domingo, 26 de junho de 2022

CRÔNICA: CARTA AO PREFEITO - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

 Crônica: Carta ao Prefeito

               Rubem Braga

        Senhor Prefeito do Distrito Federal:

        Eu sou um desses estranhos animais que têm por habitat o Rio de Janeiro; ouvi-me, pois, com o devido respeito.

        Sou um monstro de resistência e um técnico em sobrevivência – pois o carioca é, antes de tudo, um forte. Se às vezes saio do Rio por algum tempo para descansar de seus perigos e desconfortos (certa vez inventei até ser correspondente de guerra, para ter um pouco de paz) a verdade é que sempre volto. Acostumei-me, assim, a viver perigosamente. Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá em cima, longe, dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e murmuro: eu quero ver é no chão.

        Também não sou assustado como esse senhor deputado Tenório Cavalcanti, que mora em Caxias e vive armado; moro bem no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana, e às vezes, nas caladas da noite, percorro desarmado várias boates desta zona e permaneço horas dentro da penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente na cabeça dos fiéis em torno. E estou vivo.

        Ainda hoje tenho coragem bastante para tomar um ônibus ou mesmo um lotação e ir dentro dele até o centro da cidade. Vivo assim, dia a dia, noite a noite, isto que os historiadores do futuro, estupefatos, chamarão a Batalha do Rio de Janeiro. Já fiz mesmo várias viagens na Central. Eu sou um bravo, senhor.

        Sei também que não me resta nenhum direito terreno; respiro o ar dos escapamentos abertos e me banho até no Leblon, considerado um dos mais lindos esgotos do mundo; aspiro o perfume da curva do Mourisco e a brisa da Lagoa e – sobrevivo. E compreendo que, embora vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a viver à maneira carioca.

        Eu é que não me queixo; já me aconteceu escapar de morrer dentro de um táxi em uma tarde de inundação e ter o consolo de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente seca.

        Prometestes, senhor, acabar em 30 dias com as inundações no Rio de Janeiro; todo o povo é testemunha desta promessa e de seu cumprimento: é que atacaste, senhor, o mal pela raiz, que são as chuvas. Parou de chover, medida excelente e digna de encômios.

        Mas não é para dizer isso que vos escrevo. É para agradecer a providência que vossa administração tomou nestas últimas quatro noites, instalando uma esplêndida lua cheia em Copacabana. Não sei se a fizestes adquirir na Suíça para nosso uso permanente, ou se é nacional. Talvez só possamos obter uma lua cheia definitiva reformando a Constituição e libertando Vargas.

        Mas a verdade é que o luar sobre as ondas me consolou o peito. E eu andava muito precisado. Obrigado, Senhor.

Rubem Braga – Rio, junho de 1951.

Rubens Braga. Carta ao prefeito. São Paulo: Ática, 1979. p. 43-4. (Para gostar de ler, 4).

Fonte: Português em outras palavras – 8ª série – Maria Sílvia Gonçalves – ed. Scipione – São Paulo, 2002. 4ª edição. p. 112-3.

Entendendo a crônica:

01 – A crônica que você leu foi escrita em forma de uma carta. Está endereçada ao prefeito do Distrito Federal (na época, o Rio ainda era o Distrito Federal). Que cuidados em relação à linguagem o autor tomou, para fazer a carta parecer verdadeira?

      O autor dirige-se a um interlocutor, a quem ele chama de “senhor”, e usa a segunda pessoa do plural. Escreve em primeira pessoa e inicia seu texto com a evocação: “Senhor prefeito do Distrito Federal”.

02 – Explique como o autor consegue fazer críticas contundentes à administração da cidade, sem atacar diretamente as autoridades.

      Ele usa a ironia: diz exatamente o contrário do quer fazer parecer. Faz os piores ataques à administração da cidade, ao mesmo tempo que elogia o prefeito.

03 – Raramente os políticos cumprem o que prometem, mas o prefeito do Rio acabou com as inundações e mereceu os elogios do cronista. Você concorda com essa afirmação? Justifique sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno: Sugestão: O aluno deverá discordar. Dizer que o prefeito atendeu seu pedido providenciando o final das chuvas para acabar com as inundações também é ironia.

04 – Relendo os três últimos parágrafos do texto, a quem seria possível atribuir o pronome de tratamento “senhor” utilizado pelo autor?

      Nos três últimos parágrafos do texto, fica claro que o “senhor” não é o prefeito. Pode ser uma referência a um ser sobrenatural poderoso, que teria poderes sobre a natureza.

05 – Na sua opinião, o que seria administrar à maneira suíça? E viver à maneira carioca?

      Administrar à maneira suíça seria administrar uma cidade como se ela fosse de primeiro mundo; viver à maneira carioca seria viver num país de terceiro mundo.

06 – Na “Carta ao Prefeito”, escrita em junho de 1951, Rubem Braga faz referência à “Batalha do Rio de Janeiro”. Comparando esse texto com os acontecimentos citados em “As meninas da linha 174 – um elogio”, a que conclusões é possível chegar?

      Pode-se concluir que a violência no Rio de Janeiro, já descrita em 1951, continua, apresentando-se de forma ainda mais acentuada.

07 – Verifique se a descrição do Rio de Janeiro, da forma feita pelo autor, corresponde ao conceito de cidade elaborado pela classe na abertura da unidade.

      Provavelmente, não haverá correspondência. O conceito de cidade, elaborado pela classe, deve referir-se à cidade como um lugar no qual o cidadão poderá viver em condições dignas.

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