terça-feira, 16 de janeiro de 2024

CRÔNICA: APRISIONANDO PASSARINHOS - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Aprisionando passarinhos

              Viriato Corrêa

        Foi Ninico da Totonha quem me ensinou a armar as primeiras arapucas.

        Não havia menino mais hábil para apanhar passarinhos. Vivia armando laços e alçapões por todas as árvores e por todas as moitas. Raro o dia em que não nos maravilhava com uma rola, um corrupião, uma graúna ou um xexéu, apanhados vivos nas armadilhas.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMjLBBnvq9SSxolNdfL-WegoFFWLqtSSiuW8VllZca1JDKaqp0Wh-03aeO2tLLV94mIPMAjWaUlSRiO-gi9_y8UXNTbLnxfoHZ4xmcfmQxDQP-IxuIpoVucZlvuPX-M9NcGjFrcIlq18_K2tpXN3FpEWBxQsXgToFwatBbZ9N6mjbgaTfjj9JowqpQfzU/s1600/ARAPUCA.jpg


        A primeira vez que apareci em casa com uma pombinha implume, tirada do ninho, minha mãe me ralhou:

        — Isso não se faz, meu filho, disse-me com a sua voz de veludo. Essa pombinha tem mãe, e a esta hora a pobre mãe está inquieta, à procura dela. Tu gostarias de me ver sofrer?

        — Não, não mamãe, respondi prontamente.

        — Pois a dor que eu sentiria se alguém te levasse para sempre de perto de mim, está sentindo a mãe desta pombinha. Os bichos também têm coração. Amam-se, querem-se bem como nós.

        Passaram-se os dias e eu me esqueci das palavras de mamãe. Um corrupião andava a cantar, todas as manhãs, na cerca da casa de moer cana. Armei o alçapão e apanhei-o. Minha mãe contrariou-se.

        — Cazuza, eu já te disse que isso não se faz! falou-me severamente.

        — Mas este não foi tirado do ninho, expliquei-lhe. Já é grande, não tem mãe.

        — Mas tinha liberdade e tu lhe roubaste a liberdade. Deus fez as aves para viverem livremente no espaço e tu queres encerrá-las nas grades de uma gaiola.

        — Mas eu lhe dou comida, água, tudo, acrescentei. Ela me pegou pelo braço.

        — Onde mamãe me vai levar? indaguei assustado.

        — Vou prender-te no quarto, uma semana, duas semanas, um mês.

        — Não, não! bradei.

        — Mas eu te dou água, comida, tudo. Por que não queres?

        — Porque é ruim, respondi. Assim não brinco, não corro, não vejo nada.

        — Ah! exclamou mamãe. Então a comida, a água, não bastam. É preciso a liberdade. Pois essa liberdade que tu não podes dispensar, é a liberdade que queres tirar ao corrupião. A prisão que te assusta é a prisão que queres dar ao pássaro.

        Fiquei silencioso. Eu não tinha mesmo nada para responder. Mamãe aproveitou o meu silêncio.

        — Solta o bichinho, ordenou-me com a voz macia. Soltei-o.

        O pássaro, que estava medroso e trêmulo nas minhas mãos, saiu radiantemente, janela afora, batendo as asas pelo infinito azul, em largos voos de alegria.

        Mas, dias depois, de novo me esqueci dos conselhos de minha mãe.

        O Ninico da Totonha era, na verdade, uma tentação. Contou-me, uma tarde, das arapucas que estava armando para os lados do igarapé. Em breve teria gaiolas cheias de juritis, sururinas, pecoapás e jaçanãs. Deu-me vontade de também armar arapucas.

        O Ninico foi comigo, no mato, escolher o lugar em que eu deveria armá-las.

        Era um cantinho quieto, ao fundo de um cerrado de cipós, debaixo do toldo de um grande pé de maracujá.

        Durante uma semana nada me caiu nas armadilhas.

        Mas, uma tarde, ao aproximar-me do toldo de maracujá, ouvi de longe um pio angustiado. E, ao entrar debaixo da coberta de folhas, senti um áspero rumor de asas por entre os cipós e distingui o vulto negro de uma ave fugindo.

        O coração bateu-me fortemente. Na maior das arapucas estava um filho de jacamim.

        Tive pressa em tirá-lo lá de dentro.

        Acocorei-me, suspendi levemente a arapuca e segurei a avezinha pelas pernas.

        Mas, nesse momento, senti inesperadamente, nas costas, uma verdadeira descarga de bicadas.

        Voltei-me espantado. Era um jacamim, maior que uma galinha, com certeza a ave que fugira quando cheguei.

        Deveria ser a mãe do jacaminzinho.

        Ao ver-me com o filho na mão, investiu contra mim, às bicadas, numa fúria que me desarmou.

        Percebi que me visava os olhos: um golpe alcançou-me em cheio o nariz.

        De cócoras, não me era possível lutar com a ave. Eu conhecia a coragem e a bravura dos jacamins. Tinha-os visto brigar com perus, gaios e até mesmo cães.

        Ergui-me. A ave não se intimidou. Arremessou-se contra mim mais violentamente, bicando-me os pés e as pernas.

        Só com a mão esquerda eu não me podia defender. Com a direita segurava o jacaminzinho pelas canelas.

        Fui recuando, recuando, a ver se conseguia encontrar a saída.

        Mas os meus pés embaraçaram-me num cipó. Caí.

        A ave atirou-se loucamente em cima de mim. Um berro horrível saiu-me da boca. Uma bicada me havia alcançado o olho esquerdo. O jacaminzinho escapou-me da mão.

        Cego, gritando de dor, o rosto molhado de sangue, pus-me a tatear por entre a folhagem sem encontrar o caminho para sair.

        De novo, tropecei num cipó. De novo, rolei no chão.

        E foi numa casa de maribondos que eu tive a desgraça de cair. Na cabeça, no rosto, em todo o corpo senti uma verdadeira chuva de ferroadas.

        Botei a boca no mundo, a berrar desesperadamente.

        O Lourenço Sapateiro, que na ocasião passava na estrada, foi quem me levou para casa.

        O meu estado era miserável. A bicada do jacamim ferira-me o canto do olho esquerdo. Faltou um nada para me furar o globo ocular.

        Os maribondos transformaram-me numa cadeia de montanhas — calombos de alto a baixo do corpo. Os lábios, ferroados, cresceram, incharam, dando-me ao rosto o aspecto estranho de um bicho.

        Durante duas semanas fiquei no quarto gemendo.

        — Foste castigado, disse minha mãe, ao ver-me entrar gritando de dor. Foste castigado por duas faltas. Uma, a maldade de querer tolher a liberdade alheia; outra, a desobediência aos meus conselhos. Deus não gosta dos meninos maus e desobedientes.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual foi a primeira lição sobre armar armadilhas que o narrador recebeu?

      Foi Ninico da Totonha quem ensinou o narrador a armar as primeiras arapucas.

02 – Por que a mãe do narrador repreendeu-o quando ele trouxe uma pombinha implume pela primeira vez?

      Porque a mãe explicou que os animais também têm sentimentos, amor e que roubar a liberdade deles não é correto.

03 – Qual foi a reação da mãe do narrador quando ele capturou um corrupião, alegando que não foi tirado do ninho?

      A mãe contrariou-se e explicou que mesmo que não tenha sido tirado do ninho, o pássaro tinha liberdade, e prendê-lo era errado.

04 – Como o narrador reagiu ao ser ameaçado de ser preso no quarto pela mãe?

      O narrador bradou e protestou, mas acabou soltando o pássaro ao comando da mãe.

05 – O que aconteceu quando o narrador decidiu armar arapucas após ser influenciado por Ninico da Totonha?

      O narrador acabou capturando um filhote de jacamim, e a mãe da ave o atacou furiosamente, causando-lhe sérios ferimentos.

06 – Como a mãe do narrador interpretou o acontecido com o jacamim e o ferimento do narrador?

      A mãe interpretou como um castigo divino, relacionando os ferimentos do narrador à maldade de querer tolher a liberdade alheia e à desobediência aos seus conselhos.

07 – Por que a mãe do narrador afirmou que ele foi castigado por duas faltas?

      A mãe disse que o narrador foi castigado por querer tolher a liberdade dos passarinhos e por desobedecer aos conselhos maternos.

 

 

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