domingo, 19 de junho de 2022

PEÇA TEATRAL: O NOVIÇO (FRAGMENTO) - MARTINS PENA - COM GABARITO

 Peça teatral: O noviço (Fragmento)

                     Martins Pena

CENA VII

        Carlos, com hábito de noviço, entra assustado e fecha a porta.

        EMÍLIA, assustando-se — Ah, quem é? Carlos!

        CARLOS — Cala-te

        EMÍLIA — Meu Deus, o que tens, por que estás tão assustado? O que foi?

        CARLOS — Aonde está minha tia, e o teu padrasto?

        EMÍLIA — Lá em cima. Mas o que tens?

        CARLOS — Fugi do convento, e aí vêm eles atrás de mim.

        EMÍLIA — Fugiste? E por que motivo?

        CARLOS — Por que motivo? pois faltam motivos para se fugir de um convento? O último foi o jejum em que vivo há sete dias... Vê como tenho esta barriga, vai a sumir-se. Desde sexta-feira passada que não mastigo pedaço que valha a pena.

        EMÍLIA — Coitado!

        CARLOS — Hoje, já não podendo, questionei com o D. Abade. Palavras puxam palavras; dize tu, direi eu, e por fim de contas arrumei-lhe uma cabeçada, que o atirei por esses ares.

        EMÍLIA — O que fizestes, louco?

        CARLOS — E que culpa tenho eu, se tenho a cabeça esquentada? Para que querem violentar minhas inclinações? Não nasci para frade, não tenho jeito nenhum para estar horas inteiras no coro a rezar com os braços encruzados. Não me vai o gosto para aí... Não posso jejuar; tenho, pelo menos três vezes ao dia, uma fome de todos os diabos. Militar é que eu quisera ser; para aí chama-me a inclinação. Bordoadas, espadeiradas, rusgas é que me regalam; esse é o meu gênio. Gosto de teatro, e de lá ninguém vai ao teatro, à exceção de Frei Maurício, que frequenta a plateia de casaca e cabelereira para esconder a coroa.

        EMÍLIA — Pobre Carlos, como terás passado estes seis meses de noviciado!

        CARLOS — Seis meses de martírio! Não que a vida de frade seja má; boa é ela para quem a sabe gozar e que para ela nasceu; mas eu, priminha, eu que tenho para tal vidinha negação completa, não posso!

        EMÍLIA — E os nossos parentes quando nos obrigam a seguir uma carreira para a qual não temos inclinação alguma, dizem que o tempo acostumar-nos-á.

        CARLOS — O tempo acostumar! Eis aí porque vemos entre nós tantos absurdos e disparates. Este tem jeito para sapateiro: pois vá estudar medicina... Excelente médico! Aquele tem inclinação para cômico: pois não senhor, será político... Ora, ainda isso vá. Esse outro só tem jeito para caiador ou borrador: nada, é ofício que não presta... Seja diplomata, que borra tudo quanto faz. Aqueloutro chama-lhe toda a propensão para a ladroeira; manda o bom senso que se corrija o sujeitinho, mas isso não se faz; seja tesoureiro de repartição fiscal, e lá se vão os cofres da nação à garra... Esse outro tem uma grande carga de preguiça e indolência e só serviria para leigo de convento, no entanto vemos o bom do mandrião empregado público, comendo com as mãos encruzadas sobre a pança o pingue ordenado da nação.

        EMÍLIA — Tens muita razão; assim é.

        CARLOS — Este nasceu para poeta ou escritor, com uma imaginação fogosa e independente, capaz de grandes cousas, mas não pode seguir a sua inclinação, porque poetas e escritores morrem de miséria, no Brasil. E assim o obriga a necessidade a ser o mais somenos amanuense em uma repartição pública e a copiar cinco horas por dia os mais soníferos papéis. O que acontece? Em breve matam-lhe a inteligência e fazem do homem pensante máquina estúpida, e assim se gasta uma vida? É preciso, é já tempo que alguém olhe para isso, e alguém que possa.

        [...]

 PENA, Martins. O noviço. Apresentação, comentários e notas de José de Paula Ramos Jr. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996. p. 62-5.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 115-6.

Entendendo a peça teatral:

01 – Quais os motivos alegados por Carlos para ter fugido do convento?

      A obrigação de jejuar, a discussão com o Abade, que terminou em agressão física, o fato de ter a cabeça “esquentada” por não ter nascido para a vida religiosa, querer ser militar e, por fim, o fato de gostar de teatro, divertimento ao qual poucos religiosos se dedicam – o Frei Maurício tem mesmo que se disfarçar para poder frequentar o teatro.

02 – Segundo Carlos, a vida de frade é má ou boa?

      Para ele, a vida de frade é boa para quem tem vocação. No caso dele, que não tem, é um martírio.

03 – Há uma crítica direta, na fala do noviço, contra o costume de os parentes escolherem a carreira dos jovens. Quais seriam os prejuízos desse costume?

      Segundo Carlos, esse costume faria com que se perdessem ótimas vocações e surgissem maus profissionais: um que tem vocação para sapateiro sairia um péssimo médico.

04 – Uma das funções da comédia de costumes é criticar a sociedade por meio do riso. Para tanto, um dos recursos usados por Martins Pena é a ironia. Explique a ironia presente no trecho: “Aquele tem inclinação para cômico: pois não, senhor, será político... Ora, ainda isso vá”.

      A ironia do trecho está no fato de Carlos afirmar que um cômico, ou seja, um comediante que se torne político seria aceitável, o que deixa implícito uma crítica à política, vista como uma farsa, uma comédia, algo a não ser levado a sério, ou seja, uma piada.

05 – A crítica ao patronato – o uso da riqueza, da influência e/ou do poder para favorecimento de um protegido, independentemente do mérito do candidato – é uma das marcas centrais da peça “O noviço”. Localize e explique uma crítica ao patronato presente na fala de Carlos.

      Há o exemplo da pessoa com vocação para caiador que vira diplomata, “borrando”, ou seja, manchando tudo o que faz; o exemplo do ladrão que se torna tesoureiro, que denuncia a propensão à corrupção: em vez de punir os desvios, muitas vezes a sociedade acaba por “premiar” aqueles que demonstram desonestidade, desde que tenham relações de patronato que os favoreça. Por fim, os preguiçosos que viram empregados públicos, engordando às custas da nação, ou seja, pouco trabalhando, mas sendo sustentados com o dinheiro público.

06 – Levando em consideração as críticas propostas por Carlos, você as considera atuais? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Algumas das críticas presentes na peça continuam atuais: muitos pais ainda interferem na escolha profissional de seus filhos, ainda há resquícios de patronato e favorecimento em nossa sociedade, etc.

 

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