terça-feira, 16 de janeiro de 2024

CRÔNICA: FIGURAS DO POVOADO - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Figuras do povoado

              Viriato Corrêa

        Tenho bem vivas na memória as crianças de minha idade e de meu tamanho que brincaram comigo no povoado. Mas são poucas as criaturas grandes que me ficaram na lembrança.

        Uma delas é o Jorge Carreiro. Alto como um gigante, forte como um novilho, possuía, no entanto, alma de criançola.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXLdmsNBC5LUMPr9Qh0JvdX3jI1btkIDVMzHl4UkspakshlSP3RowEeu4EftU7uVmf2aiZLXt6F9k0DxwjF3kImjbAUkDh8DGKykdL61I5dfzuIy4ZLPE-htC8ZFIIvasJ2CWvKgpU18nddLHSn8NJa9HA92TSwiyD8CKcmzz67dpW07X2tM_dfVQxgLc/s1600/POVOADO.jpg


        Brincava conosco como se fosse também menino; carregava-nos aos ombros, escanchava-nos no cogote e fazia de cavalo para que lhe montássemos nas costas.

        Era nosso melhor amigo. Quando zoava, ao longe, a cantiga do seu carro de bois, havia, nas casas, uma algazarra estouvada de crianças. Corríamos todos para a estrada. Enquanto os outros carreiros não se cansavam de nos ralhar, o Jorge consentia que trepássemos no seu carro. Ele próprio nos apanhava no chão e nos ajeitava entre a carga.

        Era uma cena encantadora de ruído e de alegria, a entrada do carro do Jorge no povoado. Sobre rumas de cana, melancias, espigas de milho ou sacos de feijão, vinham dezenas de meninos gritando festivamente.

        Os bois que puxavam o carro tinham a alma do dono. Não houve bois mais mansos e mais pacientes no mundo. A natureza como que os fez de propósito para aturar as traquinadas da infância. Dávamos-lhes de comer, na mão, como se eles fossem carneiros; trepávamos-lhes nas pernas, nos chifres, no pescoço, sem que fizessem o menor movimento de irritação.

        Outra figura é a do professor João Ricardo. Homem velho, bigode branco, óculos escuros, pigarro de quem sofre de asma.

        Nunca lhe vi um sorriso no rosto. Vivia sempre zangado, com o ar de quem está a ralhar com o mundo, cara amarrada, rugas na testa.

        Para as criancinhas do meu tamanho, representava o papel de lobisomem. Tínhamos-lhe um medo louco. Se estávamos a brincar num terreiro e o percebíamos ao longe, ficávamos silenciosos e quem podia esconder-se — escondia-se; quem podia fugir — fugia.

        Só depois que ele passava e quando já não lhe víamos mais a sombra, é que o brinquedo recomeçava.

        O velho Mirigido é também outra criatura de quem nunca me esqueci.

        Não me lembro qual a sua ocupação no povoado, mas me parece que não tinha outro ofício senão o de meter medo às crianças.

        Era um pretalhão comprido, magro, cabeludo, tão velho que já vivia curvado para a frente, em forma de arco.

        Andava pelos caminhos de saco às costas, resmungando cantigas esquisitas que ninguém entendia.

        Nem um dente na boca, boca muito vermelha, que ele escancarava horrendamente quando queria assustar algum menino.

        Corria como verdade, entre as crianças, que o preto velho, na última sexta-feira de cada mês, virava bicho. O bicho, dizia-se, era a "cobra chifruda" — cobra estranha, fantástica, diferente das outras cobras, de cabeça de onça, chifres de veado, mais grossa que um tronco de árvore.

        E o pior de tudo é que era perna de criança o petisco que a cobra mais gostava de comer.

        O Mirigido enchia-nos a cabeça de pavor e o sono de pesadelos. Mais de uma vez acordei, aos gritos, sonhando que ele me estava roendo a canela.

        Para as mães, o preto velho tinha uma utilidade: ajudava-as a curar a doença dos filhinhos.

        Não havia remédio que mais repugnássemos do que o óleo de rícino e o quinino. Conseguir que os engolíssemos era a dificuldade das nossas mães.

        O Mirigido resolvia facilmente a dificuldade. Quando se queria aplicar quinino ou óleo de rícino a alguma criança, mandava-se chamar o preto-velho. Ele vinha pontualmente. E ia entrando no quarto a roncar como um bicho, de facão desembainhado, dizendo aterradoramente:

        — Que barulho é esse aí? Vou comer esse menino! Vou comer esse menino, agora mesmo!

        E batia com os pés no chão e dançava e se mexia desengonçadamente. Um verdadeiro demônio.

        — Vou virar a cobra chifruda! berrava. Vou virar a cobra chifruda!

        E, fingindo amolar o grande facão no braço, repetia com voz rouquenha:

        — Vou comer a perna desse menino! Vou chupar os ossinhos desse menino!

        Ficávamos geladinhos da cabeça aos pés.

        E de um trago, de um trago só, engolíamos o remédio.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Quem é Jorge Carreiro na crônica "Figuras do povoado" de Viriato Corrêa?

      Jorge Carreiro é um homem alto e forte, mas com alma de criança, que brincava com as crianças do povoado, carregando-as nos ombros e fazendo-as montar em seu carro de bois.

02 – Como as crianças do povoado reagiam à chegada do carro de Jorge Carreiro?

      Ao ouvirem a cantiga do carro de bois de Jorge Carreiro ao longe, as crianças corriam para a estrada, criando uma algazarra festiva. Ele permitia que as crianças subissem em seu carro, tornando a cena encantadora.

03 – Qual é a impressão que o professor João Ricardo causa nas crianças do povoado?

      O professor João Ricardo é visto como uma figura amedrontadora pelas crianças, sendo comparado a um lobisomem. Elas tinham medo dele e se escondiam quando o avistavam, só retomando suas brincadeiras depois que ele passava.

04 – Descreva a figura do velho Mirigido na crônica.

      O velho Mirigido é um homem preto, comprido, magro, cabeludo e muito velho, que anda pelos caminhos do povoado com um saco às costas. Ele resmunga cantigas estranhas, tem uma boca sem dentes e é associado à lenda de se transformar em uma cobra chifruda.

05 – Qual é a história associada ao Mirigido que causa medo nas crianças?

      Corre entre as crianças a história de que o Mirigido se transforma em uma cobra chifruda na última sexta-feira de cada mês. Dizem que essa cobra é diferente e fantástica, com cabeça de onça e chifres de veado, e que gosta de comer pernas de crianças.

06 – Como o Mirigido ajudava as mães a administrar remédios às crianças?

      O Mirigido ajudava as mães a fazer as crianças engolirem remédios desagradáveis, como óleo de rícino e quinino. Ele entrava no quarto ameaçando virar uma cobra chifruda e assustava as crianças, fazendo-as engolir o remédio de uma só vez.

07 – Qual era a reação das crianças diante das encenações assustadoras do Mirigido?

      As crianças ficavam geladas da cabeça aos pés diante das encenações aterrorizantes do Mirigido. Ele as assustava ameaçando comer suas pernas e chupar seus ossinhos, levando as crianças a engolirem rapidamente o remédio para evitar tal destino assustador.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário