Crônica: Delírios de Honestidade
Walcyr Carrasco
OUTRO DIA EU ESTAVA pensando em como seria o
mundo se as pessoas fossem realmente honestas. Inclusive no mais prosaico
cotidiano. Eu me imagino entrando em uma dessas churrascarias de luxo. Sento-me
à mesa e peço um filé bem passado ao garçom. Ele me alerta:
— Não aconselho. O filé hoje está uma sola de
sapato.
— Peço o quê?
— Peça licença e vá para outro lugar. Olhe bem
o cardápio. Pelo preço de um bife o senhor compra mais de 1 quilo no açougue.
Quer jogar seu dinheiro fora?
Vou para outro e escolho: salmão. O garçom:
— Se o senhor quiser, eu trago. Mas salmão,
salmão, não é. E surubim, alimentado de forma a ficar com a carne rosada.
Ainda quer?
—Nesse caso fico com escargôs.
— Lesmas, quer dizer? Por que não vai catar no
jardim?
Ou então entro numa butique de grife.
Experimento um jeans, que está apertadinho na barriga. O vendedor aproxima-se:
— Ficou bom? Ah, não ficou, não, está apertado
e não tenho um número maior.
— Acho que dá... ando pensando em fazer regime.
— Pois compre depois de obter algum resultado.
Se bem que não sei,
não... essa barriga parece coisa consolidada.
-— Eu quero o jeans. Quero e pronto!
— Não vou deixar que cometa essa loucura.
Aliás, falando francamente, o que o senhor viu nesse jeans, que nem cai bem nas
suas adiposidades? Só pode ser a etiqueta. Meu amigo, ainda acredita em grife?
Corro à casa de chocolates e peço um dietético.
A mocinha no balcão:
— Confia nessa história de dietético? Ou só
quer calar a sua consciência?
— E se eu quiser confiar, estou proibido?
— Pois saiba que engorda. Menos que o chocolate
comum, mas engorda. E o senhor não me parece em condição de fazer concessões a
doces. Não vou contribuir para o seu autoengano, jamais poria esse chocolate
nas suas mãos. Vá à feira e peça um jiló.
Resolvo trocar de carro. Passeio pela
concessionária, escolho:
— Este
vermelho, que tal?
— O motor funde mais dia, menos dia — alerta o
vendedor.
— Parece tão bonitinho...
— Desculpe, mas você acha que a lataria anda
sozinha? Já alertei o dono
da loja, este carro está péssimo. Fique com
aquele.
— Mas é velho e horroroso!
— Pode ser, mas anda. Está decidido, leve
aquele. E não discuta!
O embate com a honestidade absoluta também
poderia ser numa galeria de
arte.
— Gostei daquele -— aponto o quadro à
marchande.
-— Está precisando de pano de chão?
— Não... é que... bem, posso não entender de
arte, mas achei bonito.
—
Sinceramente, o senhor não entende mesmo. Isto aqui é um horror. Não vale a
tinta que gastou. Está exposto porque o dono da galeria insistiu. Leve aquele,
é valorização na certa.
— Aquele? É muito sombrio... eu queria alguma
coisa alegre e...
— Não insista. Sombrio ou não, vou embrulhar.
Faça o cheque, é melhor
pra você.
E numa loja de móveis? Mostro as cadeiras que
me interessam. O decorador:
— É amigo de algum ortopedista?
— Está precisando de um? Posso indicar...
— Você é quem vai precisar. Essas cadeiras vão
desmontar na terceira
vez em que alguém se sentar. Fratura na certa,
— Caras assim e desmontam? Eu devia chamar o
Procon.
— Se quiser, eu chamo para o senhor!
Pior seria alguma vaidosa querendo fazer
plástica. O cirurgião examina:
— Hum... hum...
— Meu nariz vai ficar bom, doutor?
— Se a senhora se contenta em trocar uma
picareta por um parafuso, fica! Agora, se ambiciona uma melhora significativa,
o melhor é morrer e reencarnar de novo. Pode ser que tenha mais sorte.
A paciente sai chorando. Eu, que vivo me irritando com vendedores, chego a uma conclusão: quero comprar o jeans que me oprime a barriga, o chocolate que não emagrece e o quadro colorido. Deliciar-me com as pequenas fantasias. Feitas as contas, delírios de honestidade podem transformar-se em pesadelos cruéis. Os pequenos enganos abrem as comportas dos pequenos sonhos e adoçam o dia-a-dia.
Entendendo o texto
01. Qual é
o tema central da crônica "Delírios de Honestidade" de Walcyr
Carrasco?
a)
Romance.
b) Filosofia.
c) Honestidade.
d) Suspense.
02.
Quem é o narrador na crônica?
a) Primeira pessoa.
b) Segunda pessoa.
c) Terceira pessoa.
d) Narrador onisciente.
03.
Qual é a marca de subjetividade presente na crônica?
a) Imparcialidade.
b) Objetividade.
c) Neutralidade.
d) Opinião
pessoal.
04.
Onde ocorre o embate com a honestidade absoluta na crônica?
a) Concessionária de carros.
b) Galeria de arte.
c) Casa de chocolates.
d) Todas as
opções estão corretas.
05. Qual é a função social abordada na crônica?
a) Educação.
b) Saúde.
c)
Consumismo.
d) Meio ambiente.
06.
Qual é a linguagem predominante na crônica?
a) Técnica.
b)
Coloquial.
c) Formal.
d) Científica.
07.
Quem alerta o protagonista sobre a qualidade do filé na churrascaria?
a) Garçom.
b)
Cozinheiro.
c) Cliente ao lado.
d) Ninguém, ele decide por conta
própria.
08.Na
loja de móveis, qual é a crítica feita pelo decorador em relação às cadeiras
escolhidas?
a) São desconfortáveis.
b) São muito caras.
c) São
frágeis e podem desmontar.
d) Não combinam com a
decoração.
09.
Qual é a reação do cirurgião em relação à paciente que deseja fazer plástica?
a) Ele incentiva a cirurgia.
b) Ele sugere uma alternativa.
c) Ele
desencoraja a paciente.
d) Ele fica indiferente.
10.
Qual é o sentimento final do protagonista em relação aos "delírios de
honestidade"?
a) Arrependimento.
b) Alívio.
c)
Satisfação.
d) Nostalgia.
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