Crônica: A impetuosa torrente
Moacyr Scliar
“Querida professora:
Já faz muito tempo que aquilo
aconteceu, mas lembro como se tivesse sido ontem. Essas coisas marcam, a
senhora sabe. E eu fiquei muito marcado pelo acontecimento. Tanto que estou lhe
escrevendo.

Talvez a senhora não recorde da aula
que a senhora deu naquele dia. Por isso, vou refrescar um pouco a sua memória.
A senhora estava falando sobre o rio Amazonas e seus afluentes. A senhora,
aliás, falava muito bem, era uma excelente professora. A senhora descrevia o
grande rio, aquela gigantesca massa d’água fluindo, ora majestosa, ora irada
pela pororoca: água, muita água.
Eu estava apertado, professora. Eu
queria fazer xixi. E quanto mais a senhora falava nas águas, mais vontade me
dava de ir ao banheiro. Eu me torcia todo, chegava a ficar roxo com o esforço,
mas nada. Quando a senhora fez uma pausa, para entrar na lista dos afluentes,
eu aproveitei e pedi para ir lá fora.
A senhora ficou indignada. Bem agora, a
senhora disse, que eu ia falar dos afluentes do Amazonas, os da margem esquerda
e os da margem direita, você quer sair! E aí a senhora me passou uma
descompostura. Imagine, a senhora disse, se um dia você for à Amazônia e não
souber nada dos afluentes, como é que fica?
Fiquei mal. Porque acabei me urinando.
E que quantidade de urina, professora! Eu tinha um Amazonas inteiro na bexiga.
O pessoal me olhava, todo molhado e ria sem parar.
Nunca fui à Amazônia, professora. Nunca
vi o grande rio. Mas ultimamente, por causa da próstata, comecei a reter urina.
A mesma aflição que senti em sua aula.
Tenho repetido, baixinho, os nomes dos
afluentes do Amazonas: Javari, Juruá, Purus, Madeira, Tapajós, Xingu... Como se
fosse um exorcismo, a senhora sabe? Como se fosse uma reza, dessas que curam
doença. Claro que não funciona. Mas pelo menos ajuda a matar as saudades. E,
ah, professora, que saudades eu tenho, da aurora da minha vida. E daqueles
afluentes que, por ela, não passam mais.”
MOACYR SCLIAR. Folha de
São Paulo.
Entendendo a crônica:
01 – Qual o motivo que leva o
narrador a escrever para sua antiga professora?
O narrador
escreve para sua antiga professora porque um acontecimento marcante da
infância, relacionado a uma aula sobre o rio Amazonas e seus afluentes, o
deixou profundamente marcado.
02 – Qual era a situação
embaraçosa que o narrador vivenciou durante a aula sobre o rio Amazonas?
O narrador estava
muito apertado para fazer xixi, e a professora, ao falar das águas do rio
Amazonas, intensificava sua vontade. Ele acabou por se urinar na frente da turma,
o que o deixou envergonhado.
03 – Como a professora reagiu
ao pedido do aluno para ir ao banheiro e qual foi o argumento dela?
A professora ficou indignada com o
pedido, argumentando que ele queria sair justo quando ela falaria dos afluentes
do Amazonas, e questionou como ele se viraria se um dia fosse à Amazônia e não
soubesse nada sobre eles.
04 – Que problema de saúde o
narrador enfrenta na vida adulta que o faz reviver a aflição da infância?
Na vida adulta, o
narrador tem problemas de próstata, que o fazem reter urina e sentir a mesma
aflição de quando criança.
05 – Qual é o desfecho da
crônica e que sentimento ele evoca no narrador?
No desfecho, o
narrador, ao repetir os nomes dos afluentes do Amazonas como um
"exorcismo" ou "reza", expressa uma profunda saudade da
infância ("aurora da minha vida") e dos tempos em que essa aflição
não era um problema de saúde, mas sim um momento inocente, embora embaraçoso,
de sua vida.
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