Crônica: O Primeiro amor
Ana Miranda
Numa noite eu estava no clube,
esperando meus pais terminarem uma conversa, quando ouvi no ginásio esportivo o
barulho de uma bola batendo no chão pá pá pá sem parar. Subi os degraus, e fui
até o alto da arquibancada deserta.
Na quadra de basquete um rapaz
treinava, sozinho. Ele era alto e magro, cabelos pretos, sobrancelhas grossas,
olhos escuros. Estava de uniforme esportivo vermelho.
Ele sentiu a minha chegada, parou um
instante de correr, deu uma olhada rápida na minha direção, secou o suor da
testa com a manga da jaqueta e continuou seu treino. Quando ele se virou de
costas, vi na jaqueta o escudo do time que tinha vindo de fora para competir
com o time do nosso clube. Sentei no último degrau, numa parte meio escura, e
fiquei olhando o jogador.
Ele corria, batendo a bola no chão, pá
pá pá levantando a bola dessa maneira até perto da cesta, ali ele dava um
salto, levantava o braço, segurando a bola, e às vezes dava um salto bem alto,
às vezes hesitava e desistia. Sempre recomeçava com a mesma disposição e
velocidade a jogada. Dava para perceber que ele já tinha feito aquilo mais de
mil vezes. Senti que estava se exibindo para a moça magra, de cabelos pretos e
compridos, que o assistia do escuro, parada, que era eu. Parecia que tinha se
criado um fio invisível entre nós. E meu coração começou a bater fortemente, ao
pensar nesse fio. Percebi que alguma coisa estava acontecendo dentro de mim.
Parecia que um líquido quente corria por todo o meu corpo, e se derramava, e
fiquei tão inquieta que dei um salto, me levantei de um salto, para ir embora,
mas vi que o jogador perdeu o controle da bola, parou, e olhou para mim. Fiquei
paralisada, ali em pé, pulsando e suando.
Num instante ele tirou a jaqueta, e vi
seus braços compridos e fortes, que eram apenas braços, eu conhecia muitos
braços, os braços de papai, os braços de um ator, mas aqueles braços se
desenharam na minha cabeça de uma maneira diferente, parecia que tinham alma,
vida própria, atração. E o jogador voltou a jogar, agora com mais velocidade,
mais emprenho, como se quisesse me prender ali, e ele parecia de repente
cercado de fogo e luz, como se fosse um sonho, minha respiração ficou difícil,
meus ouvidos zuniam, e percebi que a buzina que tocava lá fora sem parar era do
carro de meu pai, e saí correndo, desci as escadas, cruzei o gramado,
atravessei a rua escura, abri a porta, entrei no carro, pá.
Minha mãe perguntou o que tinha
acontecido, por que eu estava tão agitada, o que eu tinha visto que me assustou
tanto? Nada, eu disse.
Sozinha, no banco de trás do carro, eu
olhava a paisagem do lago, do mato, da lua que brilhava no céu e se refletia na
água, que era a mesma paisagem de sempre, do caminho de volta ao clube para
casa à noite, mas havia alguma coisa diferente naquela paisagem, lobos nas
sombras, ruídos, ameaças, frutas de sabor estranho, ela me convidava a entrar,
e eu me vi correndo no mato, desabalada como se fugisse, enquanto ouvia as
batidas da bola na quadra batendo batendo pá pá pá repetidamente, e eu chegava
à beira do lago, e me jogava na água prateada, e pensava na prova de matemática
amanhã e u não tinha estudado a matéria e ia precisar aguar o gramado pá pá pá
e as minhas meias preferidas estavam sujas e eu não gostava de ovo cru e eu ia
ter aula de italiano e eu tinha ido mal na expressão oral e o disco ainda não
tinha chegado e pensava nessas coisas prosaicas mas nada tirava de meu corpo a sensação
estranha que eu sentia, pá pá pá ouvia meu coração a bater também, e via a
imagem do jogador treinando na quadra, debaixo de uma luz que iluminava apenas
ele, tudo escuro em volta, e a cada vez eu via seu rosto mais perto, mais
perto, até que ele ficou tão grande que levei um susto, essa menina está tão
quieta, dizia mamãe, e continuei quieta na hora do jantar, comi pouco,
pouquíssimo, deixei até mesmo a sobremesa sem tocar, deitei na cama e não
consegui dormir, rolava de um lado para outro, agarrava o travesseiro, via o
jogador na parede escura, nas frestas da persiana, ouvia a bola batendo na
quadra batendo no meu peito fechava os olhos e via a imagem do jogador dentro
da minha cabeça como se tivesse sido marcada a fogo, a luz, como se fosse um filme
se repetindo e o barulho da bola na quadra, os braços dele me abraçavam, as
persianas deixaram entrar aos poucos os raios daquela lua cheia do lago, e ele
era aquela luz e era o silêncio da noite era o quarto e cada estrela, eu via o
rosto dele e pensava, como podia estar vendo o rosto dele? Devia ser um rosto
imaginado, não podia ser o seu rosto verdadeiro, o que estava acontecendo
comigo? Via sua face e sentia ali a existência de algum mistério, o que era
aquele jogador? Não era ele, era o que acontecia dentro de mim, o que ele tinha
feito acontecer, como se tivesse me empurrando num precipício, eu guiada por
outra força, como se não fosse mais eu, mas a força da vida, lutando contra
minha força, e eu me deixava arrastar, sem nenhuma dúvida, mesmo sem saber nada
do que podia acontecer comigo, quem era ele, se eu ao menos soubesse o nome
dele, e fiquei olhando a noite inteira para ele dentro de minha memória jogando
jogando pá pá pá sem precisar saber nada dele, só sentindo aquele movimento
dentro de mim e pá pá os cabelos pretos os braços tudo era tão macio ele olhou
para mim os olhos pretos dele a luz nos seus cabelos de fogo ele se apaixonou
por mim ele parou de jogar e me olhou e me viu ele se apaixonou por mim, era
isso, eu me apaixonei por ele, e ele por mim e eu por ele e quando amanheceu eu
ainda estava apaixonada, ah sonâmbula, eu tinha acordado e sentia maior vontade
viver, ir à escola, chegar o outro domingo, comi ovo cru sem sentir nojo e fui
para a escola tonta de paixão, eu via o jogador no asfalto que eu pisava, via o
jogador no bico do meu sapato no portão da escola no tronco da árvore na saia
xadrez das meninas no rosto dos meninos, via o jogador no caderno no pó do giz
e no quadro-negro pá pá pá fazia fantasias e eu via o jogador jogando uma
partida eu no meio da multidão e ele parava no meio do jogo e olhava para mim e
ele estava numa festa no clube e passava ao meu lado tão perto de mim que eu
sentia o calor da sua pele e ele não me via, ele passava perto de mim e sorria
para mim, ele tirava para dançar ele dançava com outra menina abraçado ele
casava com outra menina e eu chorava ele casava comigo ele vinha ser professor
na minha escola ele batia o carro no nosso e me levava no colo até o hospital,
ele me chamava para fugir no seu barco à vela ele tinha um avião e pilotava e
jogava milhares de rosas sobre a minha casa ele batia na janela do meu quarto
ele me beijava os lábios ele me levava ao cinema e segurava a minha mão ele
passava na frente da minha varanda e me olhava ele vinha de noite namorar ele
me pedia em casamento ele mergulhava comigo nas águas do lago ele me dava um
filho ele me beijava os lábios segurava a minha mão me levava a voar sobre os
telhados, passei dias e dias assim pensando nele sem um instante de descanso,
achei que estava ficando louca mas adorava me sentir assim, sem prestar atenção
nas aulas, sentindo beijos nos meus lábios e calor no meu corpo cheguei a ter
febre ele não saía da minha cabeça pá pá pá beijo nos lábios eu lia os jornais
inteiros em busca de uma notícia e só queria ir ao clube ao clube ao clube e ia
à quadra vazia e escura mas ele não estava mais lá, e em lugar nenhum, e
ninguém sabia dizer quem tinha treinado na quadra na noite do domingo e ele
nunca se apagava de minha memória pá pá pá e tantos anos se passaram e nunca o
esqueci nem deixei de sentir o que ele me fez sentir, pela primeira vez, o
amor.
MIRANDA, Ana. In:
PIETRO, Heloisa (Org.). De primeira viagem. São Paulo: Cia das Letras,
2004. p. 13-17.
Fonte: Livro Língua
Portuguesa – Singular & Plural – 7° ano – Laura de Figueiredo – 2ª edição.
São Paulo, 2015 – Moderna. p. 18-21.
Entendendo a crônica:
01 – Do que se trata o texto
que você acabou de ler?
O texto se trata
da história de como uma menina achou e sentiu pela primeira vez o
"amor".
02 – Duas personagens
recebem destaque no texto.
a) Quem são?
Uma garota e um garoto, por quem ela sentiu-se envolvida.
b) Qual delas está narrando os acontecimentos?
A garota.
c) O texto é uma história real ou ficcional? Explique sua resposta.
Pode ser tanto real quanto ficcional, já que os sentimentos da
personagem podem sim ser sentidos na realidade em que vivemos.
03 – O narrador conta algo
que:
a) Está acontecendo no presente.
b) Aconteceu num passado bem próximo.
c) Aconteceu num passado mais distante.
d) Acontecerá num futuro bem próximo.
· Encontre no texto trechos ou expressões que confirmem sua resposta.
“... e ele nunca se apagava de minha memória ...”; “... e tantos
anos se passaram e nunca esqueci ...”.
04 – Como você sintetizaria:
a) Os acontecimentos da narrativa?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A garota se apaixona por um
garoto que encontra na quadra do clube, vai embora e nunca mais o vê.
b) As emoções da personagem?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A personagem fala sobre as
reações físicas e mentais que o encontro lhe causou; fica totalmente entregue
ao que está sentindo, ao mesmo tempo feliz e angustiada; não consegue parar de
pensar no garoto, de fantasiar a sua vida com e sem ele.
05 – Você diria que nesse
texto há mais destaque para os acontecimentos ou para as emoções? Explique.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Há mais destaque para as emoções, porque os acontecimentos
se limitam basicamente ao encontro dos dois, enquanto, em quase todo o texto, a
narradora-personagem fala sobre como se sentiu em relação ao encontro.
06 – Considerando sua
resposta à questão anterior, você acha que a escolha que a autora fez sobre
quem narraria a história ajudou a construir o texto com esse destaque?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Sim, sendo a personagem mesma quem narra o que lhe
aconteceu, ela pode abusar da exploração dos seus sentimentos, tornando o texto
mais emotivo.
07 – Releia o trecho a
seguir:
“Parecia
que tinha se criado um fio invisível entre nós. E meu coração começou a bater
fortemente, ao pensar nesse fio.”. O que seria esse “fio invisível” criado entre as personagens, segundo o narrador?
O sentimento que
os unia, a atração entre os dois.
08 – Que reação do garoto é
descrita pelo narrador para sinalizar que ele também sentiu algo pela garota?
Quando ela se levantou de um salto, o
garoto se desconcentrou e olhou para ela, retomando o seu treino em uma
velocidade maior, como que para prendê-la ali.
09 – Você acredita que essa
reação do garoto é suficiente para afirmarmos que ele se interessou por ela?
Explique.
Resposta pessoal do aluno.
10 – Leia novamente:
“Num instante ele tirou a jaqueta, e vi
seus braços compridos e fortes, que eram apenas braços, eu conhecia muitos
braços, tinha visto diversos tipos de braços, mas aqueles braços se desenharam
na minha cabeça de uma maneira diferente [...]”. O
Narrador diz que os braços do jogador eram “apenas braços”, mas que “se
desenharam” em sua cabeça de “uma maneira diferente”. Por quê?
Porque, para o narrador-personagem, eles
pareceram especiais por causa de paixão que a menina estava sentindo pelo
garoto.
11 – O que você achou do
final do relato? Situações como essa podem de fato acontecer?
Resposta pessoal
do aluno.
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