Crônica: Aprisionando passarinhos
Viriato Corrêa
Foi Ninico da Totonha quem me ensinou a
armar as primeiras arapucas.
Não havia menino mais hábil para
apanhar passarinhos. Vivia armando laços e alçapões por todas as árvores e por
todas as moitas. Raro o dia em que não nos maravilhava com uma rola, um
corrupião, uma graúna ou um xexéu, apanhados vivos nas armadilhas.
A
primeira vez que apareci em casa com uma pombinha implume, tirada do ninho,
minha mãe me ralhou:
— Isso não se faz, meu filho, disse-me
com a sua voz de veludo. Essa pombinha tem mãe, e a esta hora a pobre mãe está
inquieta, à procura dela. Tu gostarias de me ver sofrer?
— Não, não mamãe, respondi prontamente.
— Pois a dor que eu sentiria se alguém
te levasse para sempre de perto de mim, está sentindo a mãe desta pombinha. Os
bichos também têm coração. Amam-se, querem-se bem como nós.
Passaram-se os dias e eu me esqueci das
palavras de mamãe. Um corrupião andava a cantar, todas as manhãs, na cerca da
casa de moer cana. Armei o alçapão e apanhei-o. Minha mãe contrariou-se.
— Cazuza, eu já te disse que isso não se
faz! falou-me severamente.
— Mas este não foi tirado do ninho,
expliquei-lhe. Já é grande, não tem mãe.
— Mas tinha liberdade e tu lhe roubaste
a liberdade. Deus fez as aves para viverem livremente no espaço e tu queres
encerrá-las nas grades de uma gaiola.
— Mas eu lhe dou comida, água, tudo,
acrescentei. Ela me pegou pelo braço.
— Onde mamãe me vai levar? indaguei
assustado.
— Vou prender-te no quarto, uma semana,
duas semanas, um mês.
— Não, não! bradei.
— Mas eu te dou água, comida, tudo. Por
que não queres?
— Porque é ruim, respondi. Assim não
brinco, não corro, não vejo nada.
— Ah! exclamou mamãe. Então a comida, a
água, não bastam. É preciso a liberdade. Pois essa liberdade que tu não podes
dispensar, é a liberdade que queres tirar ao corrupião. A prisão que te assusta
é a prisão que queres dar ao pássaro.
Fiquei silencioso. Eu não tinha mesmo
nada para responder. Mamãe aproveitou o meu silêncio.
— Solta o bichinho, ordenou-me com a
voz macia. Soltei-o.
O pássaro, que estava medroso e trêmulo
nas minhas mãos, saiu radiantemente, janela afora, batendo as asas pelo
infinito azul, em largos voos de alegria.
Mas, dias depois, de novo me esqueci
dos conselhos de minha mãe.
O Ninico da Totonha era, na verdade,
uma tentação. Contou-me, uma tarde, das arapucas que estava armando para os
lados do igarapé. Em breve teria gaiolas cheias de juritis, sururinas, pecoapás
e jaçanãs. Deu-me vontade de também armar arapucas.
O Ninico foi comigo, no mato, escolher
o lugar em que eu deveria armá-las.
Era um cantinho quieto, ao fundo de um
cerrado de cipós, debaixo do toldo de um grande pé de maracujá.
Durante uma semana nada me caiu nas
armadilhas.
Mas, uma tarde, ao aproximar-me do
toldo de maracujá, ouvi de longe um pio angustiado. E, ao entrar debaixo da
coberta de folhas, senti um áspero rumor de asas por entre os cipós e distingui
o vulto negro de uma ave fugindo.
O coração bateu-me fortemente. Na maior
das arapucas estava um filho de jacamim.
Tive pressa em tirá-lo lá de dentro.
Acocorei-me, suspendi levemente a
arapuca e segurei a avezinha pelas pernas.
Mas, nesse momento, senti
inesperadamente, nas costas, uma verdadeira descarga de bicadas.
Voltei-me espantado. Era um jacamim,
maior que uma galinha, com certeza a ave que fugira quando cheguei.
Deveria ser a mãe do jacaminzinho.
Ao ver-me com o filho na mão, investiu
contra mim, às bicadas, numa fúria que me desarmou.
Percebi que me visava os olhos: um
golpe alcançou-me em cheio o nariz.
De cócoras, não me era possível lutar
com a ave. Eu conhecia a coragem e a bravura dos jacamins. Tinha-os visto
brigar com perus, gaios e até mesmo cães.
Ergui-me. A ave não se intimidou.
Arremessou-se contra mim mais violentamente, bicando-me os pés e as pernas.
Só com a mão esquerda eu não me podia
defender. Com a direita segurava o jacaminzinho pelas canelas.
Fui recuando, recuando, a ver se
conseguia encontrar a saída.
Mas os meus pés embaraçaram-me num cipó.
Caí.
A ave atirou-se loucamente em cima de
mim. Um berro horrível saiu-me da boca. Uma bicada me havia alcançado o olho
esquerdo. O jacaminzinho escapou-me da mão.
Cego, gritando de dor, o rosto molhado
de sangue, pus-me a tatear por entre a folhagem sem encontrar o caminho para
sair.
De novo, tropecei num cipó. De novo,
rolei no chão.
E foi numa casa de maribondos que eu
tive a desgraça de cair. Na cabeça, no rosto, em todo o corpo senti uma
verdadeira chuva de ferroadas.
Botei a boca no mundo, a berrar
desesperadamente.
O Lourenço Sapateiro, que na ocasião
passava na estrada, foi quem me levou para casa.
O meu estado era miserável. A bicada do
jacamim ferira-me o canto do olho esquerdo. Faltou um nada para me furar o
globo ocular.
Os maribondos transformaram-me numa
cadeia de montanhas — calombos de alto a baixo do corpo. Os lábios, ferroados,
cresceram, incharam, dando-me ao rosto o aspecto estranho de um bicho.
Durante duas semanas fiquei no quarto
gemendo.
— Foste castigado, disse minha mãe, ao
ver-me entrar gritando de dor. Foste castigado por duas faltas. Uma, a maldade
de querer tolher a liberdade alheia; outra, a desobediência aos meus conselhos.
Deus não gosta dos meninos maus e desobedientes.
Viriato
Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Qual foi a primeira lição
sobre armar armadilhas que o narrador recebeu?
Foi Ninico da
Totonha quem ensinou o narrador a armar as primeiras arapucas.
02 – Por que a mãe do narrador
repreendeu-o quando ele trouxe uma pombinha implume pela primeira vez?
Porque a mãe
explicou que os animais também têm sentimentos, amor e que roubar a liberdade deles
não é correto.
03 – Qual foi a reação da mãe
do narrador quando ele capturou um corrupião, alegando que não foi tirado do
ninho?
A mãe contrariou-se e explicou que mesmo
que não tenha sido tirado do ninho, o pássaro tinha liberdade, e prendê-lo era
errado.
04 – Como o narrador reagiu ao
ser ameaçado de ser preso no quarto pela mãe?
O narrador bradou
e protestou, mas acabou soltando o pássaro ao comando da mãe.
05 – O que aconteceu quando o
narrador decidiu armar arapucas após ser influenciado por Ninico da Totonha?
O narrador acabou capturando um filhote
de jacamim, e a mãe da ave o atacou furiosamente, causando-lhe sérios
ferimentos.
06 – Como a mãe do narrador
interpretou o acontecido com o jacamim e o ferimento do narrador?
A mãe interpretou
como um castigo divino, relacionando os ferimentos do narrador à maldade de
querer tolher a liberdade alheia e à desobediência aos seus conselhos.
07 – Por que a mãe do narrador
afirmou que ele foi castigado por duas faltas?
A mãe disse que o narrador foi castigado
por querer tolher a liberdade dos passarinhos e por desobedecer aos conselhos
maternos.
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