Crônica: As calcinhas
Viriato Corrêa
Não me lembro qual a minha idade quando
ficou decidido que, no ano seguinte, eu entraria para a escola.
Mas eu devia ser muito e muito pequeno.
Tão pequenino que não pronunciava direito as palavras e ainda chupava o dedo e
vestia roupinhas de menina.
Mas não imaginem que eu fosse um menino
excepcional, desses meninos-prodígios, ajuizados e sisudos, que não riem, não
brincam e não saltam, dando à gente a impressão de que já nasceram velhos.
Pelo contrário. Eu era uma criança
alegre, traquinas e estouvada, que vivia correndo pelo quintal e fazendo
estripulias pela casa.
Dois motivos é que me deram vontade de
estudar.
O primeiro deles — as calças. Desde que
me entendi, tive a preocupação de ser homem e nunca me pude ajeitar nos
vestidinhos rendados de menina. Sempre olhei com inveja os garotos mais taludos
do que eu, não porque eles fossem maiores e gozassem regalias que os garotinhos
não gozam, mas porque usavam calças.
Minha mãe prometia frequentemente:
— Quando você entrar para a escola
deixará dos vestidinhos.
E, por amor às calças, comecei a mostrar
amor aos livros.
O segundo motivo é que o primeiro
contato que tive com uma escola foi através de uma festa. E ficou-me na cabeça
a ideia de que a escola era um lugar de alegria.
Eu conto a vocês.
Havia outrora nos sertões do Norte uma
festa que hoje não mais existe em parte nenhuma. Chamava-se "festa da
palmatória".
As escolas antigamente não tinham, às
vezes, mobiliário que prestasse, material de ensino que servisse, professores
que cuidassem das lições, mas... uma palmatória, rija, feita de boa madeira,
não havia escola que não tivesse.
No espírito das crianças à palmatória
tomava a feição de um monstro. Punham-se-lhe em cima todos os nomes feios.
Chamavam-lhe a "danada", a "tirana", a "malvada",
a "bandida".
A meninada vingava-se dela no fim do
ano, fazendo-lhe uma festa gaiata, com algazarra e cantoria.
Era isso a 7 de dezembro, justamente no
dia em que se encerravam as aulas. Festa de infinita singeleza e de infinita
ingenuidade, como costumavam ser as festas infantis.
A escola amanhecia enfeitada com ramos
e palmas verdes. Flores, muitas flores na mesa e na cadeira do professor. A
palmatória, amarrada com laços de fita, pendia dum prego, na parede.
Os meninos, mais bem vestidos que nos
outros dias, iam cedinho para a porta da escola, brincar.
Quando o professor apontava ao longe,
cessava o brinquedo. Faziam-se alas. Ele entrava comovido, ia para junto da
mesa e encerrava as aulas com um discurso.
O discurso era, palavrinha por
palavrinha, quase sempre o mesmo de todos os anos. Sempre conselhos: começava
desejando que os alunos fossem felizes durante as férias e terminava
lembrando-lhes que não se esquecessem das lições aprendidas e de nenhum dos
deveres de moral e disciplina.
Em seguida, o professor abençoava os
estudantes um por um e retirava-se.
A escola ficava entregue à pequenada. O
aluno mais velho tirava à palmatória do prego, amarrava-a num cabo de vassoura
e empunhava-o como se empunha um estandarte.
As crianças formavam, então, duas a
duas, e saíam em passeata pelas ruas da povoação ou da vila, gritando e
pulando. No começo — uma ladainha triste, cantada em coro, a chorar a morte da
palmatória. Depois, as emboladas, os desafios, as cantigas alegres do sertão.
Levaram-me, naquele ano, à porta da
escola para assistir à festa.
Recordo-me bem de tudo. Era um dia
bonito, muito azul, muito luminoso e muito fresco. Havia chovido na véspera e
as árvores, bem lavadas e verdes, pareciam criaturas que mudam de roupa depois
do banho. Pássaros cantavam alegremente nas árvores, como se também eles
começassem as férias.
O discurso do professor, as flores e as
palmas verdes, a alegria da meninada, a passeata, assanharam-me o sangue.
Voltei para casa contentíssimo. Fiquei tendo da escola a ideia de que era um
lugar agradável, que dava prazer à gente.
E daí por diante não falei mais noutra
coisa. Todo livro que eu apanhava, abria-o com solenidade e punha-me a recitar
em voz alta o que me vinha à cabeça fingindo que o estava lendo.
Meu pai e minha mãe achavam uma
infinita graça naquilo. E decidiram que, ao recomeçarem as aulas, em janeiro,
eu teria finalmente as minhas calcinhas de menino e um lugar nos bancos da
escola.
Viriato
Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Por que o narrador
expressa sua vontade de estudar no primeiro parágrafo da crônica?
O narrador
expressa sua vontade de estudar no primeiro parágrafo da crônica devido ao
desejo de deixar de vestir roupas de menina e usar calças, motivado pelo anseio
de ser reconhecido como um menino.
02 – Quais são os dois motivos
que levaram o narrador a ter vontade de estudar?
Os dois motivos
que levaram o narrador a ter vontade de estudar foram o desejo de deixar de
usar vestidinhos de menina em favor das calças e a impressão positiva que teve
da escola ao presenciar a "festa da palmatória".
03 – O que representava a
"festa da palmatória" nas escolas antigas mencionadas na crônica?
A "festa da
palmatória" representava o encerramento do ano escolar, onde os alunos
celebravam de maneira alegre e festiva, homenageando a palmatória que, apesar
de temida, era vista como um elemento simbólico na escola.
04 – Como o professor
encerrava as aulas durante a "festa da palmatória"?
Durante a "festa da
palmatória", o professor encerrava as aulas com um discurso, desejando
felicidades nas férias aos alunos e relembrando a importância das lições
aprendidas, bem como dos deveres de moral e disciplina.
05 – Qual foi a impressão que
a "festa da palmatória" deixou no narrador em relação à escola?
A "festa da
palmatória" deixou no narrador a impressão de que a escola era um lugar
agradável e prazeroso, contribuindo para despertar nele o desejo de estudar.
06 – O que o narrador fazia ao
pegar um livro durante sua infância?
Quando o narrador
pegava um livro durante sua infância, ele abria-o com solenidade e recitava em
voz alta o que lhe vinha à cabeça, fingindo que estava lendo, demonstrando seu
interesse e entusiasmo pela ideia de estudar.
07 – Qual foi a decisão tomada
pelos pais do narrador em relação à sua educação ao final da crônica?
Ao final da
crônica, os pais do narrador decidiram que, ao recomeçarem as aulas em janeiro,
ele finalmente teria suas calcinhas de menino e um lugar nos bancos da escola,
atendendo ao desejo manifestado pelo narrador ao longo do texto.
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