terça-feira, 16 de janeiro de 2024

CRÔNICA: AS CALCINHAS - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: As calcinhas

              Viriato Corrêa

        Não me lembro qual a minha idade quando ficou decidido que, no ano seguinte, eu entraria para a escola.

      Mas eu devia ser muito e muito pequeno. Tão pequenino que não pronunciava direito as palavras e ainda chupava o dedo e vestia roupinhas de menina.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg8BJB6LMJC4iTMCq9Cn-IrQ6Ne4c7u2mtko6ZSE8bvuKQSNSD1ZiQ0yd4kSYzhRkNvDzm1hZpOTuSdjVZGsJ-LqoRNkNKxCZLjXIvrvqhwJ10tDVjbjA5pLAhGF48I4Y4tHmB3dhHgmN5lU6KcbOrJJ0eNHDLyAN94hZIfAWPXS9oSTOE2ajyOuB4TFtM/s320/CALCINHA.jpeg


    Mas não imaginem que eu fosse um menino excepcional, desses meninos-prodígios, ajuizados e sisudos, que não riem, não brincam e não saltam, dando à gente a impressão de que já nasceram velhos.

        Pelo contrário. Eu era uma criança alegre, traquinas e estouvada, que vivia correndo pelo quintal e fazendo estripulias pela casa.

        Dois motivos é que me deram vontade de estudar.

        O primeiro deles — as calças. Desde que me entendi, tive a preocupação de ser homem e nunca me pude ajeitar nos vestidinhos rendados de menina. Sempre olhei com inveja os garotos mais taludos do que eu, não porque eles fossem maiores e gozassem regalias que os garotinhos não gozam, mas porque usavam calças.

        Minha mãe prometia frequentemente:

        — Quando você entrar para a escola deixará dos vestidinhos.

        E, por amor às calças, comecei a mostrar amor aos livros.

        O segundo motivo é que o primeiro contato que tive com uma escola foi através de uma festa. E ficou-me na cabeça a ideia de que a escola era um lugar de alegria.

        Eu conto a vocês.

        Havia outrora nos sertões do Norte uma festa que hoje não mais existe em parte nenhuma. Chamava-se "festa da palmatória".

        As escolas antigamente não tinham, às vezes, mobiliário que prestasse, material de ensino que servisse, professores que cuidassem das lições, mas... uma palmatória, rija, feita de boa madeira, não havia escola que não tivesse.

        No espírito das crianças à palmatória tomava a feição de um monstro. Punham-se-lhe em cima todos os nomes feios. Chamavam-lhe a "danada", a "tirana", a "malvada", a "bandida".

        A meninada vingava-se dela no fim do ano, fazendo-lhe uma festa gaiata, com algazarra e cantoria.

        Era isso a 7 de dezembro, justamente no dia em que se encerravam as aulas. Festa de infinita singeleza e de infinita ingenuidade, como costumavam ser as festas infantis.

        A escola amanhecia enfeitada com ramos e palmas verdes. Flores, muitas flores na mesa e na cadeira do professor. A palmatória, amarrada com laços de fita, pendia dum prego, na parede.

        Os meninos, mais bem vestidos que nos outros dias, iam cedinho para a porta da escola, brincar.

        Quando o professor apontava ao longe, cessava o brinquedo. Faziam-se alas. Ele entrava comovido, ia para junto da mesa e encerrava as aulas com um discurso.

        O discurso era, palavrinha por palavrinha, quase sempre o mesmo de todos os anos. Sempre conselhos: começava desejando que os alunos fossem felizes durante as férias e terminava lembrando-lhes que não se esquecessem das lições aprendidas e de nenhum dos deveres de moral e disciplina.

        Em seguida, o professor abençoava os estudantes um por um e retirava-se.

        A escola ficava entregue à pequenada. O aluno mais velho tirava à palmatória do prego, amarrava-a num cabo de vassoura e empunhava-o como se empunha um estandarte.

        As crianças formavam, então, duas a duas, e saíam em passeata pelas ruas da povoação ou da vila, gritando e pulando. No começo — uma ladainha triste, cantada em coro, a chorar a morte da palmatória. Depois, as emboladas, os desafios, as cantigas alegres do sertão.

        Levaram-me, naquele ano, à porta da escola para assistir à festa.

        Recordo-me bem de tudo. Era um dia bonito, muito azul, muito luminoso e muito fresco. Havia chovido na véspera e as árvores, bem lavadas e verdes, pareciam criaturas que mudam de roupa depois do banho. Pássaros cantavam alegremente nas árvores, como se também eles começassem as férias.

        O discurso do professor, as flores e as palmas verdes, a alegria da meninada, a passeata, assanharam-me o sangue. Voltei para casa contentíssimo. Fiquei tendo da escola a ideia de que era um lugar agradável, que dava prazer à gente.

        E daí por diante não falei mais noutra coisa. Todo livro que eu apanhava, abria-o com solenidade e punha-me a recitar em voz alta o que me vinha à cabeça fingindo que o estava lendo.

        Meu pai e minha mãe achavam uma infinita graça naquilo. E decidiram que, ao recomeçarem as aulas, em janeiro, eu teria finalmente as minhas calcinhas de menino e um lugar nos bancos da escola.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Por que o narrador expressa sua vontade de estudar no primeiro parágrafo da crônica?

      O narrador expressa sua vontade de estudar no primeiro parágrafo da crônica devido ao desejo de deixar de vestir roupas de menina e usar calças, motivado pelo anseio de ser reconhecido como um menino.

02 – Quais são os dois motivos que levaram o narrador a ter vontade de estudar?

      Os dois motivos que levaram o narrador a ter vontade de estudar foram o desejo de deixar de usar vestidinhos de menina em favor das calças e a impressão positiva que teve da escola ao presenciar a "festa da palmatória".

03 – O que representava a "festa da palmatória" nas escolas antigas mencionadas na crônica?

      A "festa da palmatória" representava o encerramento do ano escolar, onde os alunos celebravam de maneira alegre e festiva, homenageando a palmatória que, apesar de temida, era vista como um elemento simbólico na escola.

04 – Como o professor encerrava as aulas durante a "festa da palmatória"?

      Durante a "festa da palmatória", o professor encerrava as aulas com um discurso, desejando felicidades nas férias aos alunos e relembrando a importância das lições aprendidas, bem como dos deveres de moral e disciplina.

05 – Qual foi a impressão que a "festa da palmatória" deixou no narrador em relação à escola?

      A "festa da palmatória" deixou no narrador a impressão de que a escola era um lugar agradável e prazeroso, contribuindo para despertar nele o desejo de estudar.

06 – O que o narrador fazia ao pegar um livro durante sua infância?

      Quando o narrador pegava um livro durante sua infância, ele abria-o com solenidade e recitava em voz alta o que lhe vinha à cabeça, fingindo que estava lendo, demonstrando seu interesse e entusiasmo pela ideia de estudar.

07 – Qual foi a decisão tomada pelos pais do narrador em relação à sua educação ao final da crônica?

      Ao final da crônica, os pais do narrador decidiram que, ao recomeçarem as aulas em janeiro, ele finalmente teria suas calcinhas de menino e um lugar nos bancos da escola, atendendo ao desejo manifestado pelo narrador ao longo do texto.

 

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