Romance: Viagens na minha terra
Almeida Garrett
CAPÍTULO II
[...]
“Essas minhas interessantes viagens hão
de ser uma obra prima, erudita, brilhante de pensamentos novos, uma coisa digna
do século. Preciso de o dizer ao leitor, para que ele esteja prevenido; não
cuide que são quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de
Impressões de Viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas da Europa sem
nenhum proveito da ciência e do adiantamento da espécie.
Primeiro que tudo, a minha obra é um
símbolo... é um mito, palavra grega, e de moda germânica, que se mete hoje em
tudo e com que se explica tudo... quanto se não sabe explicar.
É um mito porque — porque... Já agora
rasgo o véu, e declaro abertamente ao benévolo leitor a profunda ideia que está
oculta debaixo desta ligeira aparência de uma viagenzinha que parece feita a
brincar, e no fim de contas é uma coisa séria, grave, pensada como um livro
novo da feira de Leipzig, não das tais brochurinhas dos boulevards de Paris.
Houve aqui há anos um profundo e cavo
filósofo de além Reno, que escreveu uma obra sobre a marcha da civilização, do
intelecto — o que diríamos, para nos entenderem todos melhor, o Progresso.
Descobriu ele que há dois princípios no mundo: o espiritualista, que marcha sem
atender à parte material e terrena desta vida, com os olhos fitos em suas
grandes e abstratas teorias, hirto, seco, duro, inflexível, e que pode bem
personalizar-se, simbolizar-se pelo famoso mito do cavaleiro da mancha, D.
Quixote; — o materialista, que, sem fazer caso nem cabedal dessas teorias, em
que não crê, e cujas impossíveis aplicações declara todas utopias, pode bem
representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho
Pança.
Mas, como na história do malicioso
Cervantes, estes dois princípios tão avessos, tão desencontrados, andam contudo
juntos sempre, ora um mais atrás, ora outro mais adiante, empecendo-se muitas
vezes, coadjuvando-se poucas, mas progredindo sempre.
E aqui está o que é possível ao
progresso humano.
E eis aqui a crônica do passado, a
história do presente, o programa do futuro.
Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em
que domina el-rei Sancho.
Depois há de vir D. Quixote.
O senso comum virá para o milênio,
reinado dos filhos de Deus! Está prometido nas divinas promessas — como el-rei
de Prússia prometeu uma constituição; e não faltou ainda, porque, porque o
contrato não tem dia; prometeu, mas não disse quando.
Ora nesta minha viagem Tejo arriba está
simbolizada a marcha do nosso progresso social: espero que o leitor entendesse
agora. Tomarei cuidado de lho lembrar de vez em quando, porque receio muito que
se esqueça.”
[...].
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1969. p. 151-2.
Fonte: Língua
portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição –
Curitiba – 2010. p. 43.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Fatigam: importunam, enfastiam.
·
Benévolo: bondoso, que apresenta disposição favorável.
·
Hirto: teso, retesado.
·
Fazer
cabedal: ligar a, dar importância a.
·
Utopias: fantasias, quimeras.
·
Rotunda: redonda.
·
Anafada: bem nutrida, gorda, luzidia.
·
Empecendo: dificultando, estorvando.
·
Arriba: parte mais elevada, acima.
02 – Logo no primeiro
parágrafo do texto, o narrador tece uma série de autoelogios à própria obra.
Destaque os adjetivos utilizados para isso.
Interessantes, obra-prima, erudita,
brilhante, [de pensamentos] novos, digna [do século].
03 – Esses adjetivos servem
para elevar a obra diante de outras que, segundo o narrador, circulam pela
Europa. Que obras seriam essas? O que as caracterizaria?
Obras que trazem
“impressões de viagem” e que se caracterizariam pelo fato de serem fatigantes,
ou seja, cansativas, e não trazerem nenhum proveito científico ou contribuírem
para a melhoria da espécie humana.
04 – Levando-se em conta
suas respostas as questões 2 e 3, é possível inferir que o autor de “Viagens na
minha terra”:
I –
Busca auto elogiar-se porque se considera o melhor escritor romântico
português.
II – Acredita que sua obra trará uma contribuição positiva, não se
caracterizando como mero entretenimento.
III
– Afirma que toda leitura de relato de viagens é, necessariamente, fútil.
05 –
Por que, segundo o narrador, sua obra seria “um mito”?
Porque, por trás da
aparência de uma mera viagem, haveria outros sentidos simbólicos na obra. Ela
seria uma obra grave, pensada como uma obra filosófica (“um livro novo da feira
de Leipzig”) e não uma “brochurinha dos boulevards de París.
06 –
O narrador faz referência a um filósofo para quem haveria dois princípios de
progresso: o espiritualista e o materialista. O que distinguiria ambos? Que
figuras literárias são usadas para representar cada um desses princípios?
Enquanto o
espiritualista seguiria sem se importar com a parte terrena da vida, o
materialista se deixaria guiar exclusivamente pela razão, pelos aspectos
materiais da vida. O espiritualista seria representado por D. Quixote e seu
idealismo, enquanto o materialista seria representado pelo pragmatismo de
Sancho Pança.
07 –
Para o narrador, qual desses princípios deveria prevalecer? E qual está
prevalecendo naquele momento em Portugal?
Segundo o narrador, os
princípios, embora contraditórios, seriam complementares e, por isso, deveriam
caminhar juntos. No entanto, Portugal estaria vivendo um momento marcado pelo
materialismo e o narrador estaria aguardando a vinda de D. Quixote e de seu
“espiritualismo”.
08 –
Interprete o sentido do parágrafo final do trecho.
Segundo o
narrador, a narrativa de suas viagens seria simbólica da marcha do progresso
social português e ele vai se esforçar por mostrar isso ao leitor para que este
tenha clareza daquilo que o narrador acredita ser necessário transformar-se em
sua terra para que esta alcance o progresso.
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