domingo, 26 de junho de 2022

CRÔNICA: O PRIMEIRO AMOR - ANA MIRANDA - COM GABARITO

 Crônica: O Primeiro amor

               Ana Miranda

        Numa noite eu estava no clube, esperando meus pais terminarem uma conversa, quando ouvi no ginásio esportivo o barulho de uma bola batendo no chão pá pá pá sem parar. Subi os degraus, e fui até o alto da arquibancada deserta.

        Na quadra de basquete um rapaz treinava, sozinho. Ele era alto e magro, cabelos pretos, sobrancelhas grossas, olhos escuros. Estava de uniforme esportivo vermelho.

        Ele sentiu a minha chegada, parou um instante de correr, deu uma olhada rápida na minha direção, secou o suor da testa com a manga da jaqueta e continuou seu treino. Quando ele se virou de costas, vi na jaqueta o escudo do time que tinha vindo de fora para competir com o time do nosso clube. Sentei no último degrau, numa parte meio escura, e fiquei olhando o jogador.

        Ele corria, batendo a bola no chão, pá pá pá levantando a bola dessa maneira até perto da cesta, ali ele dava um salto, levantava o braço, segurando a bola, e às vezes dava um salto bem alto, às vezes hesitava e desistia. Sempre recomeçava com a mesma disposição e velocidade a jogada. Dava para perceber que ele já tinha feito aquilo mais de mil vezes. Senti que estava se exibindo para a moça magra, de cabelos pretos e compridos, que o assistia do escuro, parada, que era eu. Parecia que tinha se criado um fio invisível entre nós. E meu coração começou a bater fortemente, ao pensar nesse fio. Percebi que alguma coisa estava acontecendo dentro de mim. Parecia que um líquido quente corria por todo o meu corpo, e se derramava, e fiquei tão inquieta que dei um salto, me levantei de um salto, para ir embora, mas vi que o jogador perdeu o controle da bola, parou, e olhou para mim. Fiquei paralisada, ali em pé, pulsando e suando.

        Num instante ele tirou a jaqueta, e vi seus braços compridos e fortes, que eram apenas braços, eu conhecia muitos braços, os braços de papai, os braços de um ator, mas aqueles braços se desenharam na minha cabeça de uma maneira diferente, parecia que tinham alma, vida própria, atração. E o jogador voltou a jogar, agora com mais velocidade, mais emprenho, como se quisesse me prender ali, e ele parecia de repente cercado de fogo e luz, como se fosse um sonho, minha respiração ficou difícil, meus ouvidos zuniam, e percebi que a buzina que tocava lá fora sem parar era do carro de meu pai, e saí correndo, desci as escadas, cruzei o gramado, atravessei a rua escura, abri a porta, entrei no carro, pá.

         Minha mãe perguntou o que tinha acontecido, por que eu estava tão agitada, o que eu tinha visto que me assustou tanto? Nada, eu disse.

        Sozinha, no banco de trás do carro, eu olhava a paisagem do lago, do mato, da lua que brilhava no céu e se refletia na água, que era a mesma paisagem de sempre, do caminho de volta ao clube para casa à noite, mas havia alguma coisa diferente naquela paisagem, lobos nas sombras, ruídos, ameaças, frutas de sabor estranho, ela me convidava a entrar, e eu me vi correndo no mato, desabalada como se fugisse, enquanto ouvia as batidas da bola na quadra batendo batendo pá pá pá repetidamente, e eu chegava à beira do lago, e me jogava na água prateada, e pensava na prova de matemática amanhã e u não tinha estudado a matéria e ia precisar aguar o gramado pá pá pá e as minhas meias preferidas estavam sujas e eu não gostava de ovo cru e eu ia ter aula de italiano e eu tinha ido mal na expressão oral e o disco ainda não tinha chegado e pensava nessas coisas prosaicas mas nada tirava de meu corpo a sensação estranha que eu sentia, pá pá pá ouvia meu coração a bater também, e via a imagem do jogador treinando na quadra, debaixo de uma luz que iluminava apenas ele, tudo escuro em volta, e a cada vez eu via seu rosto mais perto, mais perto, até que ele ficou tão grande que levei um susto, essa menina está tão quieta, dizia mamãe, e continuei quieta na hora do jantar, comi  pouco, pouquíssimo, deixei até mesmo a sobremesa sem tocar, deitei na cama e não consegui dormir, rolava de um lado para outro, agarrava o travesseiro, via o jogador na parede escura, nas frestas da persiana, ouvia a bola batendo na quadra batendo no meu peito fechava os olhos e via a imagem do jogador dentro da minha cabeça como se tivesse sido marcada a fogo, a luz, como se fosse um filme se repetindo e o barulho da bola na quadra, os braços dele me abraçavam, as persianas deixaram entrar aos poucos os raios daquela lua cheia do lago, e ele era aquela luz e era o silêncio da noite era o quarto e cada estrela, eu via o rosto dele e pensava, como podia estar vendo o rosto dele? Devia ser um rosto imaginado, não podia ser o seu rosto verdadeiro, o que estava acontecendo comigo? Via sua face e sentia ali a existência de algum mistério, o que era aquele jogador? Não era ele, era o que acontecia dentro de mim, o que ele tinha feito acontecer, como se tivesse me empurrando num precipício, eu guiada por outra força, como se não fosse mais eu, mas a força da vida, lutando contra minha força, e eu me deixava arrastar, sem nenhuma dúvida, mesmo sem saber nada do que podia acontecer comigo, quem era ele, se eu ao menos soubesse o nome dele, e fiquei olhando a noite inteira para ele dentro de minha memória jogando jogando pá pá pá sem precisar saber nada dele, só sentindo aquele movimento dentro de mim e pá pá os cabelos pretos os braços tudo era tão macio ele olhou para mim os olhos pretos dele a luz nos seus cabelos de fogo ele se apaixonou por mim ele parou de jogar e me olhou e me viu ele se apaixonou por mim, era isso, eu me apaixonei por ele, e ele por mim e eu por ele e quando amanheceu eu ainda estava apaixonada, ah sonâmbula, eu tinha acordado e sentia maior vontade viver, ir à escola, chegar o outro domingo, comi ovo cru sem sentir nojo e fui para a escola tonta de paixão, eu via o jogador no asfalto que eu pisava, via o jogador no bico do meu sapato no portão da escola no tronco da árvore na saia xadrez das meninas no rosto dos meninos, via o jogador no caderno no pó do giz e no quadro-negro pá pá pá fazia fantasias e eu via o jogador jogando uma partida eu no meio da multidão e ele parava no meio do jogo e olhava para mim e ele estava numa festa no clube e passava ao meu lado tão perto de mim que eu sentia o calor da sua pele e ele não me via, ele passava perto de mim e sorria para mim, ele tirava para dançar ele dançava com outra menina abraçado ele casava com outra menina e eu chorava ele casava comigo ele vinha ser professor na minha escola ele batia o carro no nosso e me levava no colo até o hospital, ele me chamava para fugir no seu barco à vela ele tinha um avião e pilotava e jogava milhares de rosas sobre a minha casa ele batia na janela do meu quarto ele me beijava os lábios ele me levava ao cinema e segurava a minha mão ele passava na frente da minha varanda e me olhava ele vinha de noite namorar ele me pedia em casamento ele mergulhava comigo nas águas do lago ele me dava um filho ele me beijava os lábios segurava a minha mão me levava a voar sobre os telhados, passei dias e dias assim pensando nele sem um instante de descanso, achei que estava ficando louca mas adorava me sentir assim, sem prestar atenção nas aulas, sentindo beijos nos meus lábios e calor no meu corpo cheguei a ter febre ele não saía da minha cabeça pá pá pá beijo nos lábios eu lia os jornais inteiros em busca de uma notícia e só queria ir ao clube ao clube ao clube e ia à quadra vazia e escura mas ele não estava mais lá, e em lugar nenhum, e ninguém sabia dizer quem tinha treinado na quadra na noite do domingo e ele nunca se apagava de minha memória pá pá pá e tantos anos se passaram e nunca o esqueci nem deixei de sentir o que ele me fez sentir, pela primeira vez, o amor.

MIRANDA, Ana. In: PIETRO, Heloisa (Org.). De primeira viagem. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 13-17.

Fonte: Livro Língua Portuguesa – Singular & Plural – 7° ano – Laura de Figueiredo – 2ª edição. São Paulo, 2015 – Moderna. p. 18-21.

Entendendo a crônica:

01 – Do que se trata o texto que você acabou de ler?

      O texto se trata da história de como uma menina achou e sentiu pela primeira vez o "amor".

02 – Duas personagens recebem destaque no texto.

a)   Quem são?

Uma garota e um garoto, por quem ela sentiu-se envolvida.

b)   Qual delas está narrando os acontecimentos?

A garota.

c)   O texto é uma história real ou ficcional? Explique sua resposta.

Pode ser tanto real quanto ficcional, já que os sentimentos da personagem podem sim ser sentidos na realidade em que vivemos.

03 – O narrador conta algo que:

a)   Está acontecendo no presente.

b)   Aconteceu num passado bem próximo.

c)   Aconteceu num passado mais distante.

d)   Acontecerá num futuro bem próximo.

·        Encontre no texto trechos ou expressões que confirmem sua resposta.

“... e ele nunca se apagava de minha memória ...”; “... e tantos anos se passaram e nunca esqueci ...”.

04 – Como você sintetizaria:

a)   Os acontecimentos da narrativa?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A garota se apaixona por um garoto que encontra na quadra do clube, vai embora e nunca mais o vê.

b)   As emoções da personagem?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A personagem fala sobre as reações físicas e mentais que o encontro lhe causou; fica totalmente entregue ao que está sentindo, ao mesmo tempo feliz e angustiada; não consegue parar de pensar no garoto, de fantasiar a sua vida com e sem ele.

05 – Você diria que nesse texto há mais destaque para os acontecimentos ou para as emoções? Explique.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Há mais destaque para as emoções, porque os acontecimentos se limitam basicamente ao encontro dos dois, enquanto, em quase todo o texto, a narradora-personagem fala sobre como se sentiu em relação ao encontro.     

06 – Considerando sua resposta à questão anterior, você acha que a escolha que a autora fez sobre quem narraria a história ajudou a construir o texto com esse destaque?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim, sendo a personagem mesma quem narra o que lhe aconteceu, ela pode abusar da exploração dos seus sentimentos, tornando o texto mais emotivo.

07 – Releia o trecho a seguir:

        “Parecia que tinha se criado um fio invisível entre nós. E meu coração começou a bater fortemente, ao pensar nesse fio.”. O que seria esse “fio invisível” criado entre as personagens, segundo o narrador?

      O sentimento que os unia, a atração entre os dois.

08 – Que reação do garoto é descrita pelo narrador para sinalizar que ele também sentiu algo pela garota?

      Quando ela se levantou de um salto, o garoto se desconcentrou e olhou para ela, retomando o seu treino em uma velocidade maior, como que para prendê-la ali.

09 – Você acredita que essa reação do garoto é suficiente para afirmarmos que ele se interessou por ela? Explique.

      Resposta pessoal do aluno.

10 – Leia novamente:

        “Num instante ele tirou a jaqueta, e vi seus braços compridos e fortes, que eram apenas braços, eu conhecia muitos braços, tinha visto diversos tipos de braços, mas aqueles braços se desenharam na minha cabeça de uma maneira diferente [...]”. O Narrador diz que os braços do jogador eram “apenas braços”, mas que “se desenharam” em sua cabeça de “uma maneira diferente”. Por quê?

      Porque, para o narrador-personagem, eles pareceram especiais por causa de paixão que a menina estava sentindo pelo garoto.

11 – O que você achou do final do relato? Situações como essa podem de fato acontecer?

      Resposta pessoal do aluno.

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