Conto: Macário e Noite na taverna – Fragmento
Álvares de Azevedo
[...]
E o homem pode esquecer tudo isto. Mas
ele não era ainda feliz. As noites passava-as ao redor do palácio dela, via-a
às vezes bela e descorada ao luar, no terraço deserto, ou distinguia suas
formas na sombra que passava pelas cortinas da janela aberta de seu quarto
iluminado. Nos bailes seguia com olhares de inveja aquele corpo que palpitava
nas danças. No teatro, entre o arfar das ondas da harmonia, quando o êxtase
boiava naquele ambiente balsâmico e luminoso, ele nada via senão ela — e só
ela! E as horas de seu leito... suas horas de sono não, que mal as dormia,
porque às vezes eram longas de impaciência e insônia, outras vezes eram curtas
de sonhos ardentes! O pobre insano teve um dia uma ideia: era negra sim mas era
a da ventura. O que fez não sei, nem o sabereis nunca. E depois bastante ébrio
para vos sonhar, bastante louco para nos sonhos de fogo de seu delírio imaginar
gozar-vos, foi profano assaz para roubar a um templo o cibório d’oiro mais
puro. Esse homem... tende compaixão dele, que ele vos amara... ó anjo,
Eleonora...

— Meu Deus! meu Deus! por que tanta
infâmia, tanto lodo sobre mim? Ó minha Madona! por que maldissestes minha vida,
por que deixastes cair na minha cabeça uma nódoa tão negra?
As lágrimas, os soluços abafavam-lhe a
voz.
— Perdoai-me, senhora, aqui me tendes a
vossos pés! tende pena de mim, que eu sofri muito, que vos amei, que vos amo
muito! Compaixão! que serei vosso escravo, beijarei vossas plantas,
ajoelhar-me-ei à noite à vossa porta, ouvirei vosso ressonar, vossas orações,
vossos sonhos... e isso me bastará... Serei vosso escravo e vosso cão,
deitar-me-ei a vossos pés quando estiverdes acordada, velarei com meu punhal
quando a noite cair, e, se algum dia, se algum dia vos me puderdes amar...
então... então...
— Eleonora! Eleonora! Perder noites e
noites numa esperança! Alentá-la no peito como uma flor que murcha de frio,
alentá-la, revive-la cada dia, para vela desfolhada sobre meu rosto!...
Absorver-me em amor e só ter irrisão e escárnio! Dizei antes ao pintor que
rasgue sua Madona, ao escultor que despedace a sua estátua de mulher.
[...]
Claudius Hermann. In:
Macário e Noite na taverna. São Paulo: Saraiva, 2010. Col. Clássicos Saraiva.
Fonte: Livro –
Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja,
Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p. 288.
Entendendo o conto:
01 – Qual o sentimento
predominante do narrador em relação a Eleonora?
O sentimento predominante do narrador em
relação a Eleonora é uma paixão avassaladora e obsessiva, misturada com grande
sofrimento, inveja (em relação àqueles que a cercam) e um desejo de possessão.
Ele a idealiza e a busca incansavelmente, mesmo que isso o leve à loucura e à
infâmia.
02 – Como o narrador descreve
a intensidade de seu amor por Eleonora e suas consequências?
O narrador
descreve a intensidade de seu amor de forma que ele consome suas noites
("horas de sono não, que mal as dormia"), o impede de ver qualquer
outra coisa em bailes ou no teatro ("ele nada via senão ela — e só
ela!"), e o leva a um estado de delírio e desespero. As consequências são
a insônia, sonhos ardentes, loucura e a sensação de que sua vida foi
amaldiçoada.
03 – Que ato extremo o
narrador confessa ter cometido em sua obsessão por Eleonora?
O narrador
confessa ter cometido um ato de sacrilégio, roubando "a um templo o
cibório d’oiro mais puro". Esse ato é descrito como uma "ideia
negra" que o levaria à "ventura", evidenciando a distorção de
sua percepção em sua obsessão.
04 – Qual a reação de Eleonora
(ou a percepção do narrador sobre a reação dela) diante das confissões dele?
A reação de Eleonora
(ou a percepção do narrador) é de repulsa e angústia, expressa nas frases
"Meu Deus! meu Deus! por que tanta infâmia, tanto lodo sobre mim? Ó minha
Madona! por que maldissestes minha vida, por que deixastes cair na minha cabeça
uma nódoa tão negra?". Há a sensação de que as ações dele a maculam.
05 – Que tipo de súplica o
narrador faz a Eleonora após sua confissão?
O narrador faz
uma súplica de perdão e compaixão, oferecendo-se para ser seu
"escravo" e "cão". Ele promete beijar seus pés, ajoelhar-se
à sua porta, ouvir seu ressonar e orações, e até mesmo velar com um punhal.
Essa súplica demonstra a total submissão e desespero de seu amor.
06 – Qual a comparação que o
narrador faz para expressar a futilidade de seu amor e sofrimento?
O narrador compara sua esperança e seu
amor a uma flor que murcha de frio e é desfolhada sobre seu rosto. Ele também
afirma que seu amor só lhe trouxe "irrisão e escárnio". Para ele, é
preferível que um pintor rasgue sua Madona ou um escultor despedace sua estátua
de mulher, tamanha a decepção e o vazio de sua paixão.
07 – Considerando o contexto
do Romantismo, que características da escola literária podem ser identificadas
neste fragmento?
Neste fragmento,
várias características do Romantismo são evidentes: o subjetivismo extremo
(foco nos sentimentos e na visão do eu-lírico), o egocentrismo amoroso (a
paixão que consome o indivíduo), a idealização da mulher (Eleonora como um ser
quase divino), o sofrimento amoroso e o pessimismo, a fuga da realidade para um
mundo de sonhos e delírios, a nocturnidade (as noites de insônia e vigília) e o
sacrilégio, que expressa a rebeldia e a intensidade dos sentimentos românticos.
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