se a gritos de socorro no meio do incêndio. Sente-se mais
abatido do que os outros, porque compreende as causas da angústia do rancho e
sabe que os outros sofrem mais. Ele tem um norte. E os camaradas ainda não
encontraram bússola.
“Se todos a tivessem...”
O ceifeiro rebelde pende mais a cabeça
para a seara, como se as torturas e as esperanças lhe pesassem.
[...]
A ceifa não para – a ceifa não para
nunca.
O Agostinho Serra tem os seus encargos,
fala deles a toda a hora, e se começa a chover apanha um boléu dos grandes. A
Senhora Companhia não perdoa a renda da terra, haja o que houver.
De quando em quando, um deixa a foice e
vai saltando as travessas para se ir abaixar a boa distância do olhar dos
capatazes.
E procuram todos o mesmo rumo. É que um
deles passou ao companheiro do lado que na regadeira do meio a água ainda corre
para os canteiros mais rezentos.
A notícia correu de ceifeiro em
ceifeiro. Por isso levam todos o mesmo rumo quando largam a foice nas
travessas.
Deitados de borco na linha que faz berço
às águas, podem refrescar o rosto e molhar a cabeça à vontade. Um deles
atirou-se para dentro da regadeira, querendo apagar a chama que lhe consumia o
corpo. Quando voltou ao rancho, disse ao capataz que caíra à regadeira, numa
explicação tola.
-- Empeci num almeirão, seu Francisco.
-- Vais fresco, vais. Largas-te aí com
algumas sezões que não te ajudas com elas. Vai lá mudar de fato, homem.
[...].
Portugal: Publicações
Europa-América, 1980.
Fonte: Livro –
Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja,
Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p.
283-284.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
--
Atafulhado: cheio em demasia.
--
Gavela: feixe de espigas.
--
Rezento: úmido.
--
Boléu: queda, baque.
--
Jorna: salário diário.
--
Seara: campo de cereais.
--
Cachopa: moça.
--
Maracha: pequeno muro de terra.
--
Sezão: febre intensa e intermitente.
--
Canícula: cana pequena e delgada.
--
Empeçar: emaranhar, enredar.
--
Resteva: restolho; vegetação rasteira e
seca.
02 – Como o narrador descreve
a intensidade do calor no local de trabalho dos ceifeiros logo no início do
fragmento?
O narrador
descreve a intensidade do calor comparando o local de trabalho a um "braseiro
de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande", como se toda a leiva
estivesse sendo consumida por labaredas. O ar é descrito como
"escaldava", lambendo os rostos dos trabalhadores com febre e fazendo
com que seus pulmões parecessem ser alimentados por "metal em fusão".
03 – Apesar das condições
extremas de trabalho, por que a ceifa não podia parar, de acordo com as
preocupações dos rabezanos e dos próprios ceifeiros?
A ceifa não podia
parar porque, se chovesse, o patrão teria grandes prejuízos ("apanharia um
boléu de aleijar"). Além disso, os próprios ceifeiros dependiam da ceifa
para seus salários ("jornas") e para que o apontador enchesse a folha
no sábado, garantindo pão e sustento para suas famílias. A interrupção do trabalho
significaria dias ainda mais penosos e um degredo ainda mais insuportável.
04 – Como o narrador descreve
o movimento dos ceifeiros durante o trabalho, enfatizando a exaustão e a
automatização de seus gestos?
O narrador
descreve o movimento dos ceifeiros como um hábito que os arrasta em
"gestos quase automáticos", com um balançar constante de ombros e
pegadas marcadas na "resteva lodosa". Seus peitos arfavam como
"máquinas velhas saturadas de movimento", e suas cabeças pesavam como
o cabo das foices, indicando um profundo torpor e exaustão.
05 – Qual o desejo implícito
dos ceifeiros em relação ao descanso, comparado ao arroz que colhem?
O desejo
implícito dos ceifeiros é poderem repousar como o arroz deitado nas gavelas.
Eles pensam que o arroz descansa primeiro do que seus corpos e anseiam por
poderem deter-se por instantes e descansar a cabeça nos montes de espigas que
deixam para trás.
06 – Quem é o "ceifeiro
rebelde" mencionado no texto e qual a sua diferença em relação aos outros
trabalhadores no que diz respeito à compreensão da situação?
O "ceifeiro
rebelde" é um dos trabalhadores que, diferentemente dos outros, compreende
as causas da angústia do rancho e sabe que os outros sofrem mais. Ele possui um
"norte", uma direção ou entendimento da situação, enquanto seus
camaradas ainda não encontraram essa "bússola".
07 – Qual a atitude dos
ceifeiros quando um deles espalha a notícia de que ainda há água corrente em
uma das regadeiras, e o que essa atitude revela sobre suas necessidades?
Quando a notícia
da água corrente na regadeira se espalha, os ceifeiros largam suas foices e
seguem todos na mesma direção para se refrescarem. Essa atitude revela a sua
necessidade extrema de alívio do calor e da sede, mostrando que mesmo uma
pequena oportunidade de conforto é avidamente buscada em meio ao sofrimento.
08 – Qual a explicação
"tola" que um dos ceifeiros dá ao capataz após se atirar na regadeira
e qual a reação do capataz a essa explicação?
O ceifeiro dá uma
explicação "tola" ao capataz, dizendo que "empeci num
almeirão" (tropecei numa chicória). A reação do capataz, seu Francisco, é
de descrença e ironia, percebendo que o trabalhador apenas buscou se refrescar.
Ele comenta que o ceifeiro volta "fresco" e o adverte sobre as
possíveis sezões (malária) que poderia ter contraído na água, mandando-o trocar
de roupa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário